O novo processo de militarização das escolas no Paraná realizado pelo governador Ratinho Junior, em 2023, marca a história da educação pública no estado e acende o alerta de um perigoso movimento que naturaliza a militarização da sociedade, criando as condições objetivas e subjetivas para o avanço extrema direita e dos empresários da educação, sedentos pelo acesso ao dinheiro público e ao controle da formação dos estudantes das escolas públicas.
É muito grave quando uma sociedade pautada por princípios democráticos aceita a adoção de métodos autoritários para fins educativos, sem notar a simbiose entre a doutrina militar e o gerencialismo empresarial, na difusão da ideologia de extrema direita e dos riscos sociais que a militarização representa àqueles que serão atingidos por esse processo.
O historiador Carlos Fico (2004), ao discutir as “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”, destaca entre outras questões que a doutrina da segurança nacional visava combater o comunismo e disseminava a ideia da utopia autoritária, que precede em muito a ditadura militar. Essa utopia está relacionada à crença de que os militares eram superiores aos civis, pois esses eram despreparados, manipuláveis, impatrióticos e, principalmente, políticos civis, venais. Nesse sentido, a utopia autoritária se realizava em duas dimensões: uma que iria curar o organismo social e extirpar fisicamente os comunistas e o comunismo com a espionagem, a censura da imprensa e julgamentos sumários; e a outra, de caráter pedagógico, suprimiria as supostas deficiências da sociedade brasileira, educando e defendendo o povo dos ataques à moral e aos bons costumes.
No contexto da redemocratização do Brasil, em 1987, por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte, Florestan Fernandes denunciava que a classe dominante no Brasil se dizia comprometida com a implantação da democracia no país, mas iludiam a opinião pública, mascarando os reais interesses e empenho de restaurar a ditadura.
No estado do Paraná, no que diz respeito ao autoritarismo na educação, são conhecidos alguns episódios de violência policial contra professores e servidores públicos, como ocorrido nos ataques da cavalaria em 1988, no governo Álvaro Dias e no massacre de 29 de abril, em 2015, no governo Beto Richa. No governo Ratinho Junior não ocorreram episódios de violência policial ou massacres públicos, com transmissão em rede nacional, mas isso não descarta a violência contida na implementação de um modelo de educação sob orientação de empresários, fundações e institutos empresariais, que retirou direitos, congelou salários, alterou regras da aposentadoria, precarizou as condições de trabalho, fechou ensino noturno, superlotou salas de aula, impôs metas frias e descontextualizadas da realidade das escolas públicas, impôs a vigilância em sala de aula, controle de conteúdo, transformando as escolas em fábricas e as salas de aula em linha de montagem, levando professores ao esgotamento físico e mental.
A violência arquitetada e comandada por governantes lança as bases para o convencimento junto à opinião pública da necessidade de se implementar processos de militarização das escolas, pois, se naturaliza que a educação virou caso de polícia. Na esteira dessa naturalização, o governador Ratinho Junior seguiu as diretrizes do presidente Jair Bolsonaro, para a criação de escolas cívico-militares. O projeto de Bolsonaro visava não somente militarizar as escolas, mas militarizar também a sociedade.
O processo de militarização das escolas no Paraná teve início no ano de 2020. Adepto das políticas neoliberais, seguidor da ideologia política de extrema direita e surfando na onda bolsonarista no Paraná, o governador Ratinho Junior militarizou mais de 200 escolas públicas no estado. E agora, em 2023, tentou novamente militarizar mais 126 escolas, porém, conseguiu aprovar somente 86. Outras 12 estão em processo de consulta junto à comunidade.
O educador Paulo Freire, em uma das suas afirmações em relação à educação dizia que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor”. Esse destaque ao pensamento de Paulo Freire é importante, pois, o governador Ratinho Junior, por meio da Secretaria de Educação, afirma que a militarização das escolas é uma decisão da comunidade escolar. O que escondem, no entanto, é que nem em 2020 e nem em 2023 houve espaço democrático para que a comunidade pudesse conhecer e debater o modelo cívico-militar para depois tomar sua decisão.
A criminalização dos professores/as e funcionários/as que lutam contra a militarização é mais um alerta no processo de naturalização do autoritarismo e da violência, afinal, esses profissionais defendem o óbvio e com conhecimento de causa. Nada mais fazem que apontar as consequências da militarização das escolas para a formação da juventude trabalhadora; o caráter classista (uma vez que só as escolas públicas são militarizadas); o caráter antidemocrático desse modelo, pois, os diretores são nomeados e se elimina a eleição; o caráter antipedagógico, pois os diretores militares que são nomeados não necessitam comprovar formação em educação; o caráter excludente, pois os estudantes que não se adequarem às normas são convidados a se retirar; o caráter preconceituoso, pois parte-se do princípio que os estudantes das escolas públicas precisam ser disciplinados pela polícia, por serem violentos, sem limites, quando escondem que os problemas que atingem as escolas públicas atingem também as escolas privadas, por serem problemas presentes na sociedade e não problemas exclusivos das escolas públicas. Se propõe a tratar as consequências, e escondem as causas dos problemas.
Há um dado pouco discutido nesse processo que é o projeto de sociedade pautado pela extrema direita que vai se fortalecendo com a militarização das escolas. As pautas defendidas pela extrema direita passam a ser garantidas com a militarização, desde o cerceamento da liberdade de expressão, a liberdade de ensino, a liberdade de formação do pensamento crítico e do estudo de temas sobre política, ideologia, desigualdade social, questões de gênero, ciência, autoritarismo, democracia, participação, orientação sexual, evolucionismo, ataque às universidades públicas, dentre outros.
Há que se reconhecer que o governador Ratinho Junior participa ativamente do projeto de sociedade da extrema direita, fomenta essas ações, mas de dentro dos porões do autoritarismo se utiliza de mecanismos como a consulta à comunidade, previstos em sociedades democráticas, para disfarçar suas reais intenções de transformar as escolas públicas paranaenses num grande quartel, pautados pela hierarquia e a disciplina. Hierarquia em relação a quem manda e exige obediência a fim de disciplinar a imposição de regras e o desenvolvimento de condutas desejáveis a quem impôs tais regras.
Assim como no governo Bolsonaro, o autoritarismo é uma marca do governo Ratinho Junior, com a diferença que o governador não faz shows ou exibições públicas do seu autoritarismo. A sutileza com que age, confunde e por vezes até empolga alguns ditos progressistas, democratas e supostamente de esquerda que aceitam negociatas e alianças político-partidárias, em nome de uma frágil governabilidade e, nesse contexto, ajudam a chocar os ovos da serpente.
O projeto de militarização das escolas públicas levado a cabo por Ratinho Junior é assinatura do decreto de falência do modelo neoliberal adotado por ele desde o primeiro mandato, em 2019. Esse modelo neoliberal é o mesmo adotado pelo governador Beto Richa entre os anos 2011 e 2018. Portanto, são mais de 12 anos de gestão neoliberal na educação pública paranaense, tempo suficiente para constatarmos que o neoliberalismo, mais uma vez, se comprova um modelo falido que só serve e só interessa aos empresários, que sobrevive à custa do dinheiro público, que corrói o serviço público, que ataca os servidores públicos, e que visa ampliar seus lucros e atender às exigências do mercado. Ratinho Junior, no entanto, em vez de assumir a falência das políticas neoliberais, impõe medidas autoritárias para tentar restaurar ou camuflar o estrago acumulado ao longo desse tempo.
Por meio de parcerias com empresas, fundações e institutos empresariais, Ratinho Junior trouxe para dentro do governo a visão da gestão empresarial. As empresas, segundo a lógica capitalista, sedentas para ampliarem seus lucros, impõem a lógica do mercado na gestão, agindo como se a educação fosse mercadoria e se os estudantes fossem clientes. A militarização, portanto, vem atender o objetivo do governo de ter dentro das escolas gerentes que obedeçam às imposições, sem questionamentos e sem críticas, somente atuando em prol das metas e índices estipulados pelas empresas parceiras do governo.
Na militarização das escolas, o neoliberalismo e o autoritarismo caminham de mãos dadas. Não há democracia num modelo neoliberal, pois a democracia pressupõe que os direitos e demandas do povo serão atendidas. Historicamente os neoliberais apoiaram golpes de Estado, financiaram ditaduras e ditadores. Seu grande objetivo seria eliminar o direito do povo ao voto, mas o custo social é alto, e, portanto, é mais estratégico e eficiente que os empresários sequestrem o processo democrático, haja visto no Brasil, que, ao longo das ameaças golpistas de Jair Bolsonaro, vários empresários mantiveram seu apoio ao governo e financiaram atos golpistas.
Esse projeto é pensado pela classe dominante e se destina somente às escolas públicas. Essa mesma classe não quer uma educação pública de qualidade, que forme os trabalhadores com pensamento crítico, com acesso à universidade. A finalidade da classe dominante é, portanto, controlar a educação para garantir o funcionamento do capitalismo, ampliar suas riquezas, se perpetuar no poder e não ser incomodada. Se a militarização trouxesse a qualidade prometida para a educação, certamente, a classe dominante faria a militarização das escolas privadas.
A militarização da educação e da sociedade só servem aos interesses da classe dominante para manter seus privilégios e para que consigam explorar ainda mais os trabalhadores, controlar suas vidas, seus desejos e comportamentos.
Finalizamos esses apontamentos com uma importante contribuição do sociólogo Florestan Fernandes, por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte, quando afirmou que “Não pode haver democracia sem democratização do ensino, e a democratização do ensino público está na raiz da revolução democrática no Brasil”.
A grande tarefa daqueles que não se renderam à lógica autoritária e antidemocrática da militarização e da mercantilização da educação é manter-se na luta. Já dizia Bertolt Brecht:
Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.
Seguimos lutando!
*Regis Clemente da Costa é Doutor em Educação e Professor na Universidade federal da Fronteira Sul
**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná