Após meses de rumores de crise entre o comando militar da Ucrânia e o presidente Volodymyr Zelensky, o líder ucraniano finalmente anunciou a troca na liderança das Forças Armadas do país, demitindo Valery Zaluzhny e colocando Alexander Syrsky em seu lugar, que até então vinha atuando como comandante do grupo de tropas do país na frente oriental.
A troca de comando acontece após meses de rumores sobre uma crise entre Zelensky e Zaluzhny. O aumento das divergências entre os dois representou a principal crise institucional da Ucrânia desde o começo da guerra no país iniciada pela Rússia em fevereiro de 2022.
A tensão entre Zelensky e Zaluzhny se arrastava desde novembro do ano passado em meio ao fracasso da contraofensiva ucraniana contra a Rússia. Na ocasião, Zaluzhny afirmou que a situação na linha de frente da guerra estava em um impasse, o que posteriormente foi negado pelo presidente ucraniano.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Ivan Mezyukho explicou que as declarações públicas de Zaluzhny sobre a contraofensiva ucraniana motivaram a crise entre os líderes.
“A situação é que Zelensky buscou culpar Zaluzhny pelo fracasso da contraofensiva, e Zaluzhny, por sua vez, de certa forma, através da mídia ocidental, buscou acusar Zelensky pelo fracasso. Em particular, Zaluzhny afirma que o país não conseguiu mobilizar suficientemente os cidadãos para lutar contra a Rússia. E Zelensky a princípio não estava de acordo com o estilo do comando de Zaluzhny”, afirma o analista.
De acordo com fontes militares ucranianas, citadas pelo jornal Financial Times, Zaluzhny defendeu a mobilização de 500 mil pessoas. Zelensky teria rejeitado tal iniciativa por receio de minar a economia ucraniana e levar milhares de pessoas a fugir para o estrangeiro. Desta forma, Zaluzhny estava “cético” em relação a algumas das ordens e declarações de Zelensky porque as considerava “irrealistas”.
Além disso, outro fator que teve peso na crise do comando militar ucraniano foi a instauração de uma atmosfera de concorrência de popularidade. De acordo com um estudo feito pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, 96% dos cidadãos ucranianos manifestaram confiança nas Forças Armadas da Ucrânia e 88% responderam que confiavam diretamente em Zaluzhny. Ao mesmo tempo, segundo a pesquisa, a confiança no presidente caiu para 62% no final de 2023.
Segundo o cientista político, Ivan Mezyukh, Zelensky se viu em uma situação difícil, em que ele perdeu a capacidade de usufruir de um jogo 'multilateral' de apoio do Ocidente, tendo ótimos contatos com a União Europeia, Grã-Bretanha e os EUA. "Hoje esses contatos se estreitaram mais em torno dos EUA", afirma.
“Zaluzhny tinha os seus próprios contatos com a União Europeia, com o Reino Unido, os EUA, ou seja, com todos os curadores ocidentais da Ucrânia. Assim que começou a Operação Militar Especial [termo oficial do Kremlin para a guerra da Ucrânia] em fevereiro de 2022, [Zaluzhny] passou aparecer ainda mais na mídia de massa, não só da Ucrânia, mas no Ocidente também. Zaluzhny passou a fazer declarações políticas, que não devem ser feitas por uma figura militar. E o presidente Zelensky lida muito mal com qualquer figura política ou militar que seja popular na Ucrânia, e qualquer pessoa assim, se ele puder, vai buscar derrubar”, argumenta o analista.
Durante o anúncio na última quinta-feira (8), Zelensky não explicitou diretamente o motivo da demissão de Zaluzhny, mas mencionou o fracasso da contraofensiva ucraniana no ano passado, acrescentando que um “sentimento de estagnação” nas direções sul afetaram o humor da sociedade na Ucrânia. “Os ucranianos começaram a falar menos sobre vitória. Mas o espírito ucraniano não perdeu a fé na vitória. A Ucrânia mantém a sua oportunidade histórica. É nossa responsabilidade implementá-lo”, disse o presidente.
Zelensky acrescentou que 2024 deverá ser o ano decisivo na guerra com a Rússia e que, para atingir os objetivos da Ucrânia, é necessária uma “reinicialização dos generais” e uma abordagem diferente das operações de combate. Para isso, segundo o presidente, em todos os níveis de liderança das Forças Armadas da Ucrânia devem haver comandantes que “conheçam e sintam” a frente de batalha, fazendo referência a Alexander Syrsky.
Ao mesmo tempo, troca de comando militar foi tomada em um momento em que a Rússia atualmente detém a iniciativa no campo de batalha. Isso em um contexto em que as Forças Armadas da Ucrânia enfrentam uma grave escassez de munições e pessoal.
Assim, análises militares indicam que, mudanças na liderança das Forças Armadas da Ucrânia nesta situação poderiam, por exemplo, “fortalecer o ceticismo” dos parlamentares norte-americanos em relação à prestação de nova assistência militar à Ucrânia. É o que aponta um artigo da revista Politico, destacando que “agora pode não ser o melhor momento para fazer alterações”.
Funcionários e analistas ocidentais expressaram a opinião de que a nomeação de Syrsky poderia afetar negativamente o curso da guerra, inclusive devido à proximidade do comandante com o presidente. Os interlocutores da publicação também duvidam da capacidade do novo comandante em resistir à interferência da liderança política do país nas questões militares.
O cientista político Ivan Lizan disse ao jornal russo Vzlgyad que a nomeação de Syrsky para o cargo de comandante das Forças Armadas da Ucrânia causou uma onda de críticas na mídia ocidental.
“Os líderes ocidentais estão bem conscientes de que o conflito atual não favorece a Ucrânia. Há muito tempo que as Forças Armadas da Ucrânia não alcançam vitórias brilhantes e significativas e, portanto, os Estados Unidos estão tentando dissociar-se gradualmente do gabinete de Zelensky, pelo menos em termos de informação. Acho que é precisamente isso que explica os comentários frios da mídia estadunidense sobre a nomeação de Syrsky para o cargo de comandante-em-chefe”, disse o cientista político.
“As publicações ocidentais discutem ativamente a figura de Zaluzhny. Chamam ele de herói e um dos melhores generais do nosso tempo. Em relação ao seu sucessor, falam de forma mais contida ou crítica, ao mesmo tempo que observam que a sua ascensão a uma posição de liderança é uma iniciativa do presidente da Ucrânia. Assim, Washington tenta exonerar-se da responsabilidade pelos futuros fracassos das Forças Armadas da Ucrânia”, completa o analista.
Edição: Rodrigo Durão Coelho