Em um espaço improvisado no Parque das Tribos, primeiro bairro indígena reconhecido pela prefeitura de Manaus, a sede do Ateliê Derequine estimula o trabalho artesanal e sustentável de estilistas indígenas dos povos Witoto, Mura e Dessana. Desde 2015, a liderança indígena Ortega Witoto, trabalha junto com sua irmã, Sandy Witoto, no estudo da cultura do seu povo por meio do significado dos grafismos, das relações com o território e de suas vivências enquanto mulheres originárias do município de Amaturá, no interior do Amazonas.
Esse processo levou à criação das peças do Ateliê Derequine, inspiradas na valorização da cultura dos povos indígenas e na conexão das irmãs com o seu próprio território, na Aldeia Colônia. Leia Witoto, a matriarca, foi quem ensinou a técnica da costura às filhas que hoje atuam na produção do ateliê.
Da história do povo Witoto, originário da região do Alto Rio Solimões, surgiram roupas que remetem aos rituais sagrados e à espiritualidade. "Usamos o simbolismo dos animais como a cobra, por exemplo, que é um elemento sagrado de proteção de cura. Para as pinturas nos tecidos trazemos essas inspirações da nossa própria identidade", disse Vanda Witoto em entrevista à Amazônia Real.
De acordo com Vanda, a moda sempre existiu nos territórios indígenas, "só que nós nunca ocupamos esses espaços da passarela, da moda tradicional, a moda de grande de grande mercado", disse. Apesar disso, a líder indígena constata que há uma grande expansão da presença indígena nesse espaço nos últimos anos, o que tem revolucionado, porque a moda indígena é uma moda decolonial.
"A nossa moda questiona a sociedade e problematiza o que nós estamos vivenciando enquanto povos indígenas. A nossa moda é uma linguagem política, que denuncia a partir das roupas que a gente veste, as violações dos nossos direitos e as violências que os nossos corpos sofrem. A nossa vestimenta é carregada por nossa identidade, por nossa memória, por nossas lutas e é sempre baseada na nossa ancestralidade, porque é isso que nos move neste mundo, saber quem somos e saber da nossa história".
A produção do Ateliê Derequine é especializada e concentrada em produzir "no tempo da natureza", afirmou Vanda. Na contramão da fabricação em larga escala das grandes indústrias, o ateliê é comprometido com ações sustentáveis e mudou os tecidos de suas peças, que passaram a ser naturais e de melhor qualidade.
As estilistas do ateliê optaram pelo uso da fibra do tucum, uma palmeira que cresce formando touceiras densas e atinge de 10 a 12 metros de altura. O tucum usado pelo Ateliê Derequine é retirado dos territórios das mulheres Tikuna da comunidade Belém do Solimões, na Terra Indígena Eware, no município de Tabatinga, também localizado no Alto Rio Solimões.
As matérias-primas retiradas da natureza também incluem sementes de artesãs de Manaus. "A gente compra e utiliza as matérias-primas que as parentas trazem. Então, a gente também fomenta muito o nosso território quando a gente compra essas sementes", ressaltou Vanda.
O projeto se expandiu para outros municípios do Amazonas, participou de desfiles de moda ao longo do último ano e ajudou no desenvolvimento de figurino de programas de televisão, além de fomentar a independência financeira de mulheres indígenas no Parque das Tribos. Sem espaço próprio, o grande sonho do Ateliê Derequine é a construção de um local para atender tanto a produção do ateliê, quanto para servir como um lugar de "potência para ampliar o que nós já fazemos", afirma a líder indígena.
Recentemente, o projeto foi contemplado pelo Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, primeiro mecanismo de abrangência amazônica para captação e redistribuição de recursos aos povos, organizações e comunidades indígenas. "Essa parceria tem sido muito importante para a aquisição de tecido e também de máquinas", explicou Vanda.
Outro fomento cedido para o ateliê vem do programa Pré-Aceleração do Impact Hub Manaus, o Lab de Impacto. O projeto vai receber, além de um financiamento para investimento em materiais, uma assessoria técnica e uma mentoria com profissionais de finanças, planejamento e marketing
Para Vanda Witoto, o Ateliê Derequine é uma ferramenta política que comunica, por meio da moda, a existência e a luta dos povos indígenas. São grafismos em estampas diversas que contam histórias sobre quem são, os seus valores e as suas tradições, narrativas construídas a partir dos traços.
"Nossas peças se tratam de uma linguagem que reivindica a ocupação de espaços, e sobretudo a contação da nossa história. Contar sobre nós também nos permite tirar nosso fim e essas peças refazem nossa história. Isso é muito potente e buscamos trazer isso como elemento central do nosso trabalho".
Valorização da cultura indígena
Yra Tikuna, estilista originária da Terra Indígena Tikuna Umariaçu, em Tabatinga mora hoje na aldeia Inhãa-bé, localizada em uma área ribeirinha de Manaus, à margem do rio Tarumã-Açu. Foi na aldeia que Yra começou a costurar há mais de 20 anos. Suas peças são inspiradas nas histórias do povo Tikuna, na natureza e nos significados de grafismos que procuram imprimir força, alegria e conforto.
"Quero valorizar a história do meu povo, que é contada nos grafismos feitos nas peças e também na valorização de espaços para indígenas na moda através da nossa ancestralidade e crenças", disse.
A busca pela sua ancestralidade se manifestou em peças que retratam os "mascarados", protetores da natureza na cosmovisão Tikuna, e as anciãs contadoras de histórias dos clãs da etnia. A maioria das matérias primas que Yra utiliza em seu trabalho também são retiradas da natureza.
A estilista explica que seu povo utiliza o tururi, uma espécie de fibra vegetal que envolve os frutos da palmeira ubuçu, para fabricar suas vestimentas. Chamado pelos Tikuna de Tururi-Nhoê, o tecido é considerado sagrado. “Eu uso o tururi que é retirado da casca da árvore, algodão cru, jenipapo, urucum, açafrão, crajiru, entre outros materiais. Todos esses componentes significam sabedoria, habilidade, força, resistência e coragem”, afirmou.
Estilista, cantora, artista plástica e ativista indígena, Weena Tikuna é também originária da TI Umariaçu e representa os Tikuna em suas criações de moda. A sua marca – We’e’ena TIkuna – Arte Indígena – nasceu da vontade de combater o preconceito e o racismo sobre a história dos povos indígenas brasileiros. Por meio de suas criações, Weena é pioneira na moda indígena contemporânea e afirma trabalhar sem intermediários ou tutela, fazendo com que os indígenas sejam os próprios protagonistas.
"A moda indígena é uma forma de preservar a cultura e as tradições dos povos indígenas. A moda da Amazônia não é regional, e sim uma moda contemporânea, alinhada com o mercado fashion e tem uma cultura e identidade própria", manifestou Weena à Amazônia Real.
Para a estilista, a moda cria uma forma de valorizar e manter viva a tradição indígena de respeitar a espiritualidade, uma vez que sua arte é uma forma de resistência. "Eu crio olhando para nossa ancestralidade mas também olhando para nosso futuro, isso é a nossa moda ancestral". Ela trabalha exclusivamente com tecido de algodão orgânico e fibras de tururi, e os tingimentos são naturais, feitos com jenipapo e urucum.
Todo o processo é realizado pela estilista, que além da criação, desenvolve a modelagem das peças. Os grafismos indígenas feitos de forma manual, um dos destaques de sua criação, vão além do belo, sendo um código de comunicação complexo que, nas palavras da estilista, "representa a nossa cultura e tradição".
"A minha moda mostra para as pessoas que os indígenas não são algo do passado, mas que estamos presentes em todos os espaços, transformando e descolonizando. Valorizamos a nossa cultura através das nossas peças com produtos 100% naturais e orgânicos, o que tem valor muito forte e muito significativo para nós", disse.
Em sua nova coleção, "Amazônia Sagrada – Utu’ü", apresentada na 7ª edição do Brasil Eco Fashion Week (BEFW), um evento anual que promove as boas práticas de sustentabilidade no mercado e indústria da moda brasileira, a artista trouxe o saber milenar Tikuna sobre a floresta amazônica e um manifesto pela sua preservação. Na passarela, os modelos indígenas do povo Tikuna Anderson Tikuna, Oziel Tikuna, Kuenan Tikuna, Yionne Tikuna e Jazz Mota, chegados diretamente da Amazônia, desfilaram as peças ao som dos cantos sagrados entoados pela cantora e compositora Djuena Tikuna, que é irmã de Weena.
Weena usa em sua coleção, além do tecido sagrado do tururi, fibras de tucum, fibras de arumã, sementes de açaí, penas de arara sagrada, grafismo Tikuna, sementes de tucumã, flechas sagradas, cuias tradicionais, sementes de aruá e tecido de plástico reciclado. "É muito importante que nós que trabalhamos com consumo consciente, possamos incentivar o uso de materiais e produtos que ajudam a natureza e não aumentam a poluição e desmatamento. Esse é o nosso processo nessa nova coleção, a consciência de nos conectar com a natureza", disse.
Técnicas ancestrais
Sioduhi, estilista indígena do povo Piratapuya, foi responsável por criar um corante de tecido a base de mandioca para a sua marca, a Sioduhi Studio. Esta tecnologia, chamada por ele de ManioColor, surgiu quando o designer de moda incluiu técnicas de tingimento natural em sua coleção "Pamiri 23", a partir da extração de aroeira, uma planta medicinal.
Originário da aldeia Mariuá, em São Gabriel da Cachoeira, região do Alto Rio Negro, no Amazonas, Sioduhi se preocupou com a ameaça de extinção da aroeira, e passou então a utilizar cascas de mandioca brava para a produção de um novo corante têxtil, devido à sua forte pigmentação e potencial de reaproveitamento.
A revitalização da prática do tingimento e da utilização de fibras naturais é uma das principais pesquisas que Sioduhi desenvolve em sua empresa. Através de suas criações, a Sioduhi Studio expressa o orgulho da origem indígena e a resistência dos povos amazônidas. O estilista tem como referência o futurismo indígena, um movimento que resgata os conhecimentos ancestrais dos povos indígenas por meio de produções que dialogam com novas perspectivas, como a moda.
"As peças valorizam a manualidade e a revitalização dessa prática do tingimento natural. Com o avanço dos tingimentos sintéticos, tem se perdido o cuidado em usar esse material que não agride o meio ambiente. É um caminho que eu tenho seguido", enfatizou.
Em sua marca, Sioduhi atua de forma autônoma, e por não ter um grande investimento ou patrocínio, capta recursos sozinho para investir em suas criações e remunerar as pessoas com quem trabalha. Esses recursos vêm geralmente de editais ou de prestação de serviços. Embora a autonomia financeira seja desafiadora, ele considera que tem mais oportunidade de decidir o seu trabalho por si mesmo, sem se preocupar com imposições de algum patrocinador.
Além de "Pamiri 23", Sioduhi é autor das coleções "Manioqueen" e "Dabucuri", criadas para seu estúdio, e "Weá Terra Fértil", uma coleção conceitual feita sob encomenda para a National Geographic Brasil, lançada como parte das comemorações pelo Dia da Amazônia, em 5 de setembro de 2021. Em dezembro de 2023, ele participou pela terceira vez do Brasil Eco Fashion Week (BEFW), em São Paulo, agora com a coleção "Amô Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã". O estilista já esteve presente com outras coleções na quinta e sexta edições.
As peças da nova coleção são feitas de tecidos tramados com fibra de tucum, tecido de algodão emborrachado de seringa e tingimento natural de ManioColor. Esta coleção representa as transformações feitas pelas Amõ Numiã, as primeiras mulheres, filhas do Ʉmʉkoho Mahsʉ (Criador do Universo).
Na transmissão oral dos povos indígenas do Alto Rio Negro, as mulheres que dominaram miriã pʉ (flautas de jurupari), fundaram um matriarcado e lideraram o manejo do território e do universo por um período na história primordial. Neste projeto, a Sioduhi Studio une as tecnologias manuais milenares das mulheres do Alto Rio Negro, de Manaus, Novo Airão e Taracuá, no Amazonas, e da Ilha de Cotijuba, no Pará, para criar uma espécie de celebração à mulheridade e a memória das Amõ Numiã, que representam o passado, presente e o futuro.
"Nessa coleção as inspirações vem da minha vivência, do lugar onde eu cresci e das histórias que eu ouvi. Essa coleção é muito mais arte-moda do que outras coleções e também mais experimental, e nela eu conto sobre essas mulheres que dominaram as portas sagradas do jurupari e manejaram a Amazônia por meio do matriarcado", explicou.
As características manuais e experimentais das peças de Sioduhi, resultados de técnicas milenares dos povos indígenas, levou arte para a passarela e deu um novo ritmo para o processo criativo do estilista, que até então só havia lançado peças comerciais. "Foi algo muito necessário de acontecer dentro da minha marca porque é uma coisa que eu sempre quis, unir arte e moda. Eu quis misturar e criar peças que também podem ser comercializadas, mas são obras de arte", definiu.
As obras criadas para a coleção Amõ Numiã denunciam também a seca histórica vivida pelos povos da Amazônia e o descaso dos governos diante da situação. A partir disso, Sioduhi reforça que a coleção tem como proposta manejar técnicas que não agridem a natureza e que dão continuidade às essas tecnologias manuais que as Amõ Numiã deixaram para o seu povo.
A novidade na criação e nos processos da nova coleção é a sobreposição da modelagem feminina nas peças, apesar de a marca evocar a moda agênero. "Essa coleção acabou questionando como que a modelagem masculina sempre se sobrepõe ao feminino. Por exemplo, a mulher veste uma camisa de uma modelagem masculina e o homem não veste um vestido, isso raramente acontece, principalmente aqui no Brasil. Então, foi em um desses momentos que eu decidi também sobrepor a modelagem feminina considerando ainda que 70% do meu público é feminino", afirmou Sioduhi.
A moda decolonial de Sioduhi envolve-se também com a luta pelos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, que são citados na cosmovisão das Amõ Numiã. Além da questão da modelagem feminina, também houve o alto número de composição de peças baseadas nos corpos de mulheres e pessoas trans.
"Essa composição foi feita justamente para mostrar a diversidade que nasce da época de manejo dessas mulheres do Alto Rio Negro, acho que tiveram dois ou três modelos masculinos só. Então, a coleção tem esse lado também de contar parte da história que foi tirada das populações LGBTQIAPN+ durante o processo da construção do mundo, conforme a cosmovisão do Alto Rio Negro", ressaltou o designer de moda.
Coletividade é a base
Desde os desfiles da 1ª Mostra Intercultural de Moda Indígena do Brasil, realizados no ano passado, Yra Tikuna tem exportado seus produtos para outros estados do país e passou a atuar de forma mais autônoma. Apesar de não ter um espaço próprio para a confecção de suas peças, a estilista tem buscado formas de parcerias para a construção do seu ateliê.
Yra trabalha com a ajuda de pessoas da sua comunidade, consideradas fundamentais para a confecção das peças. "Tenho um pequeno espaço na minha aldeia e de estilista só eu, mas o trabalho conta com outros comunitários da comunidade", destacou.
Em sua nova coleção, Sioduhi destaca o trabalho das muitas mãos que construíram as peças, como as mulheres da Associação de Artesãos Indígenas de São Gabriel da Cachoeira (ASSAI) e Ínaru Eyawa, que é uma marca familiar que trabalha com o tear, composta por sua tia e suas primas.
"Falar dessa conexão como território é manter os relacionamentos com essas mulheres, que utilizam a arte-artesanato como fonte de renda para poder sustentar a sua família, para poder manter a sua casa alimentada", disse.
Ele também ressalta o trabalho de Clara Dessana, artesã que faz cerâmica na comunidade indígena Taracuá, às margens do Rio Valpés, em São Gabriel da Cachoeira. Sioduhi diz que a releitura contemporânea que faz da arte-artesanato está dando continuidade às transmissões orais dos povos indígenas de formas diferentes, por meio da moda e por meio do audiovisual. "A conexão é muito maior do que apenas glamour ou aquela coisa bonita que se vê na passarela, se trata mais de troca e aprendizado contínuo", manifesta.
O estilista não tem ateliê próprio e para a realização da coleção Amõ Numiã, utilizou um espaço cedido pela Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas (SEC), dentro do Centro Cultural dos Povos da Amazônia, localizado no Crespo, zona sul de Manaus.
Pela limitação física e de maquinário, o lugar não tem condições de abrigar a produção de outros estilos indígenas. "Tenho pensado muito nesses últimos períodos, não só dentro da moda, mas também da arte em si, como é muito necessário ter esses espaços de criação e partilha", reflete Sioduhi.