A Bayer escolheu os nutricionistas brasileiros como um público-chave em meio a uma crise global de imagem, perdas bilionárias e a crescente preocupação sobre mudanças climáticas, meio ambiente e alimentação saudável.
A divisão agrícola da gigante alemã no Brasil patrocinou uma série de publicações com o pretexto de preencher uma lacuna na formação dos profissionais da nutrição sobre tópicos relacionados à agricultura e sustentabilidade na produção de alimentos.
“Quando presente, Agricultura tende a ser um tópico abordado de maneira muito rasa nas graduações em Nutrição, e que muitas vezes é demandado no momento de orientar corretamente os pacientes nas escolhas de seus alimentos”, sugere o texto de divulgação do e-book Agricultura para nutricionistas: tudo o que você precisa saber sobre a produção de alimentos.
O e-book e outros cinco materiais patrocinados pela Bayer foram publicados e disponibilizados gratuitamente pelo site Academia da Nutrição, uma plataforma digital que se propõe a fornecer “atualizações relevantes da ciência e do mercado para nutricionistas e estudantes em todo o Brasil. Com uma comunidade ativa de mais de 39 mil profissionais”.
Em meio a temas como sustentabilidade, manejo do solo e biotecnologia, os textos tentam convencer os nutricionistas de que agrotóxicos e alimentos transgênicos são seguros e, mais do que isso, imprescindíveis para garantir a segurança alimentar e nutricional, além de desqualificar a produção de orgânicos e suas vantagens ambientais e nutricionais.
Os textos são assinados pelas nutricionistas Sonia Tucunduva e Lara Natacci. Sonia é professora aposentada da Faculdade de Saúde Pública da USP e tem um histórico de publicações patrocinadas por empresas. Tentamos contato com ambas, mas não tivemos retorno até o fechamento deste texto.
As cartilhas chegam a se valer, como referência bibliográfica, do Brasil Paralelo, uma conhecida central de notícias falsas que chegou até mesmo a ser convocada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito das investigações sobre disseminação de mentiras. Além disso, os materiais chamam agrotóxicos de “protetor de cultivos”, adotando um eufemismo que tem sido promovido pela corporação alemã.
A ênfase na segurança de agrotóxicos e transgênicos aparece inclusive nas publicações que não tratam de agricultura diretamente, como é o caso da cartilha “Como aumentar o consumo de frutas, verduras e legumes do seu paciente?”
Dados sobre consumo insuficiente desses alimentos, excesso de peso e insegurança alimentar entre a população brasileira são seguidos de informações controversas sobre os alimentos orgânicos e da defesa da agricultura de precisão, técnica em que os pesticidas são aplicados de forma mais precisa e localizada.
“Os nutricionistas são um público prioritário pra eles. Em primeiro lugar porque é quem está não apenas nos consultórios, mas também no sistema público de saúde e em todos os outros espaços determinando cardápios. Possivelmente pessoas que poderiam fazer, por exemplo, escolhas por alimentos mais saudáveis. Então, esse é um público muito importante pra Bayer”, avalia Alan Tygel, integrante da coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, uma rede criada em 2011 e que hoje reúne movimentos sociais do campo e da cidade, organizações sindicais e estudantis, entidades científicas de ensino e pesquisa, conselhos profissionais, ONGs, grupos de consumo responsável, entre outros atores.
Na avaliação de Alan, a intenção por trás do discurso supostamente informativo e científico é dar respostas práticas e soluções fáceis diante da complexidade que envolve a produção de alimentos seguros para a saúde e o meio ambiente.
“Os profissionais da nutrição vão estar sempre nesse dilema. Não podem deixar de recomendar o consumo de frutas, legumes e verduras, por exemplo, porque eles estão contaminados com agrotóxicos. Assim como um pediatra não pode indicar que uma mãe não amamente uma criança, ainda que possivelmente o leite esteja contaminado com resíduos de agrotóxicos”, diz Alan, em referência a um estudo recente feito por um obstetra brasileiro que detectou a presença de glifosato no leite materno.
Brasil, uma lixeira química
O glifosato tem sido uma enorme pedra no sapato dos planos da divisão agrícola da Bayer desde a compra, em 2018, da Monsanto, então fabricante do Roundup. A empresa trava uma batalha nos tribunais americanos para evitar o pagamento de polpudas indenizações a cidadãos que desenvolveram câncer depois de usar o herbicida. Em sua mais recente derrota, a Bayer foi condenada a pagar US$ 2,25 bilhões a um cidadão da Pensilvânia. Foi a quinta sentença contrária à gigante alemã, que vem perdendo valor de mercado desde então.
Velho conhecido por quem estuda o tema, o glifosato é o agrotóxico mais utilizado no Brasil. É aplicado nos monocultivos de soja, milho, algodão e açúcar. Considerado possivelmente cancerígeno para seres humanos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), foi banido em alguns países da União Europeia e tem restrição rigorosa em outros.
“Para produzir mais alimentos de forma sustentável, os agricultores precisam de diversas soluções. Neste contexto, os produtos de proteção de cultivos podem ser umas das ferramentas disponíveis para ajudar a garantir o suprimento de alimentos e a segurança alimentar da população mundial. Eles podem contribuir para o aumento da produtividade na agricultura, melhorando o acesso da população aos alimentos”, sugere o artigo “Segurança alimentar: Como garantir alimentos de qualidade, seguros e acessíveis para alimentar o mundo?”.
Contrariando um amplo conjunto de evidências que comprovam a permissividade da legislação brasileira, o texto sugere que “os pesticidas passam por um processo bastante rigoroso de regulamentação, sendo submetidos a anos de testes minuciosos antes de serem liberados para comercialização. Com isso, podemos afirmar que os produtos disponibilizados foram todos avaliados e mostraram segurança, sempre que utilizados conforme as recomendações de quem desenvolveu o produto”.
O Brasil permite uma presença, em média, 400 vezes maior de agrotóxicos nos alimentos em comparação com a União Europeia. Na água potável, nosso limite para o glifosato chega a ser até 5 mil vezes maior. Os dados são da pesquisadora Larissa Mies Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária da USP.
Enviamos as publicações para a engenheira química Sonia Corina Hess. Professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e três pós-doutorados na área, ela diz que o tema a aborrece e que se sente cansada. “Se fosse segura a avaliação, por que é banido na União Europeia e não é banido aqui? Não tem segurança nenhuma. O Brasil é a maior lixeira química do mundo. A Bayer produz para o mundo e não pode vender na Europa, onde é a sede deles. Por quê?”, questiona. “Estão com a barra suja e gastando um dinheirão com publicidade para esconder essa sujeirada.”
Proteção de cultivos?
Em meio a incertezas quanto ao futuro da produção de alimentos e índices alarmantes de pessoas vivendo em insegurança alimentar, proteger cultivos parece fazer todo sentido. O discurso é que agrotóxicos reduzem perdas, o que, por sua vez, diminui o desperdício e responderia ao desafio global de alimentar a população mundial. O Brasil, grande consumidor desses produtos, que o diga (contém ironia). Cerca de 80% dos pesticidas utilizados por aqui vão para monocultivos de commodities como soja, milho e cana de açúcar.
“Proteção de cultivos” é um eufemismo adotado globalmente nos materiais da Bayer para se referir a herbicidas, fungicidas, inseticidas e bactericidas. Agrotóxicos, no bom e velho português do Brasil, defensivos, pesticidas ou agroquímicos. Enfim, veneno.
Esse contorcionismo narrativo aparece também em relatórios globais em que a empresa busca dar uma guinada retórica na direção da sustentabilidade, em meio à emergente discussão sobre agricultura regenerativa, ao mesmo tempo em que cria metas ambiciosas de vendas dos seus produtos convencionais.
O Brasil é um dos maiores mercados para a divisão agrícola da Bayer. Os produtos para a produção de milho e soja representaram 60% dos 25,2 bilhões de euros em vendas da Crop Science, cujo CEO é o brasileiro Rodrigo Santos. Do valor total de vendas, mais de 70% foram para as Américas, o que inclui Estados Unidos e Brasil.
Os dados são de 2022 e constam de uma apresentação feita durante o Bayer Crop Science Innovation Summit, um evento realizado em Nova York, em junho de 2023.
Parceria estratégica
A parceria com os profissionais que lidam com a alimentação não é uma prática nova para a Bayer, que, além de agrotóxicos, produz medicamentos e suplementos alimentares. Também não é a primeira publicação com alegações científicas patrocinadas pela empresa com endosso de médicos e nutricionistas próximos da indústria.
No livro Além da nutrição: O impacto da nutrição materna na saúde das futuras gerações, os termos suplementos/suplementação aparecem 335 vezes. Parte do lançamento incluiu uma live com uma das autoras, a nutricionista Carolina Pimentel, e a influenciadora Karol Pinheiro. Em diversos trechos se promove a suplementação.
Em outubro de 2021, em meio ao Dia Mundial da Alimentação, a Bayer investiu em parcerias com influenciadores – incluindo nutricionistas e culinaristas – em vídeos de receitas. Neste, um profissional da Bayer fala sobre desperdício de alimentos, no campo e em casa, melhoramento genético de frutas e legumes (ela usa o tomate e a melancia exemplificado nas receitas), e tecnologia aplicada à agricultura.
Procurada pelo Joio, a Bayer respondeu em nota que “é uma empresa líder em soluções para a agricultura e a saúde que tem compromisso com a transparência e o diálogo. A iniciativa em parceria com o projeto Academia da Nutrição está alinhada a essa premissa e busca fomentar a discussão de temas relevantes, como segurança alimentar e a ciência na produção de alimentos, sempre com base em evidências científicas. O apoio da Bayer à iniciativa é transparente e explicitado em quaisquer conteúdos em que isso se faça necessário. Seguimos acreditando que ciência e tecnologia são ferramentas essenciais para que a demanda global por alimentos seja atendida, face aos desafios enfrentados pela agricultura, sobretudo em um país de clima tropical com forte pressão de pragas e doenças como o Brasil”.
Se você acompanha as discussões que levantamos aqui no Joio, sabe que o campo de alimentação e nutrição é um terreno fértil para que interesses privados se sobreponham aos interesses coletivos. Em geral, isso ocorre de forma menos direta, apoiando-se em uma certa elasticidade moral entre indivíduos, corporações e organizações – algo que observamos com frequência em outras áreas da saúde também.
Como o nome sugere, o site Academia da Nutrição se propõe a colaborar na formação continuada dos nutricionistas. Aos profissionais e estudantes, são oferecidos vídeos, e-books, cartilhas e outros materiais gratuitamente, quase sempre com o patrocínio de algum fabricante de alimentos ou suplementos. É um dos braços da Equilibrium Latam, uma empresa de “marketing de saúde” que se especializou em “conectar marcas, profissionais, stakeholders e consumidores por meio de experiências de conteúdo originais, educativos e exclusivos”.
Procuramos a Academia da Nutrição para tentar entender como garantir a autonomia e a credibilidade das informações em materiais que, na prática, ou promovem produtos ou buscam melhorar a imagem das empresas que os patrocinam, baseando-se inclusive em referências bibliográficas produzidas pelas mesmas.
“Em nossa plataforma, buscamos estabelecer uma comunicação com nosso público (de nutricionistas para nutricionistas), de forma gratuita, sempre respaldados pela ciência e valorizando a transparência no nosso relacionamento com essa comunidade. Nesse contexto, convidamos especialistas, em diferentes áreas, para que possam fornecer ao nosso público informações confiáveis, com valor científico e equânimes”, informou a empresa em nota.