Análise

Mídia brasileira invisibiliza a luta das agricultoras familiares nordestinas por uma energia renovável descentralizada

Articulação contra impactos negativos da instalação de grandes complexos energéticos não aparece em veículos de imprensa

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Produção e transmissão de energia eólica e solar impactam comunidades tradicionais e seus modos de vida - Pedro Villaça/Coletivo Intervozes

Há 14 anos, agricultoras familiares que integram o Polo da Borborema, na Paraíba, realizam mobilizações para informar à população da zona rural sobre os perigos causados pela instalação dos parques eólicos na região. Elas fazem parte da Marcha pela Vida das Mulheres e em Defesa da Agroecologia, e têm como sua principal bandeira de luta alertar os/as moradores/as da zona rural dos 13 municípios que compõem o Polo a respeito da problemática causada por esses empreendimentos. 

A 14ª Marcha pela Vida das Mulheres e em Defesa da Agroecologia aconteceu no mês de março de 2023, na cidade de Montadas, a 25,7 km da cidade de Campina Grande, a rainha da Borborema. 

Mais de 6 mil pessoas da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte participaram da Marcha. Um palco montado próximo ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Montadas foi o espaço das mulheres dialogarem com as pessoas que participaram do ato sobre o que representa a chegada das eólicas na região da Borborema e demais cidades da Paraíba. A cirandeira Lia de Itamaracá esteve presente na Marcha, que foi finalizada com todos os participantes percorrendo as ruas de Montadas, distribuindo panfletos e discursando sobre o porquê da mobilização. 

No entanto, apesar dessa intensa mobilização das trabalhadoras rurais, não há nas mídias hegemônicas tradicionais locais, regionais ou nacionais a cobertura das atividades realizadas por elas. Em 2022, o portal do Jornal da Paraíba, um dos meios de comunicação que está sendo analisado pela pesquisa Energias Limpas: o que a mídia silencia, integrante do projeto Vozes Silenciadas, organizada pelo Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, noticiou a realização da 13ª Marcha, que ocorreu em Solânea. Porém, em 2023, não houve nenhuma divulgação da atividade por esse site. 

O site do Jornal do Commercio, de Pernambuco, e o do Tribuna do Norte, do Rio Grande do Norte, também não fizeram reportagem sobre a resistência das mulheres da Borborema em relação aos parques eólicos, tampouco citaram a participação das agricultoras desses estados na Marcha pela Vida das Mulheres. 

Em âmbito nacional, a Folha de S.Paulo, o Estadão e O Globo também não repercutiram as ações desenvolvidas por elas sobre os prejuízos que as empresas eólicas têm causado à mulher e ao homem do campo no Nordeste. 

Roselita Vitor da Costa Albuquerque é uma das agricultoras familiares que está à frente desta luta. Ela integra a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Remígio, no agreste paraibano, e junto às companheiras e companheiros dos sindicatos vizinhos, vai até as casas dos demais trabalhadores rurais para levar informação sobre o que pode causar a instalação dos parques eólicos e das usinas solares na zona rural. Nas conversas realizadas com os agricultores e as agricultoras familiares, um dos principais assuntos tratados são os contratos que as empresas apresentam, arrendando as suas terras por mais de 20 anos.  

Ao convencerem as famílias a assinarem os contratos, os impactos sociais e ambientais que os aerogeradores e as placas solares têm provocado nos territórios onde são instalados não são citados pelos representantes das empresas. "Foi em um contato com a Pastoral da Terra de Campina Grande, quando visitamos a cidade de Caetés, em Pernambuco, que vimos os impactos na vida das comunidades e, precisamente, na vida das pessoas. Daí para frente, construímos com a rede de Sindicatos do Polo da Borborema estratégias de trazer às famílias agricultoras informações não faladas pelas empresas, sobre os danos causados à natureza, precisamente ao bioma Caatinga, como desmatamento, diminuição das áreas de produção e as arbitrariedades das empresas com contratos violentos, ferindo direitos humanos das famílias", explicou Roselita. 

Após as mobilizações das mulheres da Borborema, os agricultores e agricultoras familiares desse território não têm assinado os contratos. Elas ganharam um reforço da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares na Paraíba (Fetag-PB), que vem realizando reuniões com os sindicatos associados à Federação e encontros estaduais, a exemplo do que foi realizado em outubro de 2023, com advogados e juristas populares, dialogando com os agricultores, especificamente sobre os danos causados, alguns difíceis de reverter, pelos contratos estabelecidos pelas empresas.

Com todas as informações colhidas após visitas e reuniões nos territórios impactados com a chegada das eólicas e das usinas solares, seja na Paraíba ou nos estados vizinhos, as agricultoras da Borborema também procuraram o Ministério Público Federal (MPF-PB) e a Defensoria Pública da União, além de outros órgãos do Judiciário, para encontrar meios de solucionar os problemas enfrentados pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais que assinaram os contratos de arrendamento. 

"A partir de toda a ação da Marcha e as reuniões nas comunidades realizadas pelos sindicatos, as famílias não têm assinado contrato com as empresas. A Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia do Polo da Borborema assume essa resistência, entendendo que esse modelo de produção de energia renovável centralizada nos parques eólicos e usinas solares é uma ameaça aos seus modos de vida aqui no nosso território", afirma Roselita, que é assentada da reforma agrária. 

A atuação das mulheres do Polo atingiu outros municípios, para além da Borborema. Durante a formação política para a Marcha das Margaridas de 2023, organizada pela Fetag-PB, nas cidades de Campina Grande, Patos, Guarabira e João Pessoa, uma das principais discussões foi a chegada dos parques eólicos e das usinas solares nos territórios nordestinos. As agricultoras familiares da Paraíba e dos demais estados brasileiros, que participaram da elaboração do caderno de propostas da Marcha das Margaridas, inseriram, entre os seus 13 eixos, o impacto das eólicas e das usinas solares sobre o modo de vida da mulher e do homem do campo. A pauta das Margaridas foi entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aos seus ministros/as, em um grande ato, que finalizou a 7ª Marcha das Margaridas em Brasília, no dia 16 de agosto de 2023. Os sites dos jornais nordestinos, analisados pela pesquisa do Intervozes, não repercutiram essa ação das Margaridas. 

Segundo Roselita Vitor, o governo federal abriu uma mesa de diálogos sobre as energias renováveis. Em outubro de 2023, representantes da Secretaria-geral da Presidência da República, dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar, da Saúde, do Meio Ambiente, das Minas e Energia, do Incra e da FioCruz estiveram nos territórios de Pernambuco e da Paraíba para ver de perto as problemáticas causadas pelas empresas de energia eólica. "Reafirmamos que este modelo é uma ameaça ao nosso território, para a  produção de alimentos e da agroecologia, assim como do modo de vida que estamos construindo há 30 anos", ressaltou Roselita Vitor. Essa reunião entre as agricultoras e agricultores familiares e o governo federal também não foi pauta da mídia brasileira. 

Outras ações que as mulheres da Borborema, junto à Fetag-PB e outras organizações, como a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizaram foram: uma Audiência Pública, no mês de maio, chamada pela deputada estadual Cida Ramos (PT), que deve resultar em uma CPI; e uma oficina no 12º Congresso Brasileiro da Agroecologia, que aconteceu em novembro do ano passado, na cidade do Rio de Janeiro. Elas mantêm também um perfil no Instagram (@marchapelavidadasmulheres), com informações sobre a sua atuação em relação a essa problemática.  

Uma campanha sobre as energias renováveis foi elaborada no perfil delas no Instagram, com o título "Energia renovável sim, mas não assim!". As agricultoras familiares afirmam ser a favor do uso da energia renovável, mas não do modo como as empresas multinacionais vêm implantando nos territórios nordestinos. "Quando falamos em energia renovável descentralizada é aquela energia que cada família pode produzir a sua. Se em nossos territórios tem muito sol e muito vento, porque não ter placas solares nas casas das famílias, produzindo energia para seu consumo e vendendo o excedente?", explica Roselita.

Ela afirma que esse modelo de energia, implantado pelas empresas multinacionais desorganiza a natureza, as formas de vida nos territórios e nas comunidades. "É preciso pensar a transição energética que contribua para menos efeito no clima e para diminuir os efeitos das mudanças climáticas, precisamos pensar numa energia também que não só produz energia para o capital, mas é preciso pensar nas pessoas que vivem nos territórios", afirmou. Em todos os espaços possíveis, as agricultoras familiares da Paraíba estão denunciando os problemas que as eólicas e as solares têm causado nos seus territórios rurais. Mas as mídias regionais e nacionais não têm dado a atenção necessária sobre os danos causados por essas empresas à agricultura familiar e à agroecologia do Nordeste. 

O que descobrimos nos sites analisados foi um apoio frequente à instalação desses empreendimentos, sempre enfocando a questão econômica, com reportagens e notícias que tratam sobre a abertura de "novas vagas de emprego" e investimento financeiro nos estados por parte das empresas internacionais eólicas e solar. Porém, os agricultores e agricultoras que tiveram suas terras arrendadas pelas empresas, por meio da assinatura de um contrato, com cláusulas duvidosas e sem garantia de direitos para eles, não são noticiados. Suas vozes são, de fato, silenciadas. 

A agricultora afro-ecológica Luíza Cavalcante mora no sítio Agatha, no município de Tracunhaém, zona da mata norte de Pernambuco. Ela conta que a luta das mulheres em seu território, atualmente, tem sido em relação às linhas de transmissão. "Os impactos das linhas de transmissão têm atingido o nosso território, e no agreste de Pernambuco, tem uma luta das mulheres contra as torres de energia eólica, inclusive aquelas que já foram atingidas, como as das comunidades de Salgadinho e Caetés. Elas estão numa luta incessante", diz. 

Luíza afirma que esses empreendimentos têm se alastrado pelo estado de Pernambuco, mas que a resistência das comunidades, capitaneadas pelas mulheres, é forte. "Nós, do sítio Agatha, fomos atingidas, atravessadas pela instalação das linhas de transmissão de energia eólica, que vêm da Paraíba, Campina Grande, chegando em Igarassu. E ao longo da instalação dessas linhas há quilombos, muitos assentamentos, que têm sido impactados", conta.  

Apesar das denúncias feitas publicamente e às autoridades, Luíza afirma que há a previsão da chegada de mais 4 linhas de transmissão, passando por esses mesmos territórios. "Isso é terrível. É preciso falar sobre as linhas de transmissão. Não é só a torre com as hélices. Os danos são semelhantes. As violações de direitos, as violações ambientais são extremamente violentas. Temos que denunciar e impedir que essa miserabilidade continue acontecendo contra as populações afro-indígenas neste país", ressalta a agricultora. 

As mulheres de Pernambuco também estão organizadas e mobilizadas para informar aos demais agricultores e agricultoras dos territórios atingidos ou os que vierem a ser sobre esses problemas que elas enfrentam hoje. Como a mídia hegemônica não divulga a luta delas e os problemas que enfrentam com os parques eólicos e as usinas solares, elas criaram seus próprios meios de comunicação. O sítio Agatha, local onde Luíza mora, traz em seu site a cartilha Transmitindo resistência, que aborda as linhas de transmissão e as energias eólicas, e também o podcast Vizinhas da Torre, materiais produzidos para levar para a sociedade o que está acontecendo nesses territórios e pensar mecanismos para minimizar os impactos nas regiões onde as torres eólicas e as placas solares foram instaladas.

Em dezembro de 2023, elas realizaram uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco, cobrando providências do poder legislativo sobre os problemas que enfrentam em seus territórios.   

*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, associada ao Coletivo Intervozes, observadora credenciada do Observatório Paraibano de Jornalismo e doutoranda em Comunicação pela UFPE

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Thalita Pires