A crise da educação no Brasil, não é uma crise; é um projeto. (Darcy Ribeiro)
O caminho para a universalização da educação no Brasil tem sido longo, tortuoso e descontinuado. O entendimento da “educação básica – da educação infantil ao ensino médio – como um bem público, gratuito e universal, portanto para todas as pessoas”, é recente em nosso país em relação a outros países com o mesmo nível de desenvolvimento econômico.
Há, como alguém já disse, uma indecisão congênita em relação ao compromisso da educação como um direito fundamental para o pleno desenvolvimento da pessoa, previsto na Constituição de 1988 e como condição sine qua non para a efetiva construção de uma sociedade justa, próspera e democrática, que garanta dignidade a toda gente.
Longe de ser um efeito fortuito da incapacidade administrativa das diferentes esferas de governo, embora este seja um traço comum, trata-se, efetivamente, do confronto e da disputa entre projetos de sociedade, não só distintos, mas revelados, nos últimos anos, como antagônicos.
A realidade é sempre muito mais complexa, mas podemos afirmar que vivemos o confronto entre um projeto societário que considera os avanços civilizatórios no campo da educação, da ciência, da saúde pública, da cultura para a plena efetivação da Democracia, versus um projeto que despreza estes avanços apostando na chamada meritocracia, na violência, nos medos e silenciamentos e nas diferentes formas de exclusão/seleção/hierarquia “natural” entre os indivíduos.
É exatamente nesta perspectiva que precisamos compreender as disputas públicas em torno da agenda da Conferência Nacional de Educação que acontecerá nos dias 28, 29 e 30 de janeiro em Brasília. A etapa nacional será um importante momento para compreender a atual situação da educação em nosso país, retomando os desafios que queremos superar e os meios políticos, pedagógicos, financeiros para realizar os avanços necessários, previstos no atual PNE.
O PNE, conforme definido na Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 214 e na Lei de Diretrizes e Educação Nacional – LDBEN (Lei 9.394/1996), tem como objetivo, a articulação de um sistema nacional que integre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios de todo o país, além de definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias que assegurem a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis. Materializar este princípio constitucional não nunca foi simples ou fácil. Tal como ocorre com o PNE vigente (2014-2024), que fecha o seu ciclo bem distante das metas e estratégias que nele foram definidas, apesar dos movimentos em defesa da educação, e dos pesquisadores/as, professores/as, estudantes, constantemente denunciarem os desmontes e enganos dos últimos anos.
É diante deste contexto que a CONAE cumpre com o seu papel de recolocar temas fundamentais no cenário público, para amplos e profundos debates que reunirão o campo educacional na diversidade e pluralidade democrática que caracteriza a sociedade brasileira. Os desafios são gigantes, da educação infantil a pós-graduação, passando pelos temas da universalização com qualidade, pela educação integral em tempo integral – somos dos poucos países que mantem a jornada escolar de quatro horas diárias, pela retomada das políticas de educação de jovens e adultos, pela revogação urgente da reforma do ensino médio, pela educação profissional articulada a formação escolar, pela carreira e formação dos professores para os desafios da contemporaneidade, pela gestão democrática, pelo financiamento da educação pública, entre outros.
Historicamente, sobretudo nos períodos de certa estabilidade democrática, conferências públicas possibilitaram o debate acerca do projeto educacional para o país, explicitando-se em todas as conferências o enfrentamento entre interesses privados e privatistas e interesses públicos, sobretudo na defesa de recursos do erário para consolidação de um sistema público, gerido e constituído por professores concursados. Tais disputas não desapareceram do cenário e tem forte presença, por exemplo no tema do ensino médio, etapa conclusiva da educação básica, cuja reforma de 2017 apequenou e desfigurou a educação das juventudes brasileiras. Mas este tema merece um artigo específico.
Posto isto, importante retomarmos, na recente linha do tempo, o panorama desencadeado pela ruptura institucional de 2016 e que desarticulou ações e políticas estruturais, definidas pelo Plano Nacional de Educação de 2014, bem como diminuiu o orçamento da área e estabeleceu como modus operandi a perseguição a professoras, professores, pesquisadoras, pesquisadores e estudantes em todo o país. Deixando de lado, propositadamente os debates/proposições para ampliação do acesso, qualidade do currículo, formação de professores, enveredou-se por uma trilha de desmontes/desconfigurações relacionadas a educação domiciliar, escolas cívico-militares, escolas com mordaça, afrontando a Constituição Nacional e tentando definir no campo educacional a agenda do pensamento fascista que caracterizou o período.
No Brasil, quando falamos de educação e de acesso à escola básica, nos referimos à uma parcela da população que envolve muitos milhões de pessoas, considerando infâncias, juventudes e pessoas adultas, que tem direito a processos educativos sistemáticos e continuados para seu desenvolvimento pessoal e laboral e para o desenvolvimento de toda sociedade.
Portanto, elaborar uma política nacional que articule princípios comuns e alinhados a Constituição de 1988, é profundamente desafiador neste momento histórico para retomarmos os postulados do último PNE, cujo tempo de implementação que seria 2014-2024, foi completamente desperdiçado pelos mesmo atores políticos que agora tentam causar confusão em torno das bandeiras históricas de lutas de grandes brasileiros e brasileiras como Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Maria Nilde Mascelani, entre tantos outros e outras.
Assim, nos cabe a defesa de uma Conferência que afirme a perspectiva da universalização dos saberes, riquezas e direitos, como condição aos processos de inclusão e humanização, que tem na escola pública espaço imprescindível para que saiamos do lugar da crise para um projeto histórico contínuo e de construção de uma sociedade efetivamente democrática, na qual caibam todas as formas de existência em toda a sua dignidade.
Que não percamos mais esta oportunidade histórica e nem desperdicemos o tempo das reflexões e debates com aqueles que desprezam a educação pública e a própria esfera pública. Pois, como dizia Anisio Teixeira: “só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”.
* Jaqueline Moll: professora titular da Faculdade de Educação e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: química da vida e saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Câmpus de Frederico Westphalen; Daniel Momoli: professor do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas e Vice-líder do Arteversa-grupo de estudos e pesquisas em arte e docência.
** Este artigo foi publicado originalmente no Sul21.
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko