Tive o grande prazer de participar como tamboreiro da segunda edição do Cortejo de Quicumbis em Cachoeira do Sul onde esteve junto parte da comunidade de Rio Pardo, no dia 5 de novembro de 2023. Não sou musicista, mas enquanto educador sou um entusiasta do grande tambor Sopapo, instrumento que adquiri após participar do CABOBU em abril do ano passado em Pelotas.
:: Após 23 anos, Cabobu A Festa dos Tambores volta a Pelotas ::
O Sopapo tem uma importância ímpar para o povo negro do RS, mais que um instrumento musical ele é um artefato político e desse modo venho construindo uma relação de aproximação mediante máximo respeito. Acredito no Sopapo como uma potente ferramenta de aprendizagem e assim ele vem adquirindo uma ligação comigo, ironicamente acessando talvez algo que é estranho ao meu existir, certa espiritualidade.
Não há necessariamente registros sobre o uso do Sopapo nesses cortejos, sobretudo fora da região das charqueadas. Contudo, tendo em vista a importância cultural que o instrumento possui no Rio Grande do Sul, sua inserção, que hoje pode parecer um sincretismo, serve ao mesmo tempo para valorizar a presença negra na cultura do estado tanto quanto como elemento agregador e incentivador do fortalecimento das manifestações afro-gaúchas e afro-católicas.
Também ressalte-se o fato da ausência completa das caixas tradicionais das congadas na região e assim para que tais caixas possam ser retomadas em breve, conforme trabalho em curso feito pela Associação Rainha Ginga, os sopapos por ora emprestaram seu ronco grave para viabilizar a manifestação em 2023. Não se está de modo algum propondo a inserção dos sopapos, elemento estranho às congadas e, sim, não deixando de realizar a congada em Cachoeira do Sul mediante solicitação de apoio da comunidade local.
O Quicumbi por sua vez trata-se de uma musicalidade quilombola de matriz afro católica e que há registros seculares de sua ocorrência no vale do rio Jacuí assim como no Litoral Norte (Osório, Morro Alto e arredores) além do Litoral médio (Mostardas e Tavares) assim como em Porto Alegre no século XIX (o candombe da Mãe Rita na Várzea, segundo registro do cronista Coruja Pereira).
O Quicumbi trata-se de uma musicalidade quilombola de matriz afro católica e que há registros seculares de sua ocorrência no vale do rio Jacuí / Foto: Leandro Anton
Historicamente, o povoamento da região, originalmente ocupada por indígenas guaranis, recebeu pessoas ao entorno da Cachoeira do Fandango (que deu nome à vila até o século XIX, quando recebe o nome de Cachoeira e o título de Cidade) constituindo-se residência de ex-combatentes de guerras dentro do estado, como as resultantes do Tratado de Madrid. Também durante os anos seguintes ocorreu um afluxo heterogêneo que incluiu escravizados, indígenas e europeus, já que “formou-se em terras de parcialidades indígenas, como Arachane (Sertão dos Arachane), Pato (Continente do Tape) e Guarani (Yvy Rupa); em terras integrantes da Coroa Espanhola e dos Vice-Reinos (Peru e do Prata) e da Província Jesuítica (Paracuaria)”. A Lei de Terras que passa a vigorar em 1850 impede o acesso à terra pela maior parte da população, sobretudo negros, indígenas e pobres, mas ainda foi possível a formação de quilombos na região. Cachoeira muda de nome para Cachoeira do Sul, para evitar confusões com a cidade de Cachoeira na Bahia, mais antiga.
O site do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social apresenta uma lista (que sabemos defasada) onde Cachoeira do Sul possui duas comunidades quilombolas, Cambará e Irapuãzinho, e sete comunidades em Rio Pardo, Aldeia São Nicolau, Cruz Alta, Pederneiras, Rincão dos Pretos, Rincão dos Negros, Rio Pardo e São Nicolau.
Sobre a comunidade Cambará, essa foi um dos casos que inicialmente desafiou a generalidade da Lei de Terras, já que “Os primeiros a se estabelecerem no local foram dois ex-escravos, e suas respectivas famílias, por meio da compra de pequenas glebas nos anos de 1835, 1845 e 1855. No decorrer do século XIX, essas duas famílias firmaram relações de parentesco e de compadrio com escravos, ex-escravos, libertos, indígenas e livres que viviam na região.” Deixando clara na última frase também a pluralidade étnica da formação dessas comunidades e, também, cultural. Mas ainda sobre a Lei de Terra, a exceção é apenas superficial, pois senhores de terra tentavam grilar a posse negra do território, como segue sobre a medição das terras:
“A medição mencionada acima, na qual foi possível obter diversos elementos sobre a trajetória histórica de Cambará, revela também os mecanismos de expropriação que incidiram sobre os negros. O requerente da medição foi um dos principais estancieiros da região, herdeiro de um cabedal composto por um grande número de cativos. Diversos lindeiros de dito estancieiro foram intimados a apresentar os meios comprobatórios de suas posses, como inventários, escrituras de compra e venda e comprovantes de permuta. O agrimensor responsável pela medição partilhou aritmeticamente todas as áreas, com exceção de uma: aquela pertencente às famílias negras. Lê-se no documento que ‘desconhecem-se quem são’ os proprietários desta área e isto porque os "proprietários não se fizeram representar nos autos”.
A congada é uma manifestação negra com presença indispensável dos tambores, principalmente, na coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga / Foto: Leandro Anton
Atualmente o Quilombo Cambará é representado pelo Seu Adão Carlos Alves Correa, que representou a entidade no Quicumbi de novembro de 2023, além de ser uma das entidades organizadoras dessa recriação do cortejo. O processo de reconhecimento desses quilombos pelo Incra contou com a comprovação da ocorrência das congadas seculares nesses territórios. Em suma, o patrimônio imaterial dos tambores e das poéticas quilombolas colaborando no reconhecimento legal da regularização fundiária desses territórios negros.
Em Cachoeira do Sul, no dia 5 de novembro, fomos recebidos pelas entidades organizadoras no Galpão Nativo Gasparino Rodrigues de Mello, importante centro cultural da memória da cidade. Os representantes das organizações fizeram suas falas, como Nathaly Weber e Richard Serraria, convidado pela Associação Rainha Ginga para auxiliar levando os tamboreiros e colaborando musicalmente com a ação. Serraria executou uma caixa tradicional de congada e os sopapos, originalmente não presentes na congada do RS, se somaram ao cortejo diante da dificuldade de fabricação das já referidas caixas congadeiras no RS. Um almoço e um breve ensaio animaram a preparação do cortejo.
Seguimos para a Biblioteca Pública Municipal Dr. João Minssen, onde as lideranças fizeram suas falas, como Seu Adão (Quilombo Cambará), Nathaly Weber e Joelita David de Rio Pardo.
O ponto central da passagem do cortejo foi a praça José Bonifácio. Antigamente essa praça se chamava Praça do Pelourinho, e por anos foi dividida entre o espaço destinado aos negros e o espaço destinado aos brancos. O fato é que a mudança de nome pode merece atenção, já que Bonifácio era considerado progressista para sua época, mas vale lembrar que seu entendimento de natureza era de submissão dessa ao desejo humano (vale pesquisar sobre Biocentrismo, talvez o conceito mais avançado sobre as relações sociedade-meio ambiente), e seu entendimento da relação indígena e negra era civilizatório, ou seja, envolto em colonialidade (de branquear o selvagem para inseri-lo à sociedade). Aqui portanto a necessidade antes referida de atenção extremada já que muita gente que se considera progressista sustenta essa visão ainda hoje.
Vale destacar os olhares de estranhamento com a passagem das cerca de trinta pessoas do cortejo pela praça e ruas. Na praça ainda, tivemos a apresentação do artista Anderson Trupi di Trapu, com a Boneca Mãe pertencente ao projeto Na Trilha das Andarilhas que “é um espetáculo performático híbrido e afrocentrado, que une as linguagens do Teatro de Bonecos Gigantes, poesia, música percussiva e dança para celebrar as lutas de mulheres pretas", espetáculo que circulou por oito comunidades de Porto Alegre no meio desse ano.
:: 'Na Trilha das Andarilhas – Cortejos e Festejos' exalta a cultura popular ::
Ao seguir pela rua Comendador Fontoura chegamos ao destino final do Quicumbi de Cachoeira do Sul: o túmulo de Santa Josefa. A Santa, antes uma negra escravizada, foi perseguida e espancada por um branco escravagista, depois enterrada a mando desse senhor, muito rico e poderoso na cidade. De seu túmulo passou a verter sangue, segundo a lenda. Se tornou um memorial para outras pessoas escravizadas na época acenderem velas e fazer preces e pedidos, ficando seu túmulo atrás da Capela Josefa (Nosso Senhor do Bom Fim) como ponto de devoção aos fiéis. Recentemente o espaço foi vandalizado, com tiros nas paredes e nas placas de bronze6. Atualmente muitos fiéis e devotos da santa mantém a tradição de pedidos e preces.
O Quicumbi é força percussiva e de canto numa região que teve mãos negras nas lavouras e demais atividades sociais como de resto todo estado do RS teve / Foto: Leandro Anton
A congada, em que Cachoeira do Sul e Rio Pardo são territórios historicamente identificados, é uma manifestação negra com presença indispensável dos tambores, principalmente, na coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga. Abre-se a potencialidade da abordagem didático pedagógica, reforçando a importância e necessidade da real implementação da Lei 11645 que estabelece a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Uma das abordagens históricas possível é o fato de que o Reino do Congo era submetido a relações comerciais com o reino português mediante dominação militar sendo que opressão portuguesa expandia-se ainda para Moçambique e Angola e nisso vislumbrar o imenso sistema cultural banto com sua riqueza linguística diversificada e que é conformadora da língua portuguesa falada hoje no Brasil.
Essa relação escravagista de captura de negros enviados à colônia portuguesa, principalmente, na saída dos reinos africanos nos fornece elementos para compreensão de parte do tão falado sincretismo religioso que vai vigorar depois no Brasil a partir da cultura negra advinda do continente mãe. Sendo essas manifestações importantes em diversas cidades gaúchas, principalmente nos berços de quilombos, como Osório, Morro Alto, Mostardas, Tavares, Cachoeira do Sul, Rio Pardo, Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande etc. Devemos lembrar que o estado com mais terreiros de matriz africana é o Rio Grande do Sul, além de Porto Alegre deter o título de capital dos credos. Cachoeira do Sul, de acordo com a produtora cultural Nathaly Weber, possui várias casas de Umbanda e Quimbanda, muitas mistas, e há relatos que houve terreiros de Batuque (Nação), inclusive nos quilombos. Portanto trata-se de um processo de resistência histórica o fato dos Ilês e Terreiros se manterem vivos, interagindo com forte teor católico e re-existindo, posteriormente, ao avanço evangélico neo pentecostal da população urbana.
Além do Quilombo Cambará, a Associação Rainha Ginga, o Projeto Sarau da Memória, representado por Nathaly Weber, o Alabê Ôni, representado por Richard Serraria, e o Quicumbi de Rio Pardo, representado por Joelita David, e Janine Vidales, coreógrafa, com forte atuação na Comunidade Bom Retiro, ajudaram a organizar o cortejo contando com a participação também dos tamboreiros Adilson Fontoura (Canela), Rodrigo Maciel (ligado ao Bataclã FC) e André de Jesus (Ponto de Cultura Africanidades da Restinga, Porto Alegre).
A constatação, portanto, da manifestação viva do Quicumbi no século XXI, de forte caráter afro católico nessa região cresce em importância. Não há dúvidas que é de extrema relevância política a medida que atesta a presença negra na construção econômica e social da região. O Quicumbi é força percussiva e de canto numa região que teve mãos negras nas lavouras e demais atividades sociais como de resto todo estado do RS teve. Percutir isso na contemporaneidade é sem dúvida uma relevante repercussão histórica, indispensável ação que deve avançar nas escolas também.
* Professor em Canela (RS)