TRÊS POR QUATRO

Pesquisador defende que Estado tenha política pública 'para incentivar sem cercear' o Carnaval

Para pesquisador Guilherme Varella, intervenção na cultura serve para fortalecer a liberdade da folia, não para cercear

Ouça o áudio:

Para Guilherme Varella, "excessividade publicitária ofusca, interfere e prejudica o desfrutar da festa” - Divulgação PMSP
O carnaval de rua é a radicalização da vida no espaço público por meio da cultura

“O carnaval de rua é a radicalização da vida no espaço público por meio da cultura”, afirmou Guilherme Varella ao podcast Três Por Quatro, do Brasil de Fato. De acordo com o professor da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do direito à cultura, o carnaval é um direito e uma liberdade, e, por isso, o Estado deve pensar uma política para ‘anormalidade’ e não para habitualidade.

Uma das maiores festas populares existentes, o carnaval brasileiro é um dos principais retratos do país para o mundo, e neste ano, a cidade de São Paulo completa dez anos da criação e regulamentação da lei que garante e assegura os blocos de rua. 

No ano de 2013, durante o mandato de Fernando Haddad (PT) em São Paulo, um movimento gerado através da união dos próprios blocos carnavalescos, levou à câmara dos deputados uma reivindicação intitulada como “Manifesto Carnavalista”, que além de expor a importância sociocultural das comemorações por toda a extensão do território nacional, também trazia à tona a forma com que os cortejos de rua tinham potencial de fomentar e destacar a cultura local e nacional, assim como aquecer a economia, mas precisavam de regulamentação, recursos e a elaboração de políticas públicas que viabilizassem e incentivassem as celebrações.

“O carnaval é uma manifestação cultural brasileira muito importante, e ele é um direito porque ele está no hall dos direitos culturais que são protegidos constitucionalmente. Então antes de falar de carnaval, a gente tem que dar um passinho atrás e falar de cultura. A cultura também tem que ser vista como um direito, o exercício da nossa vida cultural faz parte do nosso exercício de cidadania, é a nossa cidadania cultural”, declara Guilherme.

O especialista explica que, assim como em todos os âmbitos da sociedade, cabe ao poder público criar e sancionar leis e diretrizes que certifiquem o bem-estar da população nacional, e no carnaval não poderia ser diferente. “A garantia e a proteção às festividades carnavalescas, nada mais é do que a proteção e manutenção da liberdade no aspecto mais amplo da palavra”, aponta.

Segundo o especialista, o carnaval também é um conjunto de linguagens artísticas cujo exercício faz parte da proteção constitucional. “Ele  (carnaval) é uma liberdade! Isso também é muito importante de falar porque quando a gente vai pular o carnaval e brincar, na verdade a gente está exercendo a nossa liberdade de expressão artística e cultural, que é garantida como direito fundamental no Artigo 5º inciso 9º.”

De modo a exemplificar como o carnaval atua de maneira latente no aspecto social da cidade, o comentarista do podcast Três por Quatro e ex-presidente do PT, José Genoino, aponta para o poder de ressocialização do Carnaval: “E ele (Joel Rufino dos Santos), chegou no treinamento e tinha uma ex-presa lá na Rosas de Ouro, aí ela gritou, isso em 1973, e gritou bem alto, ’meu terrorista, o que está fazendo aqui?’. É só para mostrar como o carnaval liberta, você tira a censura [...] aquilo era uma espécie de área livre, e o carnaval tem essa dimensão de liberdade.”

Na obra Direito à Folia, publicado pelo Doutor Guilherme Varella, o autor explora e destaca de forma antropológica a importância de um movimento que valoriza a voz popular e todas as pluralidades presentes em nossa sociedade. 

“(Émile) Durkheim tem um termo quando estuda as festas.  Ele coloca as festas e a religião dentro do mesmo lugar. Assim todo mundo precisa transcender, e é essa transcendência coletiva que permite a coesão social. Você só consegue ter ordenação social, se você transcende coletivamente. Então, qual é o desafio? Você não regular o objeto cultural. Você não vai dizer o que o bloco tem que fazer. [...] A intervenção do estado na cultura serve para tornar livre uma política pública de carnaval, para fortalecer a liberdade do carnaval e não para cercear”, explica Varella.

Promover, incentivar, mas sem cercear 

A ideia de criar uma lei que fiscalize e viabilize os blocos de rua no carnaval de São Paulo, tinha como uma das suas prioridades, melhorar a experiência da data festiva, não só para o folião, como também para os blocos de rua. 

Mesmo assim, apesar das iniciativas implementadas pelo governo, diversos aspectos ainda são carentes de atenção, principalmente no que diz respeito às decisões privativas e não libertárias que foram impostas no decorrer dos anos.

Guilherme Varella relata que em São Paulo, especificamente, os planos iam além de garantir um carnaval democrático e seguro para todos, mas também de desvencilhar a capital paulistana de uma imagem acinzentada e mórbida, gerada principalmente por gestões públicas conservadoras que atribuíam tal visual à capital.

À isso, Genoíno adiciona: “O carnaval é uma negação da cidade triste, da cidade cemitério, porque ela dá vida ao espaço público. Os blocos dão vida ao espaço público, que é uma praça, é um viaduto, é uma esquina, é uma avenida, é uma Alameda da vida. Aquilo que é o normal no sistema de organização da cidade, passa a ser anormal no carnaval, e é interessante observar como isso aconteceu aqui em São Paulo”.
Varella faz um alerta para o recrudescimento do modelo atual, e alerta que as políticas de Carnaval da cidade são deterioradas à medida que os blocos deixam de ser ouvidos. Segundo ele, “o que era para ser uma festa totalmente dedicada ao povo, hoje já tem um visual e uma apresentação muito mais voltada à esfera comercial e elitista. Principalmente com a concentração dos principais blocos em regiões centrais e longe da população mais carente e periférica da capital. Além da excessividade publicitária que ofusca, interfere e prejudica o desfrutar da festa”.

“Então como esse investimento que elas (empresas privadas) colocam na cidade, elas tingem a cidade de uma cor. Você vai para um carnaval, você vê a cidade inteira azul, você já sabe que cerveja está patrocinando, você vai para outro carnaval, você vai ver a cidade inteira vermelha, você sabe qual cerveja já tá na outra [...] Não só em São Paulo, mas no Brasil todo tem acontecido um processo de ambevização do carnaval de rua”, lamenta Varella. 

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país.

Edição: Rodrigo Durão Coelho