A preocupação com novos conflitos na Amazônia reacendeu com a sanção do projeto de lei (PL) 1459/2022, apelidado por ambientalistas de ‘PL do Veneno’.
No Planalto Santareno, que abrange os municípios de Santarém, Mojuí dos Campos e Belterra, oeste do Pará, o avanço da rota da soja está impactando territórios tradicionais através da contaminação dos afluentes pelo agrotóxico usado nas lavouras. A região é também a principal rota de escoamento da produção transportada pelo rio Madeira, para Rondônia e Amazonas, e pela BR-163, para os portos internacionais.
Sileuza Barreto, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Mojuí dos Campos (STTR), relata que o uso dos agrotóxicos está se intensificando drasticamente na região, assoreando e contaminando os igarapés.
“Uma prova real é que os igarapés em Mojuí estão mortos; eles não correm mais e perderam a força de correr água. Além disso, foram assoreados devido ao gradeamento das terras. Anteriormente, utilizávamos esses igarapés para diversas atividades, mas agora somos obrigados a perfurar poços. Também temos a consciência de que essa água do poço está contaminada por agrotóxicos”, disse ela à Amazônia Real.
Durante a votação do ‘PL do Veneno’, ocorrida em 28 de novembro de 2023, a senadora e médica Zenaide Maia (PSD-RN) foi a única parlamentar a votar contra. Em suas redes sociais, ela declarou logo após a votação: “Sabemos que agrotóxico é abortivo, que é teratogênico, que deforma o bebê na barriga da mãe. Não é medicamento que a gente usa! Por que não usam defensivos biológicos?”.
O projeto foi sancionado em 28 de dezembro com os 14 vetos, em meio ao feriado parlamentar de fim do ano, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os vetos serão ainda submetidos à análise do Congresso.
Lula vetou a retirada da competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para avaliar e liber agrotóxicos. Parlamentares queriam que a decisão fosse exclusiva do Ministério da Agricultura (MAPA). Esse movimento levanta preocupações sobre a flexibilidade no uso de agrotóxicos e a possível presença de ainda mais veneno nas mesas brasileiras.
Sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil assistiu a uma liberação de agrotóxicos sem precedentes, segundo o Observatório de Justiça Socioambiental (OLMA). Conforme estudos da entidade, foram registrados mais de 600 novos tipos de agrotóxicos, 118 deles durante a pandemia (nos anos de 2020 e 2021).
Os vetos de Lula possuem grandes chances de cair devido à influência da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), majoritária no Congresso, com 374 parlamentares.
Uma votação conjunta na Câmara e no Senado para decidir sobre a aceitação das restrições já está programada para ocorrer após o término do recesso, no próximo dia 2 de fevereiro. “Vamos derrubar esses vetos, temos condições de fazer isso”, afirmou o presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR), no site oficial da FPA.
Um ponto de preocupação apontado por especialistas ouvidos pela Amazônia Real, além da aprovação de novos agrotóxicos danosos à saúde, é a intensificação da pulverização de aérea indiscriminada, utilizando até mesmo drones, muitas vezes desrespeitando barreiras fitossanitárias de territórios tradicionais. A falta de legislações rigorosas sobre pulverização aérea contribui para a contaminação de escolas, perímetros urbanos, aldeias indígenas e assentamentos de reforma agrária.
Veneno sem fronteiras
Fran Paula, pesquisadora quilombola mato-grossense, agrônoma da organização Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), com atuação na Amazônia, afirma que os agrotóxicos não conhecem fronteiras quando se trata de contaminação de territórios tradicionais.
Para Fran, existe uma guerra química instaurada na Amazônia que vai agravar problemáticas ambientais já vivenciadas em torno da insegurança alimentar e dificultar ainda mais os direitos de vida nos territórios tradicionais. “O mesmo modelo que utiliza intensivamente agrotóxico é o que expulsa comunidades tradicionais, que invade territórios indígenas e quilombolas”, explicou a pesquisadora à Amazônia Real.
“A gente tem acompanhado o uso de agrotóxico de forma intencional como uma arma química mesmo para expulsar essas populações dos seus territórios. São pulverizações que ocorrem sem qualquer aviso prévio sobre aldeias indígenas, quilombos e assentamentos da reforma agrária. O ‘PL do Veneno’ vai só potencializar e legitimar isso, criando um cenário de mais violência contra essas populações.”, afirma Fran, que é também representante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
O Atlas dos Agrotóxicos revelou que, apenas em 2022, 8.033 famílias foram impactadas pela pulverização aérea no Brasil, com 193 pessoas contaminadas por essas substâncias. Além disso, entre os 30 casos emblemáticos de conflito agrário analisados entre 2005 e 2012, 70% envolveram pulverização aérea. O Atlas é produzido pela Fundação Heinrich Böll e aborda os impactos sociais e ambientais dos sistemas alimentares em uma série de materiais publicados.
“A contaminação da água, do solo, das plantas e do ar, vem servindo como estratégia de expulsão de comunidades para apropriação ilegal de suas terras e representa uma violação dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais”, aponta o relatório.
Saúde da população
O Brasil é destaque mundial no consumo de agrotóxicos. O Instituto Nacional de Câncer (INCA) divulgou um alerta para os riscos à saúde, revelando que o país despeja mais de um milhão de toneladas de substâncias nas lavouras anualmente. O Congresso Nacional ignora os dados.
Marcos Mota, médico e pesquisador do Instituto Evandro Chagas, em Belém, desenvolve um trabalho desde 2017 no Planalto Santareno. Ele enfatiza que são inúmeros os efeitos do agrotóxico na região. Em sua pesquisa ainda em andamento, com foco na saúde humana, Mota e sua equipe examinaram aproximadamente 400 pessoas adultas entre os municípios de Belterra e Mojuí dos Campos. Os impactos de veneno identificados na saúde da população são graves.
“Existem no território pessoas em tratamento de câncer que eu estou acompanhando, com agravamento de diabetes, com problemas psicológicos e psiquiátricos advindos da problemática do impacto ambiental, pessoas com problema distúrbio do sono, com insônia. Eu posso te adiantar que o estudo demonstrou que há uma piora na qualidade da saúde e a situação é dramática”, lamenta o médico.
“O herbicida glifosato foi detectado como sendo o mais utilizado na região é comprovadamente cancerígeno, causa doenças no cérebro, afeta o coração e o fígado, e pode causar infertilidade”, afirma Mota.
Frente ao cenário de crescimento de contaminação no Planalto Santareno, que pode se agravar ainda mais com a regulamentação do ‘PL do Veneno’, existe a preocupação da falta de identificação das doenças associadas ao agrotóxico. “Vamos necessitar ressignificar e capacitar as instituições, principalmente a atenção primária de saúde para que possa reconhecer os problemas de saúde advindos da exposição aos agrotóxicos porque atualmente o sistema não reconhece”, alerta o pesquisador.
O que dizem as autoridades?
A reportagem procurou o ministério da Agricultura e Pecuária para entender sobre a fiscalização quanto ao uso indevido de agrotóxicos na Amazônia. Em nota, o ministério respondeu compete legalmente aos estados fiscalizar o uso de agrotóxicos em áreas que interferem nos territórios tradicionais.
A Amazônia Real questionou à Anvisa sobre a quantidade de notificações de intoxicação na Amazônia Legal por agrotóxicos, através do Disque-Intoxicação – serviço de emergência para auxiliar casos de exposição a agrotóxicos. A agência afirmou não ter os dados disponíveis, uma vez que “os casos atendidos pelos Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIATs) são tratados localmente”.
O ministério da Saúde também foi procurado para informar como o atendimento a pessoas contaminadas é realizado. O órgão explicou que existem na Amazônia 210 municípios prioritários que desenvolvem ações da Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos (VSPEA), um programa de atenção, diagnóstico e tratamento da população exposta a agrotóxicos.
“Todo caso suspeito ou confirmado deve ser comunicado e a vigilância em saúde deve ser acionada para identificação da fonte de exposição e controle dos riscos”, explicou o ministério da Saúde à Amazônia Real, de forma genérica. O órgão não respondeu sobre número de casos identificados no último ano na Amazônia.