O caminho de tentar publicar por uma editora já não é a única maneira de trazer um quadrinho à vida. Ainda que os gibis da Turma da Mônica de Maurício de Souza continuem sendo as principais referências de HQs nacionais, a produção brasileira vai – e muito – além disso.
:: Após mais de um século, Brasil vê universo dos quadrinhos preenchido por artistas independentes ::
Os quadrinhos independentes – aqueles cuja produção e distribuição ocorre fora do mercado editorial "oficial" – herdam dos fanzines da década de 1970 a versatilidade e fronte na construção de discursos e ideias, atuando como contraponto à lógica mercadológica de grandes editoras e destacando narrativas diversas e autorais.
Desde 2011, ano em que ocorreu uma consolidação de plataformas de financiamento coletivo no Brasil, estudiosos apontam para uma virada progressiva na cena independente de HQs no país. Tais ferramentas vêm permitindo que artistas de todo o país possam criar campanhas de arrecadação para viabilizar seus projetos, em contato direto com o público leitor, sem assim depender do crivo de uma editora como mediadora e avaliadora nesse processo. Isso traz uma maior autonomia aos artistas com relação à estética, temáticas e formatos abordados.
A descentralização em relação à figura das editoras como bastiões do que é ou não passível de ser publicado impacta em diversos aspectos, incluindo o da diversidade de vozes.
Observa-se na cena independente uma presença maior de grupos que nem sempre conseguiram ocupar esses espaços de forma expressiva ou autônoma – como no caso de artistas negros, indígenas, não-brancos, mulheres, LGTQIAPN+, periféricos e tantos outros.
Importante ressaltar que isso não significa que somente neste contexto tem-se mais artistas de tais grupos. Eles sempre existiram. A questão é que, com essa descentralização, tais quadrinistas podem circular e chegar às pessoas por outras vias. A expansão das redes sociais é um ponto central nesse processo: artistas vêm utilizando suas plataformas para divulgar seus trabalhos, processos criativos e também como meio de publicação de quadrinhos.
A força do autoral
A cena independente de quadrinhos no Brasil vem se expandindo para além de si mesma. Tem representado um ecossistema que evidencia como a diversidade de temas, formatos e vozes na arte sequencial tem, sim, público e procura, a ponto de influenciar nas publicações de grandes editoras.
Um ótimo exemplo é a HQ Arlindo, da Ilustralu. A série que acompanha o personagem Arlindo em sua jornada de crescimento e descoberta como um adolescente gay no início dos anos 2000 começou como uma webcomic, publicada semanalmente nas redes sociais da artista em 2019, se tornou um verdadeiro fenômeno. E com todo o sucesso nas redes, a obra ganhou uma versão impressa publicada pela Editora Seguinte em 2022, sendo um sucesso também de vendas.
O quadrinho “Indivisível” de Marília Marz aborda o embate de identidades e a história negra do bairro da Liberdade, na região central de São Paulo (SP). História essa que foi, literalmente, soterrada e vítima de diversas ações de apagamento.
O projeto nasceu como trabalho de conclusão de curso da faculdade de arquitetura e foi lançado de forma independente em 2019, e posteriormente foi relançado pela Editora Conrad. O trabalho de Marz foi selecionado no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) Literário 2021, sendo assim disponibilizado como material oficial em escolas públicas do país.
Auto-organização e iniciativas de fomento
No cenário independente, os próprios indivíduos acabam sendo os principais agentes em sua manutenção e avanço, e com os quadrinhos não é diferente. Muitos artistas, editores e jornalistas vêm desenvolvendo iniciativas que movimentam a cena e fortalecem a produção autoral.
Um destaque é a Mina de HQ, projeto fundado em 2015 pela jornalista Gabriela Borges com o objetivo de trazer maior visibilidade para as produções de artistas mulheres, não-brancas e LGTQIAPN+. Além do site, o projeto conta com a Revista Mina de HQ, newsletter e perfis em redes sociais, promovendo debates e reflexões sobre essas produções e também publicando quadrinhos de artistas convidadas.
O projeto Norte em Quadrinhos., criado pela editora de HQs Sâmela Hidalgo, tem como objetivo divulgar as produções de artistas da região norte do país. Sâmela sempre destaca a importância de se falar de quadrinhos para além de São Paulo, e de como os trabalhos de artistas nortistas são constantemente esquecidos ou mesmo ignorados pelos grandes circuitos de quadrinhos no país.
Também existem selos independentes que publicam, de forma colaborativa, coletâneas de quadrinhos de artistas diversos através de chamadas temáticas, como a Café Espacial e a Revista Pé de Cabra. Essas publicações permitem com que muitos artistas iniciantes possam estrear oficialmente, produzindo histórias mais curtas e podendo, assim, começar a circular na cena.
Os eventos de quadrinhos e feiras gráficas possuem papel fundamental para a circulação e promoção das HQs independentes. É o caso da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, o FIQ - Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte e a Semana do Quadrinho Nacional de Manaus, eventos que mobilizam artistas e leitores de todo o país. As programações contam com feira de quadrinhos, mesas de debates, lançamentos, oficinas e minicursos, permitindo a interação direta entre artistas e leitores.
Desafios e busca por reconhecimento
São muitas as dificuldades que os quadrinhos enfrentam no Brasil. Começando pelo seu entendimento social: existe uma grande dificuldade em compreender que os quadrinhos são quadrinhos e que isso basta; eles não são literatura, eles não são cinema, eles não são teatro. Os quadrinhos são um meio em si, com suas próprias formatações e que, sim, bebe de diversas fontes e dialoga com outras expressões, sem deixar de serem quadrinhos.
Tal incompreensão impacta também na visão de que são um produto infantil - posto como algo menor e alienante. E quando se trata de quadrinhos independentes, os obstáculos aumentam muito. Os artistas são, em maioria, os únicos responsáveis por todas as etapas do processo, desde a criação e concepção dos quadrinhos até a logística de venda, distribuição, precificação, produção gráfica, administração de envios, estoque, entre muitas outras. A falta de políticas e incentivos públicos voltados especialmente aos quadrinhos tornam todo o processo muito incerto para grande parte dos quadrinistas, que em maioria, precisam conciliar o trabalho com HQs com outras atividades profissionais para que possam sobreviver.
Mesmo que exista um maior destaque de artistas fora do padrão masculino branco e cisgênero, as questões de gênero e éticas também são pontos de discussão constantes no meio independente. A cerimônia do 35° Troféu HQMix no último dia 06, a principal premiação voltada para HQs no país, contou com protestos sobre a disparidade de artistas mulheres, não-brancos, LGBTQIAPN+ e fora de São Paulo entre os finalistas e vencedores na premiação.
A questão geográfica é também um ponto sensível; em um país de dimensões continentais com o Brasil, a cidade de São Paulo ainda se concentra como principal polo dos quadrinhos brasileiros - seja na concentração de eventos, selos editoriais, editais e verbas de incentivo destinadas à cultura. Mesmo no restante do eixo sul-sudeste do país existe uma disparidade quando comparados com a capital paulista. Quando comparados com o norte do Brasil, isso se torna ainda mais alarmante. Não são poucas as pessoas que acabam migrando de suas regiões para a cidade de São Paulo em busca de maiores oportunidades nos quadrinhos.
Os pulmões do quadrinho brasileiro
Mesmo com todas as dificuldades de se fazer arte no Brasil, os quadrinhos independentes seguem (re)existindo. A cada evento de HQ encontramos mais e mais pessoas com ideias, projetos e pontos de vista únicos, utilizando esse meio como forma de expressão e de promoção de suas vivências e perspectivas sobre o mundo. Ainda que os obstáculos sejam muitos, os quadrinhos independentes podem ser considerados os pulmões dos quadrinhos brasileiros, e mostram que na produção autoral nacional ainda existem muitas histórias mais para serem contadas.
*Leonardo Rodrigues é editor de vídeo e jornalista no Brasil de Fato; mestrando em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo, com pesquisa focada na presença e no protagonismo de artistas negros na produção brasileira de histórias em quadrinhos.
Edição: Rebeca Cavalcante