Massacre Palestino

Entenda o processo da Corte Internacional de Justiça contra Israel

Saiba quais são as acusações e os próximos passos do processo; governo israelense e aliados tentam deslegitimar corte

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
A maioria dos palestinos mortos por Israel é de crianças - Said KHATIB / AFP

Na última sexta-feira (26), o Tribunal Internacional de Justiça em Haia (ICJ), o mais alto tribunal da ONU, emitiu uma decisão provisória solicitada pela África do Sul acusando Israel de genocídio contra palestinos na Faixa de Gaza. Ao fazer isso, o tribunal decidiu investigar sob sua jurisdição as graves acusações, considerando que as alegações feitas pela África do Sul são verossímeis e relevantes.  

O julgamento pode levar anos para ser concluído, mas só chegar a esse estágio é evento histórico. Nunca antes um país situado no centro do poder "ocidental" foi investigado por genocídio em tribunal internacional

Embora o Estado de Israel tenha sido apontado durante décadas por suas violações sistemáticas e contínuas dos direitos humanos e do direito internacional, além de ter um longo histórico de descumprimento das resoluções da ONU, esta será a primeira vez em que terá que responder legalmente por suas ações. 

A decisão do tribunal afeta toda a "comunidade internacional ocidental" e o "mundo baseado em regras" que eles afirmam defender. Assim que a denúncia foi apresentada, o Estado de Israel anunciou que impugnaria o caso por se tratar de um "libelo de sangue" - uma referência às falsas acusações usadas para perseguir a comunidade judaica. Washington e Londres imediatamente se apressaram em rejeitar a denúncia chamando-a de "sem fundamento" e "sem sentido".

No entanto, a imensa maioria dos juízes da mais alta corte da ONU não considerou a reclamação "infundada", muito menos "sem sentido". Durante a leitura da decisão provisória, a presidente do tribunal, Joan E. Donoghue, explicou por mais de 45 minutos os motivos que levam a crer que o povo palestino poderia estar sofrendo genocídio em Gaza.

Donoghue classificou a situação atual como uma "verdadeira tragédia humana" e denunciou "a situação particularmente sombria das crianças na Faixa de Gaza. 

Números

As cifras dão conta do horror pelo qual o povo palestino está passando. Na Faixa de Gaza, até o momento, mais de 26.750 palestinos foram assassinados. Há mais de 8 mil desaparecidos nos escombros, 65.600 feridos, enquanto mais de 85% da população foi deslocada à força de suas casas (1,93 milhão de pessoas). Ao mesmo tempo, os eventos que envolvem o horror no território são sistematicamente silenciados: até o momento, mais de 120 jornalistas foram assassinados.     

A Organização Mundial da Saúde estima que 1 em cada 4 famílias está em condições "catastróficas" e corre o risco de inanição. Mais da metade das casas palestinas foram destruídas pelos ataques. Ao mesmo tempo, 378 centros educacionais e 221 locais de culto foram demolidos, e o sistema médico está totalmente em colapso.

De acordo com o Artigo 2 da Convenção Internacional sobre Genocídio, qualquer ação que "imponha deliberadamente ao grupo condições de vida destinadas a provocar sua destruição física, total ou parcial" é considerada parte da intenção genocida. Assim, a destruição das condições que tornam possível a vida em Gaza também pode ser considerada um ato genocida. 
 
Por isso, o tribunal aceitou seis das nove medidas provisórias solicitadas. Essas medidas são de natureza obrigatória e devem ser implementadas imediatamente, com o objetivo de impedir a continuidade de um possível genocídio enquanto os eventos estão sendo investigados. As medidas incluem a permissão da entrada de ajuda humanitária em Gaza, a cessação de danos físicos e psicológicos à população e a garantia de que nenhuma prova seja destruída que possa comprometer a investigação. 

Além disso, com base na documentação apresentada pela África do Sul, o tribunal aponta as declarações de membros importantes do governo do Estado de Israel como possíveis provas que demonstrariam intenção genocida. Em particular, menciona o Presidente Isaac Herzog, o Ministro da Defesa Yoav Gallant e o Ministro das Relações Exteriores Yisrael Katz.

Prazo

O tribunal deu a Israel um mês para apresentar um relatório sobre seu cumprimento das ordens do tribunal. Ao mesmo tempo, a decisão da Corte invoca o artigo 3 da Convenção sobre Genocídio, que afirma que a cumplicidade com um estado genocida constitui um crime. Assim, se for determinado que o povo palestino está sofrendo genocídio, qualquer país ou entidade que colabore com o Estado de Israel pode ser apontado como cúmplice.

Essa decisão aponta diretamente para o "coração do Ocidente". Somente no Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos vetaram 52 resoluções contra as políticas de Israel. Enquanto que, somente em novembro passado, o Congresso dos EUA aprovou US$ 14,5 bilhões (mais de R$ 70 bi) em "ajuda militar extraordinária".

Consequências 

Consultado pelo Brasil de Fato, o especialista em direitos humanos Francis Boyle - quem foi o primeiro a ganhar processos de prevenção de genocídio - diz que, embora seja provável que Israel não cumpra as ordens da CIJ, a sanção de medidas provisórias "abre a porta para uma série de medidas que podem ser tomadas sob a lei internacional no caso de Israel não respeitar a decisão".  

"Como em qualquer outro procedimento legal, você vai até o juiz para obter uma ordem. Mas o juiz não executa a ordem, ela é executada pelo xerife", explica Boyle. 

"De acordo com os termos da carta da ONU, o Conselho de Segurança é o xerife. Se os EUA ou o Reino Unido vetarem qualquer ação de execução contra Israel no conselho - o que eles fazem sistematicamente - a África do Sul poderá levar essa ordem ao Conselho de Segurança da ONU para exigir sua execução". 

Bayle ressalta que, se isso acontecesse, as consequências poderiam ser "bastante sérias" para Israel. A Assembleia Geral poderia suspender a participação de Israel em suas atividades. "O mesmo que a Assembleia Geral fez contra o regime criminoso do apartheid na África do Sul e também contra meu adversário, a Iugoslávia genocida", exemplifica.

Por sua vez, a Assembleia Geral poderia recomendar que seus estados-membros adotassem sanções econômicas contra Israel e admitir a Palestina como estado-membro pleno da ONU - atualmente, ela tem apenas o status de estado observador. 

"Os votos para admitir a Palestina estão lá", disse Boyle. "A importância disso é que em toda a história da Assembleia Geral da ONU - que remonta a 1945 - nenhum Estado membro jamais foi destruído. Enquanto isso, Israel e os sionistas de todo o mundo querem destruir a Palestina e infligir uma segunda Nakba aos palestinos. A inclusão da Palestina na ONU é importante para protegê-los", acrescenta.

Próximas reações 

É provável que a defesa israelense sofra um novo revés nas próximas semanas. Em 2022, a Comissão Internacional Independente de Investigação sobre os Territórios Palestinos Ocupados, criada pela ONU, afirmou em um relatório à Assembleia Geral ter "motivos razoáveis" para considerar a ocupação israelense ilegal de acordo com a lei internacional. Além disso, apontou as políticas israelenses de anexação de fato dos territórios ocupados. 

Após esse relatório, a Assembleia Geral solicitou à CIJ um pronunciamento não vinculante sobre a questão, que será publicado em 19 de fevereiro. 

Consultado pelo Brasil de Fato, o especialista em direito internacional e membro da organização Law for Palestine, Hassan Ben Imran, assegura que, se a CIJ considerar as ocupações israelenses ilegais, isso implicaria a queda do argumento da legítima defesa: 

"Isso significa que Israel não pode reivindicar o direito à autodefesa, porque está ocupando ilegalmente o país. Assim, a agressão contra a Palestina é uma continuação da agressão, do uso ilegal da força, e não da autodefesa. Do ponto de vista da lei internacional, em vez de ser o atacado, Israel seria agora o agressor".

Reações internacionais 

Assim que a decisão foi conhecida, o primeiro-ministro ultradireitista de Israel, Natanyahu, adotou estratégia de criticar a ONU com o objetivo de mudar o foco do debate internacional. Ele rapidamente se referiu ao veredicto como uma "tentativa vil de negar a Israel seu direito fundamental à autodefesa", chamando as medidas do tribunal de "discriminação flagrante contra o Estado judeu". 
 
A ideia de discriminação contra o "Estado judeu" não é nova. Com frequência, a defesa do Estado de Israel afirma que ataques às suas políticas equivalem a ataques antissemitas ao povo judeu.   

Acusação

Apenas dois dias antes do anúncio da decisão provisória, Tel Aviv fez circular entre seus aliados um suposto relatório de inteligência que alegava reunir provas de que 12 membros - dos 13 mil funcionários palestinos- que trabalham para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) estavam envolvidos nos ataques a Israel.

A UNRWA foi estabelecida em 1949 por mandato da Assembleia Geral, após a criação de Israel. Atualmente, ela presta assistência a mais de 5,6 milhões de palestinos nos territórios ocupados, incluindo Jerusalém, assim como a refugiados - que foram expulsos de seus territórios - que vivem na Síria, no Líbano e na Jordânia.

Curiosamente, no mesmo dia do veredicto do tribunal, as repercussões internacionais da acusação de Israel contra a UNRWA - cujas provas até agora consistem apenas na palavra de Tel Aviv - tornaram-se conhecidas.  

Imediatamente, vários aliados israelenses - liderados pelos EUA, Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Holanda, Áustria, Finlândia, Japão, Austrália e outros - anunciaram que estavam suspendendo sua ajuda à agência. Isso significa que 5,6 milhões de pessoas ficarão em uma situação de extrema vulnerabilidade.

Em uma coletiva de imprensa em Genebra na quarta-feira (30), o porta-voz da OMS, Christian Lindmeier, denunciou que "a atividade criminosa nunca pode ficar impune. Mas a discussão no momento é mais uma distração do que realmente está acontecendo todos os dias, todas as horas, todos os minutos em Gaza. É uma distração das quase 27 mil mortes até agora, 70% das quais são mulheres e crianças."

A denúncia da UNRWA busca, pelo menos no curto prazo, evitar a sanção da mídia em relação à decisão da Corte. Mas, ao mesmo tempo, ela ataca a credibilidade da UNRWA, uma agência cujo trabalho faz parte das fontes consideradas na decisão da Corte em sua avaliação da situação do povo palestino. Dessa forma, o ataque à UNRWA enfraquece a base e a lógica da decisão da CIJ.

Edição: Rodrigo Durão Coelho