O ano é 1999. Um senador tucano, de bigode ainda escuro, faz um apelo no plenário por mais verbas para o Programa Calha Norte (PCN), criado no apagar das luzes da ditadura militar. Não se tratava de uma "reivindicação bairrista ou favorecimento irregular", o parlamentar fez questão de reforçar, mas de um "imperativo da nacionalidade".
Quase 15 anos depois, o mesmo político – Romero Jucá (então no PSDB, hoje no MDB) – é investigado por suspeita de corrupção na destinação de verbas do PCN a prefeituras de Roraima. O esquema, que envolveria o pagamento de propina por empresas de engenharia a servidores públicos, teria contaminado a execução de mais de R$ 500 milhões em convênios ao longo de 5 anos.
Esta é a segunda matéria de uma série sobre o Calha Norte, que mostra impactos do programa aos povos da Amazônia e aos cofres públicos. Para entender como a gestão de repasses bilionários para obras e serviços básicos em 10 estados passa até hoje pelo Ministério da Defesa (MD), leia a primeira reportagem.
Na mira do TCU e da PF
Presente em 783 municípios, em todos os estados da Amazônia Legal e em Mato Grosso do Sul, o PCN é visto como caminho rápido e menos burocrático para as prefeituras acessarem recursos federais. Considerando apenas os convênios em execução, o valor total é de aproximadamente R$ 3 bilhões.
Mais do que mera agilidade nos trâmites, o histórico de auditorias e investigações evidencia problemas na fiscalização dos recursos e acompanhamento das obras – atribuições do Departamento Programa Calha Norte (DPCN), vinculado ao MD e dirigido desde 2019 pelo general de divisão Ubiratan Poty.
O primeiro acórdão (decisão colegiada) do Tribunal de Contas da União (TCU) que menciona inconformidades relacionadas a esse projeto é de 1994, referente a processo aberto 7 anos antes, nos primeiros meses de Calha Norte. Desde então, foram mais de 300.
Os acórdãos mais recentes, de 2023, citam irregularidades nas contas de convênios para execução de construção de calçadas em Xapuri (AC); recuperação de estradas vicinais em Alto Alegre (RR); construção de ginásio esportivo em Autazes (AM); serviços de coleta e tratamento de resíduos sólidos em Santana (AP); reforma de estádio de futebol no município de Borba (AM); implantação de rede elétrica em Caroebe (RR); e diversas obras públicas em Rondônia e Roraima. A maioria são decisões em que o TCU nega recursos interpostos pela defesa.
Além de problemas pontuais, há menções à fragilidade da fiscalização das contas e da execução das obras no âmbito do PCN de maneira mais ampla. O TCU auditou, por exemplo, 9 convênios para obras de infraestrutura em Cutias, Tartarugalzinho e Mazagão, todas no Amapá, entre 2017 e 2018, totalizando R$ 12,5 milhões. Conforme os auditores, verificou-se "direcionamento de licitação, superfaturamento, pagamento de serviços não efetivamente executados e recebimento de obras com falhas visíveis de execução. (...) Entre as principais causas para a ocorrência das irregularidades apuradas, destacam-se inexistência ou deficiências de controles internos e de gerenciamento de riscos, e a deficiência no acompanhamento e na fiscalização das obras".
A recorrência desses problemas é demonstrada em auditorias ocorridas a partir de 2017 no Amapá, Rondônia e Roraima. Ao se debruçar sobre 32 convênios para obras que totalizavam R$ 48 milhões, auditores apontaram "restrição à competitividade nos certames, falhas na habilitação das empresas concorrentes, superfaturamento por serviços não executados e irregularidades na contratação da mão de obra". Os ministros do TCU ponderaram que "muitos dos indícios representavam falhas de menor potencial ofensivo, que não permitiam concluir pela existência de conluio, fraude ou direcionamento das licitações, como aventado pelos auditores".
Em seu voto, o relator Jorge Oliveira disse considerar "pertinente determinar à Secretaria-Geral de Controle Externo do TCU que inclua em seu próximo plano de fiscalização auditoria sobre o programa Calha Norte, com foco na atuação do Ministério da Defesa". O acórdão é de setembro de 2023, e a reportagem não conseguiu confirmar se o plano para 2024 incluirá o pedido de Oliveira.
Ao longo de 2016, segundo as auditorias, os convênios celebrados via Calha Norte totalizaram R$ 500 milhões. Porém o DPCN – que deveria fiscalizar a execução das obras – realizou apenas 20 viagens à região abrangida pelo programa. No mesmo ano, a Polícia Federal (PF) prendeu 4 acusados de desvio de verbas do PCN na prefeitura de Tefé (AM), para construção de calçadas e meios-fios. Houve ainda 6 mandados de condução coercitiva e 14 de busca e apreensão, em Tefé e Manaus. A operação Caucana, da PF, descobriu que as obras não haviam saído do papel.
No Amapá, o prefeito de Oiapoque (AP) foi afastado em outubro deste ano por suspeita de desvio de R$ 1,5 milhão de verbas repassadas via Calha Norte para obras que também não foram executadas. No mesmo estado, em abril de 2022, a PF já havia revelado uma fraude nas obras do estádio Charles Brito, no município de Porto Grande: a empresa vencedora da licitação recebeu R$ 750 mil, repassou R$ 510 mil para uma subcontratada e ficou com R$ 240 mil. Os primeiros indícios de fraudes em Porto Grande datam de 2019, quando a Câmara Municipal instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o direcionamento de recursos do Calha Norte a empresas de amigos do então prefeito. A comissão caminhou com dificuldades e acabou abafada por vereadores aliados do prefeito, que eram maioria.
Em Roraima, as investigações chegaram a uma das figuras políticas mais emblemáticas da Nova República: o ex-ministro e ex-senador Jucá, mencionado no início da reportagem – o mesmo que sugeriu em 2016 um golpe "com o Supremo, com tudo" contra a então presidenta Dilma Rousseff (PT). Em novembro de 2022, foi deflagrada pela PF e pela Controladoria Geral da União (CGU) a operação Imhotep, para apurar fraudes em convênios com municípios do estado entre 2012 e 2017. Foram cumpridos mandados de busca e apreensão na casa de Jucá e em outros 21 endereços.
Segundo os investigadores, Jucá e os servidores públicos envolvidos teriam recebido ao menos R$ 15 milhões em propina de 3 empresas de engenharia. Indícios apontam que o ex-senador atuaria para "travar" pagamentos de verbas oriundas de emendas de sua autoria caso não houvesse propinas. Os crimes investigados são fraude em licitação, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Hoje são 1.354 convênios em execução com estados e municípios por meio do Calha Norte, volume que desafia a capacidade de fiscalização do departamento do MD. O montante aproximado, na soma dos convênios, é de R$ 3 bilhões.
Na avaliação do professor Samuel Jesus, do Grupo de Estudos de Política Internacional da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), as suspeitas de irregularidades em âmbito local refletem interesses políticos que atravessam o PCN desde a distribuição das emendas em Brasília, conforme descrito na primeira reportagem da série.
O pesquisador faz um paralelo com a CPI que apurou o suposto favorecimento a uma empresa estadunidense por meio do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), dentre outras suspeitas de desvios no âmbito do Ministério da Defesa, em 2002. "Não é diferente no Programa Calha Norte. E, sem sombra de dúvidas, isso significou [no governo Bolsonaro] a consolidação de uma aliança política, que começa através das emendas ao relator [orçamento secreto]".
Incentivo ao garimpo
"O Calha Norte sempre confrontou muito fortemente os direitos territoriais dos povos indígenas", lembra Chico Gunther, membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). "Ele pretendia, por exemplo, criar núcleos populacionais no entorno de pelotões militares, para 'vivificar' as fronteiras, como se os indígenas que viviam e continuam vivendo lá não fossem gente, ou não fossem confiáveis."
Com o advento do Calha Norte, em 1985, a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional passou a interferir na política indigenista, vetando as demarcações de terras na faixa de fronteira – 150 km de largura ao longo das fronteiras terrestres. O objetivo era não prejudicar a entrada de madeireiras e mineradoras na região habitada por povos indígenas.
A memória dos capítulos mais dramáticos dessa história conduz, novamente, ao nome de Romero Jucá. Ele era o presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em setembro de 1987, quando um decreto presidencial estabeleceu que terras ocupadas por indígenas considerados "aculturados" ou em "adiantado processo de aculturação" deveriam ser demarcadas como "colônias indígenas". Nessas colônias – no entorno do Rio Negro, por exemplo –, seriam implementados projetos de desenvolvimento e "integração", nos moldes da ditadura militar.
Como presidente da Funai, Jucá autorizou que indígenas da Amazônia firmassem contratos com madeireiras para derrubada de árvores nativas. Também é creditada a ele a decisão que reduziu o território destinado aos Yanomami a limites inferiores aos definidos pela própria Funai anteriormente. O período coincide ainda com a ampliação de uma pista de pouso na fronteira com a Venezuela, que impulsionou a entrada de garimpeiros em Roraima.
A aposta do governo Sarney era abrir a terra Yanomami para cerca de 80 mil trabalhadores oriundos do garimpo de Serra Pelada, no Pará, que já dava sinais de esgotamento. Ao ampliar a pista, na região do Paapiu e Couto de Magalhães, as Forças Armadas não construíram nenhuma guarnição militar para coibir o ingresso de invasores. Em 1987, a Funai ainda expulsou ONGs e missões religiosas e determinou a retirada de equipes de saúde da terra Yanomami, em plena epidemia de malária e gripe.
Ao deixar a Funai, Jucá foi premiado pelo governo Sarney com a nomeação para governar o território que, após a Constituição de 1988, se tornaria o estado de Roraima.
A tese da "aculturação" foi rejeitada na Constituinte, mas os indígenas continuaram sofrendo as consequências do garimpo. Em janeiro de 2023, a Agência Sumaúma noticiou que 570 crianças de até 5 anos morreram de doenças evitáveis entre 2019 e 2022. Os dados e imagens causaram comoção dentro e fora do Brasil. Em resposta, o governo Lula (PT) decretou emergência de saúde na área e anunciou medidas como o envio de equipes médicas, instalação de um hospital de campanha e ações de repressão ao garimpo ilegal.
Ao menos 44 indígenas foram assassinados em áreas de garimpo em Roraima sob governo Bolsonaro. Os homicídios se somam a um cenário de desnutrição, violência sexual, contaminação por mercúrio e surtos de doenças como malária – consequências do avanço do garimpo ilegal, que devastou 1.782 hectares da terra indígena Yanomami só em 2022.
Uma das rotas mais utilizadas por garimpeiros para invadir a terra indígena Yanomami fica próxima ao 4º Pelotão Especial de Fronteira (PEF) do Exército, construído no âmbito do programa Calha Norte na localidade de Surucucu, município de Alto Alegre (RR). "[O pelotão] teve um papel absolutamente omisso, e só voltou a atuar agora [após o fim do governo Bolsonaro]", lembra Chico Gunther, do Cimi.
Mudanças e permanências
Elaborada pela Escola Superior de Guerra, a doutrina de segurança nacional tornou-se lei em 1968 e visava eliminar os "inimigos internos", consolidando o alinhamento do Brasil aos EUA em meio à Guerra Fria. O Calha Norte nasce sob os ecos dessa doutrina, estendendo para os anos de democracia uma visão integracionista em relação aos povos indígenas.
"Quando você questiona os militares, os comandos, eles dizem que é um projeto civil, governamental, e que eles são apenas os executores. Mas a percepção deles do que vem a ser um projeto civil é sempre uma perspectiva assistencialista, e nunca de promover a autonomia dos povos indígenas, quilombolas. É sempre uma tutela", enfatiza Samuel de Jesus, da UFMS.
Mesmo nos governos PT, não apenas o fortalecimento do PCN, mas também o desenvolvimento do Sivam, a manutenção de órgãos como a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e a construção de obras como a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, refletem a permanência do discurso de integração da ditadura. "A doutrina de segurança nacional se mantém. Ela é parte componente do ethos militar, e será de difícil dissipação", completa o professor.
Cabe lembrar que um dos símbolos da perspectiva integracionista, a construção da Rodovia Transamazônica, nos anos 1970, afetou diretamente 29 grupos indígenas, incluindo 11 etnias que viviam isoladas. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao menos 8,3 mil indígenas foram mortos na ditadura militar, entre massacres, remoções forçadas de seus territórios, doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Ou seja, os impactos da militarização sobre os povos indígenas começam antes do PCN, mas são amplificados por ele ao longo dos anos.
"O discurso integracionista, que foi levantado e potencializado na ditadura militar, tenta a todo custo impor essa ideia de que nós não fazemos parte do contexto nacional. Isso ficou muito evidenciado também no governo Bolsonaro, e é uma ameaça porque quer forçar a gente aceitar uma identidade que não é nossa", afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
"Essa ideia integracionista quer que a gente siga a cultura do não indígena, mas também quer adentrar os nossos territórios. O integracionismo sempre foi para usurpar os nossos territórios, colocá-los em especulação imobiliária, produção agrícola e garimpo. Querem impor o que nós não somos e o que nós não queremos ser. Isso se torna ainda mais violento porque, além do físico, ainda temos essa violência identitária", completa Tuxá.
Em 2009, no segundo mandato de Lula, foi lançado o projeto Amazônia Protegida, para fortalecer a presença militar na região. O projeto, que constava na Estratégia Nacional de Defesa, previa a instalação de 18 pelotões de fronteira até 2030.
Cabe recordar que o governo Dilma Rousseff ampliou os gastos com espionagem oficial e até o espaço físico dedicado aos militares no Palácio do Planalto, construindo anexos para abrigar os novos funcionários contratados pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Já no governo Michel Temer (MDB), generais voltaram a ocupar postos estratégicos e, pela primeira vez desde 1999, o MD foi comandado por um militar, o general Joaquim Luna e Silva.
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Adaptação
A professora Adriana Marques, que coordena o Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chama atenção para as adaptações que ocorreram no PCN, principalmente a partir dos anos 2000, como forma de tentar justificar sua existência em um novo contexto político.
"O Calha Norte e a visão dos militares em relação à região e aos povos indígenas vão mudando ao longo dos anos, porque outras políticas públicas vão sendo implementadas nas áreas de meio ambiente, de direitos humanos. Então, eles [militares] têm que se adequar a essa nova realidade", analisa.
"Particularmente durante o primeiro governo Lula, foi criado um protocolo sobre o relacionamento que eles deveriam ter com os povos indígenas em suas terras. Isso foi revogado a partir do governo Temer, e com Bolsonaro também não havia nenhuma preocupação com esses protocolos", completa a professora da UFRJ.
Em 16 de janeiro de 2023, já no novo governo Lula, foi aprovada uma nova diretriz para o relacionamento do Exército com as comunidades indígenas. Segundo essa portaria, "proteger e valorizar a cultura indígena preserva o patrimônio histórico cultural do Brasil e do Exército".
Um corpo estranho
As Forças Armadas, especialmente o Exército, se opuseram à demarcação de terras indígenas no contexto da promulgação da Constituição de 1988. Uma das intenções era evitar sobreposições com pelotões e de operações de treinamento e vigilância nos quase 17 mil quilômetros de fronteira terrestre.
A demarcação da terra Yanomami, homologada em maio de 1992, consolidou a interpretação do Estado brasileiro de que não há incompatibilidade entre a presença militar e os direitos territoriais indígenas – e de que estes não representam uma ameaça à soberania nacional. No interior das Forças Armadas, porém, esse entendimento nunca foi consenso.
"Um dos primeiros conflitos entre militares da ativa e os governos PT foi justamente a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol [homologada em 2005]. Os militares interpretaram aquilo como uma violação da soberania nacional, inclusive com uma manifestação pública do general Augusto Heleno, então comandante militar da Amazônia", relembra o geógrafo Licio Monteiro, autor do livro "Esperando os bárbaros: geopolíticas da segurança no Brasil do século XXI".
Hoje há cerca de 185 terras indígenas na faixa de fronteira. Segundo o decreto 4.412 de 2002, as Forças Armadas têm liberdade de trânsito, autonomia para a instalação de infraestrutura e implementação de projetos em terras indígenas. Os códigos de conduta, diretrizes e protocolos mencionados acima são tentativas de regular essa convivência, que frequentemente esbarram na dificuldade de fiscalização e acompanhamento.
Desde 1985, quando o Calha Norte começou a ser gestado, houve um crescimento exponencial de unidades militares na região Norte, principalmente na Amazônia. Atualmente são cerca de 25 mil homens. Há 6 brigadas de infantaria de selva, no Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima; um Grupamento de Engenharia, com batalhões no Acre, Rondônia e Roraima, encarregado da infraestrutura dos quartéis, construção e manutenção de estradas; e 23 Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs), com mais de mil militares só na região conhecida como "Cabeça do Cachorro", na fronteira com Colômbia e Venezuela. Os pelotões também contam com soldados indígenas – o alistamento, neste caso, não é obrigatório, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Sobre a presença dos pelotões, Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, analisa que há "situações que são positivas, quando estão ali quando solicitados e para levar ajuda humanitária. Mas também tivemos situações, como na pandemia de covid-19, onde agentes das Forças Armadas eram o vetor do vírus e levavam doenças para terras indígenas".
"O papel das Forças Armadas, que é de proteção, no governo Bolsonaro foi deturpado e perdeu a sua característica, e principalmente a sua missão institucional de proteger os brasileiros. A proteção dos povos indígenas deixou muito a desejar", completa.
Às estruturas do Comando Militar do Norte (CMN), com sede em Belém (PA), e do Comando Militar da Amazônia (CMA), com sede em Manaus (AM), somam-se serviços sem relação com a área de Defesa que continuam passando pelo MD, como as chamadas ações cívico-sociais – "atividades de caráter temporário, episódico ou programado de assistência e auxílio às comunidades, promovendo o espírito cívico e comunitário dos cidadãos".
"São atividades que, na verdade, poderiam ser realizadas pelos ministérios da Infraestrutura, da Educação, do Desenvolvimento Regional, porque não têm significado militar por si só", ressalta Adriana Marques, da UFRJ.
Para o professor Samuel de Jesus, da UFMS, ao relegar aos militares a execução de políticas em áreas como saúde, educação e assistência social na Amazônia, o Estado brasileiro deixa de promover o desenvolvimento das comunidades.
"O Calha Norte promoveu a desterritorialização de povos indígenas que viviam em áreas de fronteira, devido à instalação dos pelotões. Isso já demonstra que é um projeto militarista, que não tem nenhum compromisso com a população amazônida, com as pessoas que vivem ali", lembra. "Não há uma perspectiva de desenvolvimento humano. A doutrina de segurança nacional continua presente e seus princípios ainda são norteadores de todos os projetos colocados na agenda pelas Forças Armadas."
Em 2008, um artigo publicado na Revista Interesse Nacional por Beto Ricardo e Márcio Santilli, sócios-fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), listou possíveis incidentes entre indígenas e militares que se tornaram mais frequentes devido à proximidade entre pelotões e aldeias: "Por exemplo, quando são explorados locais sagrados com a explosão de rochas para obter brita para a pavimentação de pistas de pouso, ou corrompidas paisagens e fontes de água em busca de areia; ou em operações de campo realizadas sem aviso prévio da população civil. Ou quando soldados se utilizam, sem prévia autorização, de alimentos coletados em roças indígenas durante exercícios de sobrevivência na selva. Ou quando ocorrem relações sexuais (...), consentidas ou forçadas, gerando ressentimentos e nascidos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais".
O quartel do 6º PEF em Uiramutã (RR), vizinho à Raposa Serra do Sol, foi construído pelo Exército em 2001 sem licença ambiental, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Além do dano ambiental, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) acusou os militares daquele quartel de entrarem na reserva "com armas apontadas" e filmarem e fotografarem os indígenas sem consentimento. Oficiais alegaram à época que tropa foi recebida por indígenas "empunhando arcos e flechas", e que a intenção das fotografias e filmagens era apenas atualizar os mapas da região.
"O pelotão é um corpo estranho dentro das comunidades. Então, os impactos sobre a estruturação sociocultural das aldeias indígenas é muito evidente", afirma Chico Gunther, integrante do Cimi. "A influência da perspectiva integracionista acaba sendo levada para dentro das aldeias e afeta a organização dos povos."
Gunther relembra tentativas de cooptação dos povos originários por parte das Forças Armadas, que foram mal sucedidas devido à capacidade de organização dos indígenas, como no caso da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).
Incompetência
Entrevistados apontam que, ao legitimar a presença das Forças Armadas na Amazônia, o PCN tornou-se um dos pilares da militarização da região pós-ditadura.
A intenção de exacerbar esse processo foi evidenciada desde as primeiras nomeações de Bolsonaro. Os riscos à saúde pública e ao meio ambiente foram analisados em julho de 2019 em um artigo publicado na Environmental Conservation, editada pela Universidade de Cambridge.
Um dos autores, Lucas Ferrante, doutor em Biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), relata que os danos previstos no artigo se confirmaram. "Os militares atrapalharam ações do Ibama, inclusive em terras indígenas, como demonstramos [em 2020] em publicação na revista Science, um dos maiores periódicos científicos do mundo", exemplifica o pesquisador.
"Estamos falando de forças militares atuando dentro da ilegalidade, favorecendo inclusive a ação de garimpeiros em terras indígenas. Povos indígenas são um grupo de risco para covid-19, tanto por fatores socioeconômicos quanto co-evolutivos. E a falta de atuação dos militares contribuiu para que o coronavírus fosse usado inclusive como arma por esses invasores, disseminando a covid nas aldeias", completa o pesquisador.
Em paralelo à nomeação de militares para coordenadorias regionais da Funai e ao uso político da distribuição de verbas do PCN, Bolsonaro assinou em agosto de 2019 um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que autorizava o emprego das Forças Armadas na Amazônia para combater queimadas na região, com resultados desastrosos.
"Muitas vezes, a população acha que os militares podem ser mais preparados para esse tipo de ação, mas o que nós vemos é o Ibama, por exemplo, sempre desempenhando muito melhor as atividades de fiscalização, principalmente no que diz respeito a terras indígenas", ressalta Lucas Ferrante.
O pesquisador critica ainda a exclusão da Funai e do Ibama do Conselho Nacional da Amazônia Legal, liderado pelo então vice-presidente, general Hamilton Mourão, e a gestão "absolutamente catastrófica" do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde, marcada por atrasos na vacinação e no envio de oxigênio em meio à crise em Manaus, em janeiro de 2021.
"O Conselho Amazônia fechou as portas para a sociedade civil, para os pesquisadores. Só tinha militares ali, e as ações foram completamente ineficientes para combater o desmatamento e as queimadas", observa Ferrante. "Os grandes protetores da Amazônia são os povos originários. Os territórios deles têm muito menos desmatamento do que áreas geridas pelo Governo Federal, como as unidades de conservação", reforça.
A reportagem seguinte, que encerra esta série sobre o Calha Norte, descreve os dilemas e dificuldades do governo Lula diante da tarefa de neutralizar as Forças Armadas.
Outro lado
Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa informou à reportagem que o PCN evoluiu e ganhou "importância, reconhecimento e consistência" ao longo das últimas três décadas e meia.
Sobre o histórico de auditorias e investigações que apontam problemas nas contas de convênios realizados por meio do Calha Norte desde 1994, o MD afirma que "o PCN tem recebido com atenção as orientações emanadas pela Corte de Contas, adotado as ações corretivas necessárias de sua competência e buscado aperfeiçoar o seu papel de também contribuir, de forma eficiente, para o cumprimento de políticas públicas de interesse social em sua área de atuação".
Segundo o MD, a metodologia utilizada pelo DPCN para acompanhamento e monitoramento da execução dos projetos "envolve a realização de conferências, workshop, visitas "in loco", exames e verificação de documentos, visando avaliar a suficiência das estruturas, funções e funcionamentos dos controles existentes". Em 2023, houve 539 vistorias presenciais, "entre preliminares (antes do início da obra), intermediárias (no decorrer da execução da obra) e finais (após a conclusão da obra)", realizadas por equipes compostas por engenheiros, técnicos e analistas administrativos.
O PCN também possui métodos de monitoramento à distância, que incluem a análise de relatórios fotográficos georreferenciados e a comunicação constante entre os engenheiros do programa e os engenheiros dos convenentes. "Essas estratégias asseguram uma supervisão contínua e abrangente dos projetos, garantindo que todas as obras sejam vistoriadas de maneira eficaz", ressalta a assessoria de imprensa do MD.
"No que tange à capacidade técnico-operacional e logística, o PCN conta, atualmente, com equipe de servidores e militares das três Forças Armadas, engenheiros e técnicos, que compõem a força de trabalho do Programa, proporcionando um acompanhamento correto e seguro da aplicação do recurso federal. Indiscutível é o reconhecimento de que a capacidade de realizar vistorias em todos os municípios de atuação dos PCN, localizados nas áreas mais inóspitas do país, está relacionada ao competente apoio que as equipes do Programa recebem das organizações militares da Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira", acrescenta a resposta enviada à reportagem.
O MD observa ainda que "após a celebração de convênios, a Portaria Interministerial nº 424/2016, no seu Art. 7º, dispõe que cabe aos proponentes/convenentes a execução e fiscalização diária das obras, incluindo a designação de um profissional habilitado no local da intervenção, com a respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica (ART)".
Em relação ao possível uso político do programa, por meio das emendas parlamentares, o MD informa que "a execução de qualquer projeto no âmbito do PCN é sempre respaldada em questões técnico-jurídicas e operacionais. São os parlamentares, por meio de emendas, que direcionam os recursos para projetos conduzidos pelo PCN".
Sobre as declarações que apontam a falta de uma "perspectiva autonomizadora" e de "desenvolvimento humano" das comunidades locais, a pasta da Defesa enfatiza que "o PCN se caracteriza como um programa federal executor de políticas públicas bem-sucedidas (...), objetivando promover a ocupação e o desenvolvimento ordenado das regiões mais carentes do país, em harmonia com os interesses nacionais, (...) para atendimento de projetos de infraestrutura básica e aquisição de veículos e equipamentos que representam desafios estratégicos que visam a alcançar as fronteiras e aos municípios mais carentes, localizados em áreas longínquas e isoladas, que possuem singularidades que precisam ser consideradas para tomada de decisão".
Conforme a resposta enviada à reportagem, "a integração do programa com as Forças Armadas resulta em capilaridades logísticas decisivas, especialmente na execução de missões em regiões remotas e de difícil acesso. O apoio logístico e os meios de transporte fornecidos pelas Forças Armadas são essenciais para alcançar localidades sem acesso rodoviário, possibilitando a implementação efetiva das políticas públicas, operando em sinergia e agregando um valor único ao programa, especialmente na execução de projetos em áreas desafiadoras".
Por fim, a assessoria de imprensa do MD salienta que "o PCN atua em estrita conformidade com as diretrizes pertinentes, inclusive aquelas que regulamentam o relacionamento das Forças Armadas com as comunidades indígenas".
A reportagem também enviou questionamentos e pediu um posicionamento do ex-senador Romero Jucá. Não houve retorno até a publicação desta matéria.
Também não foi possível obter resposta do Exército sobre o número atual de unidades militares e de homens na região da Amazônia Legal; sobre a suposta omissão do 4º PEF do Exército diante da invasão da terra Yanomami, no governo Bolsonaro; nem sobre o relacionamento do Exército com as comunidades indígenas, de maneira mais ampla.
Caso as respostas sejam enviadas após a publicação, esta matéria será atualizada para incluir o posicionamento dos envolvidos.
Edição: Nicolau Soares e Thalita Pires