MEIO AMBIENTE

Área remanescente do bioma Pampa corre risco de virar loteamento urbano em Viamão, no Rio Grande do Sul

Servidores alertam para prejuízos ambientais que podem decorrer de negociação entre prefeitura e governo do estado

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Sede administrativa e parte da área do centro que pertencia à extinta Fepagro, que totaliza 148 hectares, dos quais a prefeitura deseja 88 - Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto/BdF RS

Uma área de mais de 148 hectares na Região Metropolitana de Porto Alegre, que abriga fauna e flora remanescentes do bioma Pampa, com espécies ameaçadas de extinção, cursos hídricos, áreas de preservação ambiental e pesquisas agropecuárias corre risco de perder mais da metade de seu território para a especulação imobiliária.

O município de Viamão manifestou interesse em adquirir cerca de 88 hectares da área do governo do Rio Grande do Sul, em troca de uma dívida. O alerta parte de servidores estaduais que trabalham no Centro de Pesquisas de Viamão (CPV), vinculado ao Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária (DDPA) do governo do estado.

:: Sob a pressão do avanço da soja, Pampa já é o segundo bioma mais devastado do Brasil ::

O CPV fazia parte da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), até esta ser extinta em 2017, e hoje prossegue os trabalhos como departamento da  Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi). Localizado na saída de Viamão e não muito longe do centro da cidade, a área fica em região de formação do rio Gravataí, está nos limites no norte do bioma Pampa e abriga ambientes naturais distintos como afloramentos rochosos, campos secos, fragmentos florestais e banhados. Por conta dessa riqueza, o local é utilizado por pesquisadores dos departamentos de Botânica, Zoologia e Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).


Barragem de 11 hectares entre vegetação nativa no território do Centro de Pesquisas / Foto: Arquivo pessoal

A bióloga Ana Porto é uma das pesquisadoras da Ufrgs que desenvolve investigações científicas no local. Conforme ela, a área que corre risco de virar um bairro residencial "é uma relíquia campestre de bioma Pampa importante sem registros de degradação. Nós fizemos um levantamento de 15 hectares dessa área e encontramos mais de 300 espécies vegetais, algumas ameaçadas de extinção", exemplifica. De animais de grande porte, por exemplo, refugiam-se no local bugios e capivaras.

Ainda segundo Ana, que é pós-doutoranda na federal gaúcha e integra a Coalizão Pelo Pampa, "a área é de muita importância para nascente e reabastecimento do lençol freático que abastece Porto Alegre e região". Entre as nascentes e corpos hídricos e suas respectivas áreas de preservação permanente (APP) dentro do território do Centro de Pesquisa, destacam-se a presença de um açude de 11 hectares e o arroio Medanha, contribuinte importante da bacia do rio Gravataí.

Servidores temem pelo meio ambiente e pelo trabalho de pesquisa

Trabalham atualmente no Centro de Pesquisa nove servidores públicos. A unidade desenvolve quatro linhas de pesquisa: piscicultura, cultivos protegidos, fruticultura e agroenergia. Conforme o DDPA, ao qual o CPV está vinculado, o objetivo de seus centros é conduzir pesquisas agropecuárias e oferecer serviços de diagnóstico às cadeias produtivas do estado.

O Brasil de Fato RS conversou com um servidor do CPV, que preferiu não se identificar, e trouxe o sentimento de angústia da equipe. "Estamos apreensivos com a perspectiva de venda ou doação de grande parte das áreas de pesquisa e conservação dos recursos naturais do bioma Pampa para contemplar a expansão imobiliária e o enriquecimento de poucos em um município tão carente. A área faz parte da bacia do rio Gravataí, possui dois córregos, vertentes, banhados e que serve como uma esponja para controlar e manter o fluxo de água que chega ao rio", pontua.


Empresa de consultoria foi contratada pela prefeitura para fazer laudo de avaliação das terras / Foto: Reprodução

Segundo ele, assim que os servidores souberam dos planos da prefeitura de Viamão de comprar parte do centro, saíram em defesa da área. "Juntamos documentos e entramos com uma ação civil pública no Ministério Público", conta. Além da importância para o bioma Pampa, o servidor destaca a relevância da área para o desenvolvimento de pesquisas que geram tecnologia para a sociedade.

Entre os trabalhos desenvolvidos pelos trabalhadores, ele destaca o banco de germoplasma de butiazeiro, que preserva um pomar de mais de 200 indivíduos do gênero Butia spp, e o banco de germoplasma de cana-de-açúcar com 42 acessos oriundos de diversas regiões do estado. Estes são fontes de estudos para o potencial produtivo. Há também no local um horto de plantas medicinais e estudos voltados à piscicultura e ao manejo de abelhas nativas.


Arroio Mendanha, plantas medicinais e estufa com mudas de butiá / Fotos: Arquivo pessoal

O número de beneficiários diretos atendidos pelo Centro de Pesquisa é de aproximadamente 75 pessoas. Dentre elas pode-se destacar a comunidade escolar de nível técnico (estudantes dos cursos de técnico agrícola) e de nível superior (estudantes de graduação, de mestrado e doutorado das faculdades de agronomia, medicina, veterinária, zootecnia, biologia e farmácia), entre outros (comunidade do entorno e agricultores que buscam informações técnicas para as atividades na propriedade rural).

Preservar um bioma em risco de extinção

O servidor chama a atenção para a contradição no discurso do governo estadual, que recentemente, na COP28, nos Emirados Árabes, se colocou como protagonista na defesa do bioma Pampa, em discurso do vice-governador Gabriel Souza (MDB), mas que "quer vender área pública de preservação de uma últimas áreas remanescentes do bioma na Região Metropolitana de Porto Alegre".

O Pampa é o bioma do país que mais perdeu área nativa neste século, é o segundo mais devastado e é um dos menos protegidos. Artigo científico assinado pelo bióloga Ana Porto e outros pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Botânica da Ufrgs, em parceria com servidores que atuam no Herbário do Laboratório Brasileiro de Agrostologia do Centro de Pesquisa, publicado na Revista Bio Diverso, afirma que os "remanescentes campestres no estado do Rio Grande do Sul estão desprotegidos: apenas 0,6% do Pampa está dentro de unidades de conservação integral".

A publicação trata-se de um guia ilustrado da flora campestre do local. Apresenta as 315 espécies vegetais catalogadas no Centro de Pesquisa e ressalta a importância da manutenção da área. "Raros são os campos bem conservados no Pampa atualmente. Portanto, a área avaliada no Centro de Pesquisas Viamão é um destes poucos remanescentes de grande qualidade em termos de número de espécies nativas encontradas, extensão de área e quantidade de espécies ameaçadas de extinção", diz trecho do artigo.


Guia ilustrado de flora campestre reúne riqueza de espécies encontradas no centro / Foto: Reprodução

A Coalizão pelo Pampa, que reúne mais de 20 entidades entre associações de servidores da área ambiental, universidades, grupos de pesquisa e ONGs, engajadas na conservação do bioma, compartilha da mesma posição. Recentemente, enviou ofício à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) destacando a necessidade de criação de Unidades de Conservação (UCs), a fim de enfrentar os riscos iminentes da extinção do bioma.

O ofício alerta que áreas da extinta Fepagro, tanto a de Viamão, quanto as de São Gabriel e Hulha Negra "correm risco de serem destinadas à atividades agrícolas intensivas como o monocultivo de soja ou até a empreendimentos imobiliários, sem nenhuma avaliação ambiental prévia a essa concessão". A Coalizão pede para que "todas as áreas estaduais que estão em análise para destinação tenham uma avaliação ambiental pela Divisão de Unidades de Conservação (DBio/SEMA) para a verificação de seu potencial para criação de Unidades de Conservação".

Processo de compra para abater dívidas

A ação instaurada do Ministério Público estadual para averiguar a possível alienação da área pública foi arquivada pela promotora de Justiça Annelise Monteiro Steigleder, em novembro de 2023, após serem ouvidos servidores, pesquisadores e governo estadual. A decisão afirma que a situação é "desprovida de elementos de prova" que motive instauração de inquérito civil. Justifica que a área de 60 hectares que restar após a venda é "suficiente e adequada para a continuidade das pesquisas e atividades", mantendo "corpo d'água e estrutura predial".

Os servidores, porém, seguem apreensivos com o futuro do Centro de Pesquisa e com as áreas de relevância ambiental do entorno. O temor é baseado no empenho realizado pela prefeitura de Viamão, que em 2021 conseguiu aprovar projeto de lei que modificou o uso do solo na região, com o objetivo de torná-la urbana, e desde então vem pedindo ao governo a cedência dos 88 hectares para destinar à construção de unidades habitacionais.


Ofício da prefeitura de Viamão enviado à Secretaria de Agricultura / Foto: Reprodução

Em ofício assinado em janeiro de 2022 pelo então prefeito Valdir Bonatto (PSDB), que hoje é deputado estadual, a prefeitura reforçou um pedido realizado anteriormente ao governo do estado, a intenção de receber a área do Centro de Pesquisa como forma de quitar parte de uma dívida de R$ 6,932 milhões, referentes a programas estaduais de saúde de 2014 a 2018 executados pelo município e não empenhados pelo estado.

No mesmo ano, o município contratou uma empresa de consultoria que realizou um estudo de viabilidade econômica a partir da divisão dos 88 hectares em 2.646 lotes de 200 metros quadrados, avaliados cada um em R$ 102 mil. O laudo conclui que o valor de compra e venda da área total é de R$ 3,97 milhões, ao custo de R$ 45 mil por hectare. Valor que a prefeitura sugere como abatimento na dívida do estado em troca da área.


Parte do laudo realizado pela consultoria, em julho de 2022, a pedido da prefeitura de Viamão / Foto: Reprodução

"Um valor questionável os 45 mil reais por hectares, que pelo ITPU o valor estaria mais de 100 mil", critica o servidor, ao apontar mais problemas no processo de compra e venda. Ele também lembra que Bonatto tem ligação com o setor da construção. A declaração de bens da eleição de 2022, quando foi eleito deputado estadual, revela que ele é sócio majoritário da Empresa Viamopolis Construtora e Incorporação Ltda.

O que diz o estado

A redação do Brasil de Fato RS questionou a Secretária da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação a respeito da realização de estudos sobre os impactos ambientais da venda da área para construção residencial, levando em conta ser remanescente do bioma Pampa. "Por parte da Seapi não, tendo em vista que a área do Centro está sendo utilizada dentro das normas vigentes para o desenvolvimento da pesquisa", respondeu o órgão.

A secretaria informou que o interesse pelo negócio partiu da prefeitura de Viamão e que "o que processo está tramitando no governo, para avaliação do pleito, mas não há nenhuma decisão tomada até o momento". Disse ainda que se a venda for concluída, não haverá impacto nos trabalhos desenvolvidos pelo CPV.

A prefeitura de Viamão também foi contatada pela redação, em busca de maiores informações. Foi questionada sobre qual etapa está o processo de compra, quais os planos de loteamento e se existem estudos ambientais. Foram duas tentativas, através de assessorias de imprensa e secretarias municipais, sem retorno.

A luta por uma área visada

Esta não é a primeira vez que o Centro de Pesquisas de Viamão está a perigo de perder parte de sua área. Quando a Fepagro foi extinta pelo então governador José Ivo Sartori (MDB), em 2017, o governo estadual anunciou que construiria um presídio estadual ocupando cerca de 10 hectares da área, com capacidade para 430 detentos. O plano acabou não se concretizando.

O servidor ouvido pelo Brasil de Fato RS conta que todo esse plano de venda para prefeitura de Viamão foi descoberto através de um envio equivocado de email trocado entre o governo estadual e o município. "Enviou sem querer uma planta baixa de loteamento sobre aquela área, por baixo dos panos", pontua.

Os trabalhadores do Centro de Pesquisa prometem seguir lutando para manter o local preservado. "Iremos buscar novamente o MP na defesa da flora, fauna e preservação dos recursos hídricos existentes no local, que é público e um dos últimos remanescentes preservados do bioma Pampa", afirma. Ainda segundo ele, os servidores enviaram também um documento ao secretário da Agricultura do RS solicitando a manutenção da integralidade da área.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko