ataques golpistas

Supremo é o único a contar sobre 8 de janeiro a quem visita a corte

Já Congresso e Planalto não mencionam a invasão golpista em suas visitas públicas

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Cenário de destruição deixado por bolsonaristas em 8 de janeiro de 2013 - Jefferson Rudy/Agência Senado

O que poderia ser apenas uma metáfora não é. No Supremo Tribunal Federal (STF), a pátria e a família protegem a Constituição. Mas há exato um ano, em 8 de janeiro de 2023, foi justamente quem entoava esses dizeres que roubou uma cópia fidedigna da Carta Magna de 1988 que ficava em um mostruário cercada por duas estátuas: a “La défense du foyer”, nome que pode ser traduzido como “a defesa do lar”, e a “Pro-patria”.

“Esse exemplar foi furtado no dia 8 de janeiro. Foi encontrado lá no interior de Minas Gerais alguns meses depois. É uma cópia bem simbólica que está sendo protegida pela pátria e pela família”, diz, apontando para as estátuas, o guia de uma das visitas públicas realizadas pelo STF.

Em dezembro do ano passado, a Agência Pública participou duas vezes de cada uma das visitas guiadas às instalações do STF e do Congresso Nacional para entender como a memória dos prédios invadidos durante os atos de 8 de janeiro é retratada. No Palácio do Planalto, as visitas públicas estão suspensas desde 2020, com previsão de retorno para o início deste ano. Para se ter ideia, somente o Congresso recebeu mais de 96 mil visitantes entre 1º de janeiro e 19 de dezembro do ano passado, de acordo com a assessoria. 

Dos três prédios invadidos, o STF, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional, que une a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, somente o STF preserva, no dia a dia, a lembrança do que ocorreu no dia 8 de janeiro do ano passado. Os demais escolheram, após terem seus vidros e carpetes trocados, seguir com suas visitas oficiais como se nada tivesse acontecido. 

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No Congresso, o roteiro oficial da visita não cita o 8 de janeiro, mas os guias respondem às perguntas sobre os danos sofridos, sem entrar em detalhes. Mesmo na seção dos presentes protocolares, hoje menor do que um dia foi, já que algumas obras não puderam ser restauradas, nada foi dito de forma espontânea. Questionado, um dos guias disse que a estante que guardava os presentes foi “danificada” durante o ataque, e os exemplares restantes passaram a ser protegidos por “vidros mais fortes”. A maquete tátil que ficava no Salão Verde da Câmara foi esquecida e o espaço vazio parece, para os novatos, sempre ter sido assim. 

Algumas obras, que tiveram seu processo de restauração acompanhado pelo público, após terem sido quebradas, rasgadas, incendiadas ou roubadas pelos invasores golpistas, foram recolocadas em seus lugares, como a tapeçaria de Burle Marx, que voltou em outubro a ornar o Salão Negro, e “A bailarina”, de Brecheret, cuja restauração foi mais rápida, e ainda em 11 de janeiro do ano passado foi posta em seu lugar. Para um olhar leigo e não treinado para reconhecer as marcas da história em uma peça de arte, é impossível perceber o que essas obras sofreram há um ano.

No Palácio do Planalto, “a referida data não faz parte do roteiro de visitação”, respondeu a Casa Civil. Até então, “não há encaminhamento” para a inclusão do 8 de janeiro no roteiro, completou a assessoria. 

Só o STF, alçado ao lugar de principal antagonista por alguns dos invasores, foge à regra. Lá a memória está em todo canto. As lembranças da destruição são repetidas de sala em sala, nos corredores e nas escadas. Os dois guias ouvidos disseram que não sobrou vidraça intacta em todo o primeiro andar. 

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“O prédio é um grande aquário, são vidros e vidros de todos os lados. Então, uma vez que essas pessoas subiam nas marquises, foi impossível fazer a contenção e elas entraram pelos quatro cantos do prédio. Nenhuma das vidraças desse andar aqui ficou intacta, todas foram bem afetadas”, disse um deles. 

“Entraram por tudo, quebraram tudo e esse prédio ficou bem danificado. A destruição foi muito grande. Eles conseguiram destruir todos os vidros que ficam nas laterais, todos precisaram ser trocados”, afirmou o outro. 

Como às vezes é importante ver para crer, estão lá, guardadas com esmero, as pedras portuguesas retiradas da pavimentação da Praça dos Três Poderes e as bolas de vidro usadas para “quebrar vidraças, estilhaçar espelhos, destruir estruturas de vidro e danificar esculturas”. Os itens “encontrados em grande quantidade dentro do Palácio do Supremo Tribunal Federal”, de acordo com a legenda da obra, estão expostos como em um museu, protegidos por uma redoma.

No mesmo local, um “ponto de memória” que é parte da visita oficial ao prédio, são reproduzidas imagens inéditas da invasão. Também compõem a lembrança daquele dia uma cadeira de trabalho e uma cópia da Constituição queimadas, e os restos de uma “bengaleira em porcelana” datada do século 19, que decorava a antiga sede do STF no Rio de Janeiro. Os “cacos” são uma amostra do que não pôde ser recuperado após aquele dia. 

“Exposições de peças danificadas e de provas do ataque, realizadas em locais de circulação do Tribunal, têm o intuito de documentar e ressignificar o sombrio episódio do 8 de janeiro, como também de contribuir para que esse dia não caia no esquecimento, ou mesmo seja banalizado com o passar do tempo”, justifica um texto escrito na parede do ponto de memória. “Os ambientes da reflexão ilustram a perda injustificada do inestimável legado público e institucional. Com a apresentação de símbolos da destruição, o projeto reafirma, de maneira definitiva, que a história da Suprema Corte é inquebrantável”, finaliza. 

Os pontos de memória fazem parte da campanha Democracia Inabalada, que contou também com a produção de um livro e um documentário sobre a destruição e reconstrução do tribunal após os ataques. Na Sessão de Abertura do Ano Judiciário de 2023, a então presidente do tribunal, ministra Rosa Weber disse: “Mesmo que desejassem destruir mil vezes o Supremo Tribunal Federal, (…) mil e uma vezes reconstruiríamos”. A frase está eternizada em uma parede do museu do palácio. Weber, hoje aposentada, é apontada pelos guias como uma das grandes idealizadoras da iniciativa de memória dos ataques.

Porém, na visita do STF, a história da invasão não é contada apenas nos locais reservados a isso. Nos dias de visita da reportagem ao tribunal, as consequências do 8 de janeiro integraram todo o passeio. O dia deixou suas marcas no Salão Nobre, onde são recebidos com honra os chefes de Estado que vêm ao Brasil. Lá fica um tapete persa que foi inundado quando o sistema anti-incêndio identificou fumaça e tentou combater o fogo. A tinta da obra se soltou e sujou o carpete. Hoje, o tapete está posicionado de forma a mostrar a marca deixada naquele dia, como a mesa de mármore translúcido, que foi quebrada e restaurada com suas cicatrizes expostas. “Esse foi um dos salões mais afetados”, disse um dos guias, que ressaltou que ali há peças com mais de 400 anos.

Já no plenário da corte, faltam cadeiras. Várias foram destruídas e não há substituição. Se antes cabiam 246 pessoas, hoje somente 206 podem acompanhar as sessões, de acordo com um dos guias. “Esse plenário ficou irreconhecível [após a invasão]”, disse. Quando entramos na sala, que é o ponto alto da visita, ele chamou atenção para o carpete fofo, recém-trocado, já que o antigo, que foi queimado e inundado, teve que ser completamente retirado depois de deixar todo o plenário com cheiro de mofo por meses. “Aquele cheiro característico do dia 8 de janeiro”, resumiu.

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Ele apontou também que faz falta aos corredores o único busto feminino que fazia parte de um acervo composto por vários homens: o busto “A República”, esculpido em mármore carrara em 1912 por Nicolina Couto, também uma mulher. “Era um busto lindo. Era basicamente a figura de Marianne, a representante da Revolução Francesa, abrasileirada para representar a nossa República”, descreveu. A escultura “Os dois magistrados”, feita em pedra vulcânica por Remo Bernucci, foi despedaçada e também não voltou a ser exposta. 

Os sofás do Salão Branco, antes bege para combinar com o chão, hoje são pretos. E mesmo o que não foi atingido sofreu com o ataque. É o caso do Museu Ministro Sepúlveda Pertence, que também foi inundado pelo sistema anti-incêndio e precisou de reparos no sistema elétrico, de acordo com um dos guias. O 8 de janeiro deixou marcas, algumas visíveis e mais óbvias, outras não. Diretas e indiretas. 

Enquanto isso, no Congresso Nacional, a bailarina parece nunca ter parado de dançar. 

A Câmara disse à Pública que o objetivo da visita é “apresentar o patrimônio artístico e arquitetônico do palácio, falar sobre o processo de elaboração das leis, a história e a importância do Legislativo”. Afirmou também que os guias foram orientados para responder às perguntas dos visitantes sobre o tema, que eram comuns no início do ano passado, mas diminuíram “com o passar dos meses”. A Câmara acrescentou ainda que está preparando “uma série de eventos, nos meses de janeiro e fevereiro, para lembrar a passagem de um ano dos ataques do dia 8 de janeiro”, que serão incluídos na visita no período. 

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Já o Senado disse que “desde que o programa de visitação ao Congresso Nacional foi instituído, o roteiro segue o mesmo padrão” e que a Casa já fez a exposição física “Reflexões do Senado — 100 dias da Invasão” sobre o dia 8 de janeiro, em abril de 2023. Confira a resposta na íntegra. O STF não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. 

Neste dia 8, um ato chamado “Democracia Inabalada” marcará um ano dos ataques golpistas em Brasília, e deve reunir no Congresso cerca de 500 convidados, entre autoridades e representantes da sociedade civil.