A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) manifestou preocupação com o que chamou de "desmobilização gradual" do Ministério da Defesa na Terra Indígena (TI) Yanomami, onde o governo federal conduz há 11 meses uma megaoperação que já expulsou a maioria dos garimpeiros ilegais, responsáveis por provocar uma grave crise humanitária no território.
O alerta sobre a falta de apoio das Forças Armadas está em um ofício assinado na última quarta-feira (20) pela presidenta da Funai, Joenia Wapichana e obtido com exclusividade pelo Brasil de Fato. O documento diz que os recursos destinados até agora foram insuficientes para garantir a recuperação da terra indígena e foi endereçado à secretaria de orçamento do ministério da Economia, além das pastas da Gestão e dos Povos Indígenas.
Em nota enviada à reportagem, Joenia Wapichana diz que as ações desenvolvidas pelo governo foram avaliadas na reunião ministerial do último dia 20 e reconhece que nem todas as medidas têm efeito imediato, uma vez que são "planejadas para curto, médio e longo prazo, mas que precisam ser realizadas".
Ela acrescenta que "os ministérios estão colaborando para que essa situação tenha uma resposta à altura do que aconteceu" e que os esforços para proteção da Terra Indígena Yanomami serão intensificados.
Ouvidos pela reportagem, indígenas e indigenistas que acompanham de perto a operação corroboram a preocupação da Funai e acrescentam que, nas últimas semanas, as Forças Armadas retiraram homens e estruturas de apoio do território invadido, justamente no momento em que garimpeiros ligados a facções criminosas aumentam a presença na terra indígena.
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"Sem este esforço [do Ministério da Defesa], tanto para entrega de cestas aos Yanomami mais vulneráveis, quanto para efetiva desintrusão do território, a tendência é que área de vulnerabilidade se espraie impedindo também a entrega de cestas [de alimentos] (...)", escreveu a presidenta da Funai.
Dário Kopenawa, integrante da Hutukara Associação Yanomami, teme que a invasão garimpeira se agrave e criticou as Forças Armadas. "É uma situação de falta de responsabilidade do Exército Brasileiro, de não fazer o combate do garimpo ilegal. É um papel importante deles, sim, fundamental. Mas hoje [esse papel] enfraqueceu porque o Exército saiu da terra Yanomami", afirmou ao Brasil de Fato.
O decreto presidencial que determinou a expulsão dos garimpeiros define que o papel do Ministério da Defesa, chefiado por José Múcio, é fornecer transporte aéreo aos demais órgãos do governo federal, além de executar ações de repressão, prevenção e prisão de invasores. Para isso, Lula (PT) já destinou à pasta pouco mais de R$ 275 milhões em crédito extraordinário via Medidas Provisórias (MPs).
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O Ministério da Defesa respondeu que o apoio logístico prestado pelas Forças Armadas em território Yanomami é emergencial e visa suprir as necessidades até que os órgãos ambientais e indígena possam implementar soluções duradouras.
"As Forças Armadas foram responsáveis pela execução de 7,4 mil horas voo, o que equivale a 1,6 milhão de quilômetros percorridos, número equivalente a mais de 40 voltas na Terra", disse a pasta de José Múcio. Confira a íntegra da resposta no final do texto.
Quanto à retirada de invasores, a Funai informou que acompanha, por meio da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Yanomami Ye’kuana, a fiscalização em campo e o controle de acesso pelas bases de proteção em atividade na Terra Indígena.
Em nota, a fundação também destaca que tem atuado em conjunto com órgãos de fiscalização, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Polícia Federal, Força Nacional de Segurança Pública e Exército. O órgão também enumerou as ações desenvolvidas para a desintrusão e assistência aos Yanomami. Confira a nota na íntegra aqui.
O Ministério dos Povos Indígenas não enviou posicionamento ao Brasil de Fato.
Retirada de ponto de abastecimento inviabilizou operações contra garimpo, diz Funai
Conforme o ofício da Funai, as ações de enfrentamento à crise humanitária dos Yanomami tiveram "constantes revezes" causados pela falta de aeronaves disponíveis em Roraima, seja por parte dos militares, mas também pela aviação civil privada, que não tem absorvido a alta demanda de voos à terra indígena. Do tamanho de Portugal, a TI Yanomami tem a maioria das comunidades acessíveis apenas por transporte aéreo.
"Com impacto agravante, a desmobilização gradual do Ministério da Defesa, com a retirada das estruturas de armazenagem e abastecimento de combustível para aeronaves, inviabilizou todas as atividades previstas para o final deste ano, prejudicando a atuação de órgãos como a Funai, Sesai e Ibama", escreveu Wapichana.
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O documento diz ainda que o "gargalo estrutural" no transporte aéreo provocou o "acúmulo de cestas de alimentos destinadas aos Yanomami na Unidade Armazenadora da Conab em Boa Vista, além de outros insumos necessários ao fortalecimento da segurança alimentar ao povo Yanomami, como equipamentos para estruturação de casas de farinha e kits de ferramentas".
Estêvão Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) que começou a atuar junto aos Yanomami há 10 anos, relatou que no dia 3 de dezembro as Forças Armadas deixaram a base federal Palimiu, no rio Uraricoera, um dos pontos de garimpo mais críticos da terra indígena.
"Os militares retiraram todo o efetivo que estava ali na base do Uraricoera. Já não tem mais ninguém. E também deslocaram vários equipamentos importantes de apoio logístico para outras operações que o próprio Ibama e a Polícia Federal estavam com planos de começar a fazer agora no fim do ano", afirmou o pesquisador do ISA.
Segundo Senra, em 17 de novembro os militares desmontaram o ponto de armazenamento de combustível e abastecimento de aeronaves na região do Surucucu, outra área que tinha forte presença garimpeira antes da operação federal.
De acordo com uma reportagem no site da Força Aérea Brasileira, a estrutura de apoio às aeronaves foi instalada em janeiro dentro da terra indígena e servia para atender novas aldeias necessitadas de atendimento humanitário. Sem ela, o ponto de abastecimento dos aviões e helicópteros mais próximo ficava em Boa Vista (RR).
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"Então a expectativa é de que vai ter uma 'festa do crime' agora no Natal. Há uma tendência de aumentar esse tipo de invasão, porque os garimpeiros sabem que a taxa de fiscalização diminuiu", alerta o pesquisador.
Líder indígena pede bloqueio de alimentação e internet dos garimpeiros
Dário Kopenawa, que representa os Yanomami, disse que nas últimas semanas o garimpo se espalhoi para comunidades onde até então não havia chegado. É o caso da porção da terra indígena que fica no estado do Amazonas, onde a mineração ilegal nunca teve presença consolidada.
A Hutukara Associação Yanomami defende que as Força Aérea Brasileira (FAB) volte a restringir o espaço aéreo, como ocorreu no início da operação de expulsão dos garimpeiros. A estratégia funcionou porque conseguiu estrangular a atividade predatória, que segundo a entidade, tem laços com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
"Polícia Federal, Forças Armadas, Funai e Ibama têm que bloquear a internet dos garimpeiros e também transportes e alimentação. Isso tem que ser uma força tarefa com inteligência para fazer isso. Se fizer isso, os garimpeiros vão sentir fome e vão fugir da terra Yanomami", defendeu Kopenawa.
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O líder indígena também afirma que os invasores estão se aproximando de indígenas isolados, aqueles que não têm contato significativo com os não indígenas. Essas populações morrem rapidamente de doenças infectocontagiosas e são mais suscetíveis à violência dos garimpeiros.
"O povo Yanomami quer a desintrusão do garimpo ilegal. Imediatamente. Por proteção dos nossos isolados. Depois da desintrusão, povo Yanomami queremos posto de fiscalização para proibir a entrada dos garimpeiros ilegais", reivindicou.
Outro lado
A nota enviada ao Brasil de Fato pelo Ministério da Defesa também destacou os números de prisões e apreensões feitas pelas Forças Armadas na Terra Indígena Yanomami.
"Desde o início da força-tarefa do Governo Federal em território Yanomami, em janeiro, o apoio das Forças Armadas aos órgãos de segurança pública e ambiental, como a Polícia Federal (PF) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), resultou em R$ 55 milhões em apreensões e multas, bem como na detenção de 164 garimpeiros, encaminhados aos órgãos competentes. Também foi realizada a apreensão de 48 toneladas de cassiterita, 1.859 gramas de ouro e 1.120 equipamentos utilizados em práticas ilegais", informou a pasta.
*Matéria atualizada em 27 de dezembro para inclusão de posicionamento da Funai e da presidenta da fundação, Joenia Wapichana.
Edição: Thalita Pires