Nos processos de instalação dos grandes empreendimentos eólicos no Nordeste do país é comum que representantes das empresas cheguem até as pequenas comunidades onde os aerogeradores serão instalados com a promessa de que arrendar a terra para essas instalações é garantia de renda e até mesmo que os agricultores e agricultoras poderão parar de trabalhar.
No entanto, tal promessa de lucros altos e uma vida mais tranquila para essas famílias não chega a se concretizar. É o que mostra o relatório técnico Aspectos jurídicos da relação contratual entre empresas e comunidades do Nordeste brasileiro para a geração de energia renovável: o caso da energia eólica, realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em conjunto com o Plano Nordeste Potência.
O relatório analisa 50 contratos de arrendamento de terras para instalação de empreendimentos eólicos no Nordeste. De acordo com o documento, "o que o estudo demonstra é a existência de contratos-padrão marcados por cláusulas com longos prazos contratuais, remunerações irrisórias, contrapartidas sociais insuficientes, fixação de cláusulas desvantajosas, multas exorbitantes e outras pactuações controversas aos interesses das comunidades envolvidas. Eles se realizam à margem de qualquer intervenção de instituições públicas, o que garante que empresas disponham indiscriminadamente do território de populações sob a aparência da lei."
Esta questão se torna de extrema relevância no debate sobre as energias renováveis, mas passa despercebida ou é propositalmente silenciada pela mídia hegemônica brasileira, como aponta a pesquisa Vozes Silenciadas "Energias Limpas: o que a mídia silencia", realizada pelo Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social. O escopo temporal do estudo contempla a cobertura de grandes jornais nacionais e regionais, entre janeiro de 2021 e junho de 2023, se voltando para a análise dos impactos dos grandes empreendimentos de energias renováveis em comunidades e territórios do Nordeste.
Especificamente, aqui chamamos atenção para a cobertura da Folha de S. Paulo, a partir da análise de 49 matérias publicadas no site do jornal. A pesquisa Vozes Silenciadas busca identificar qual debate tem sido feito nesse e em outros veículos sobre as energias renováveis no país, se é possível perceber um viés político no discurso e na linguagem desses conteúdos, se há uma preocupação com a garantia dos direitos das comunidades direta e indiretamente impactadas com a implantação desses grandes empreendimentos, quais são os silenciamentos que se destacam a partir da opção de abordagens do jornal sobre o tema, dentre outros aspectos observados durante a análise. E um desses aspectos identificados é justamente a ausência de matérias que abordem os contratos de arrendamento de terra.
Contratos abusivos, cláusulas obscuras
A nota técnica do Inesc aponta que os 50 contratos analisados podem ser resumidos em sete modelos padronizados, o que aproxima muito esses processos de arrendamento dos chamados contratos de adesão, como os que assinamos quando solicitamos, por exemplo, um serviço de internet ou de telefonia celular. Ou seja, não há margem para negociações sobre as cláusulas contratuais.
Tais textos padronizados se referem, inclusive, a encargos e obrigações dos pequenos proprietários que arrendam suas terras. O relatório técnico cita exemplos de contratos que fixaram um valor de R$ 2 mil mensais a ser pago pela empresa ao proprietário da terra. E há casos, inclusive, em que a instalação de equipamento se deu mediante cessão gratuita, condicionando eventuais pagamentos à operacionalização efetiva do empreendimento.
"Em síntese, a atuação de empresas para a instalação de projetos de geração de energia eólica na região, com o apoio e a participação do poder público, reproduz a exclusão de populações diretamente afetadas pelos empreendimentos, suprimindo o seu direito de participação e distanciando-as dos processos de tomada de decisão", afirma o relatório.
Tais pontos obscuros do contrato, por motivos óbvios, nunca são devidamente explicados à população. A pesquisa pontua que a grande maioria dessas famílias tem baixa escolaridade e pouco ou nenhum acesso a serviços públicos e/ou privados de advocacia que os auxilie na compreensão do que dizem esses contratos escritos em um juridiquês pouco acessível. "Atualmente, verifica-se uma sobreposição de interesses econômicos privados em detrimento do bem-estar social de comunidades no âmbito da exploração de energias renováveis no Brasil, sobretudo na Região Nordeste", diz a pesquisa.
O silêncio da mídia tradicional
O levantamento preliminar da pesquisa Vozes Silenciadas aponta que essa e outras questões que dizem respeito aos impactos da implantação dos empreendimentos eólicos no Nordeste são uma grande ausência na cobertura da mídia tradicional. É importante que se diga, por exemplo, que a maioria das matérias publicadas na Folha de S. Paulo sobre energia eólica está nas seções de Economia, Mercado e Estúdio Folha. Muitas dessas matérias trazem como fontes apenas as grandes empresas do setor, como Grupo Electra, Vince Partners, Enel, Solfácil, Equatorial Energia, Engenvix, dentre outras.
O caráter e a perspectiva econômica dados às matérias transmitem a ideia de uma vitrine na qual as variadas formas de negócio e mercado e as possibilidades de investimento nesse setor se apresentam dentro de uma espécie de catálogo de opções. Por isso também a ausência de um debate que aborde a complexidade merecida sobre o assunto, que apresente também os impactos que esses grandes empreendimentos vêm causando nos territórios e ao mesmo tempo dê visibilidade às comunidades impactadas.
Ressalto que, ao longo do período analisado, não foi identificada nenhuma matéria que tratasse sobre os impactos dos empreendimentos. Além disso, 47 dos 49 textos analisados se apresentavam no formato de notícias factuais, os outros dois eram artigos de opinião e nenhum deles tinha um formato de reportagem que aprofundasse o tema, com diversidade de fontes e conteúdo.
Vale dizer ainda que apenas uma matéria dentre as analisadas aponta quem são os proprietários das terras onde o empreendimento foi construído e as características do local de instalação. E nenhuma das 49 matérias fala se houve algum tipo de consulta popular antes e durante o processo de instalação dos aerogeradores. Ao mesmo tempo, é possível observar que quase cem por cento das matérias defendem esse modelo energético para a transição, com exceção de uma única matéria em que não foi possível identificar o posicionamento.
A narrativa dominante nos textos analisados se utiliza da urgência em promover uma mudança da matriz energética no mundo, a fim de conter as mudanças climáticas, para ignorar os métodos utilizados pelo modelo adotado no Brasil, que tem gerado grandes impactos em comunidades camponesas no Nordeste. Essa narrativa ignora, por exemplo, a possibilidade de buscar métodos de promover uma transição energética que, efetivamente, respeite direitos humanos e da natureza em seu processo e, assim, possa reivindicar o nome de "energias limpas".
*Alfredo Portugal é educador e comunicador popular, integrante do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social; coordenador do Brasil de Fato na Bahia, mestre em Educação do Campo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É pesquisador e coordenador da edição do Vozes Silenciadas "Energias Limpas: o que a mídia silencia".
** As opiniões contidas nesse artigo não refletem necessariamente as do Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho