O mês de janeiro de 2024 está entre os dez mais chuvosos em Brasília nos últimos 60 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Além de contribuir para a reprodução do mosquito que transmite a dengue, as fortes chuvas causam alagamentos e estragos, principalmente nas áreas periféricas e mais vulneráveis.
Nos dois primeiros dias do ano, a chuva já havia alcançado mais da metade prevista para todo o mês de janeiro no Distrito Federal. Os moradores da Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante, foram um dos mais afetados. Devido ao transbordamento do córrego Riacho Fundo, parte da população local teve que deixar suas casas, além de perder móveis e eletrodomésticos.
Semanas após as inundações, os moradores ainda sofrem as consequências. Cerca de 110 casas estão com risco de desabamento, segundo a liderança comunitária da região.
“Os moradores, que estão há mais de 30 anos na Vila Cauhy, têm falado que nunca enfrentaram uma situação tão grave causada pelas enchentes e alagamentos”, relatou ao Brasil de Fato DF a professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB, Michelly Elias. “Estão perdendo as casas, o mínimo que conquistaram com muito esforço, e sofrendo vários problemas de saúde”, contou.
Segundo a professora, o problema, que reflete uma forma de racismo ambiental, poderia ter sido evitado.
“A chuva é um problema sazonal com índice de previsibilidade. As consequências do alagamento, de todo o caos que isso acaba causando, também são previsíveis pela própria configuração do território”, argumentou. As regiões mais afetadas estão em áreas de risco e de ocupação territorial desordenada, com populações em níveis de vulnerabilidade socioeconômica e, em sua maioria, negras.
:: Racismo ambiental e os desafios na superação das desigualdades ::
"É muito ruim, é desesperador. Eu falo por experiência própria porque já passei por essa situação", contou à reportagem Susana Rodrigues, integrante do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD-DF) e moradora do Trecho 3 no Sol Nascente. A área é a parte mais baixa do setor e, por isso, recebe grande fluxo de água durante as chuvas.
A situação afeta inclusive o deslocamento da população dentro do próprio território. "Quando acontece essa chuva forte, quem está lá em cima não desce e quem está aqui embaixo também fica sem acesso à parte mais alta", relatou Susana. "A água entra dentro de casa e os moradores acabam tendo prejuízo com eletrodomésticos, móveis, tudo, como já aconteceu na minha casa", lamentou.
Segundo a moradora, a dengue também tem sido um grande problema para a população local durante esse período chuvoso. "Sol Nascente é um local muito propício pra isso, porque temos muitos lotes vagos, muito lixo na rua, muita vasilha aberta com água.Temos aqui um campo de futebol do lado da minha casa, que a gente já pediu e implorou pra que viessem fazer a podagem, mas eles não estão vindo", desabafou.
Um dos dez janeiros mais chuvosos dos últimos 60 anos
De 1 a 30 de janeiro de 2024, Brasília recebeu 376 mm de chuva, segundo medição do Inmet. Esse valor representa uma precipitação 82% acima da média normal para o mês, que é de 206 mm.
O clima foi influenciado por dois episódios de Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), que se organizaram ao longo do mês. Várias áreas do DF sofreram com as fortes chuvas.
Em Águas Emendadas choveu 228,4 mm em 30 dias, em Gama/Ponte Alta, 318 mm e no local da estação Paranoá (COOPA) choveu 291,8 mm. A região de Brazlândia acumulou 187,8 mm em 30 dias.
No dia 12 de janeiro, o Governo do Distrito Federal (GDF) chegou a decretar estado de emergência em todo o DF em razão das chuvas.
As Regiões Administrativas do Núcleo Bandeirante, Sobradinho, Sobradinho II, São Sebastião, Jardim Botânico, Estrutural/Scia, Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), Sol Nascente/Pôr do Sol, Ceilândia, Fercal, Arniqueira e Itapoã são as áreas mais impactadas pelas fortes chuvas de janeiro na capital federal.
Racismo ambiental
Os impactos da crise climática, que se traduzem em desastres ambientais, como chuvas, alagamentos, desabamentos e secas, afetam de forma desproporcional a população brasileira. Aspectos como raça e gênero influenciam essa disparidade. Esse fenômeno é tratado por diversos estudiosos ao redor do mundo como racismo ambiental.
De acordo com a professora Michelly Elias, essa lógica também opera no DF e é perceptível nos estragos causados pelas fortes chuvas de janeiro.
“A população que historicamente vive em condição de vulnerabilidade socioeconômica no DF é também a que vive nesses territórios que sofrem os efeitos mais graves dos problemas ambientais que ocorrem nas grandes cidades”, explicou.
O DF tem a maior renda per capita do Brasil, segundo dados do Censo de 2022. Mas é também um dos entes federativos mais desiguais. Segundo o Mapa das Desigualdades, elaborado e divulgado em 2023 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a maior renda per capita do DF equivale a 16 vezes o valor da menor renda. A cidade com as menores rendas, a Estrutural, é uma das cidades mais negras do DF, enquanto na outra ponta, o Lago Sul, é a mais branca.
“São fundamentalmente pessoas negras que tiveram pouco acesso aos serviços públicos nas histórias familiares e de suas vidas, principalmente educação, e vão ocupar postos de trabalho mais precarizados e mais mal remunerados”, afirmou Michelly sobre a população que vive em áreas de risco e mais sofre com os impactos das mudanças climáticas. Segundo ela, são pessoas que “foram ocupando essas regiões como única alternativa de vida, de lugar para morar, para construir, para ter suas famílias e muitas vezes também trabalhar”.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino