Limitar a celebração do Carnaval é violação do direito à cidade, que engloba um conjunto de garantias constitucionais que vão desde à liberdade de ir e vir até o direito de associação livre, segundo especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato.
No estado de São Paulo, e principalmente na capital, o cerceamento vem aparecendo nos últimos anos com o deslocamento da festividade do espaço público para espaços privados, atendendo a interesses comerciais particulares; a presença ostensiva de forças de segurança do Estado em meio e ao redor de blocos; a mobilização de policiais militares à paisana, ainda que armados, entre os foliões; a determinação expressa de horários e locais para a realização da festividade; e a falta de infraestrutura para a celebração.
O Carnaval escancara a importância do espaço público como um local de expressão coletiva e participação cidadã, o que está alinhado com o direito à cidade. É por meio do Carnaval que as pessoas reivindicam o direito não apenas de viver na cidade, mas de moldar ativamente a experiência urbana de maneiras diversas e dinâmicas.
Ermínia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora nacional da Rede BrCidades, afirma que em um “momento que os espaços públicos são cada vez mais privatizados”, o Carnaval traz a “reafirmação do coletivo, da cooperação, da alegria e da arte”.
“Numa condição de tanta desigualdade, de um verdadeiro apartheid social, a gente vê explosões coletivas em meio ao neoliberalismo, que traz a exacerbação da individualidade”, afirma a professora titular aposentada da universidade pública.
Na mesma linha, Rodrigo Iacovini, diretor executivo do Instituto Pólis e integrante do Conselho Nacional das Cidades e Conselho Municipal de Política Urbana, explica que o direito à cidade parte do pressuposto que todos constroem a cidade diariamente ao utilizar o transporte público, fazer uso dos espaços em comum, consumir e comercializar nesses espaços, usar serviços que estão dispostos nas ruas, etc.
“Não existe cidade sem pessoas. E um dos momentos mais legais que a gente constrói a cidade é justamente quando a gente aproveita o Carnaval. A gente está construindo uma dimensão cultural e afetiva da cidade. Então, faz parte do direito da cidade o brincar, e o Carnaval faz parte disso”, afirma.
“Isso faz com que a gente tanto tenha laços afetivos e a sensação de responsabilidade com a cidade reforçados. Quando também melhora a coesão social, a gente melhora a confiança uns nos outros. A gente melhora o afeto que a gente sente pelas outras pessoas, e isso impacta positivamente na sociedade e na própria cidade.”
Iacovini afirma que o Carnaval destaca o direito ao lazer, mas é também o direito à mobilidade, por exemplo. É nesse sentido que surge a necessidade de o poder púbico prover a infraestrutura necessária para que esses direitos possam ser acessados, e com qualidade.
Neste ano, a prefeitura de Boa Esperança do Sul, no interior de São Paulo, cancelou o Carnaval e destinará o recurso que seria utilizado para a festividade para a climatização nas escolas públicas. A decisão foi tomada após uma briga entre foliões no município durante o pré-Carnaval. A partir deste exemplo a análise é que as prefeituras devem justamente destinar recursos para garantir a segurança dos cidadãos e não deixar de possibilitar a festividade, uma vez que o acesso à cultura, assim como à educação e à saúde, também é um direito constitucional.
“Quando a gente está falando em Carnaval, está falando de um conjunto enorme de direitos que a estamos transformando em realidade. Um conjunto que está saindo ali das páginas frias da nossa Constituição Federal para uma folia na rua”, afirma Iacovini.
“A atuação do poder público municipal aqui em São Paulo tem ido justamente na contramão da efetivação de direitos levantados pelo Carnaval. Eu estava falando como o Carnaval é esse emaranhado de direitos: do direito ao lazer, à mobilidade, à ocupação do espaço, à geração de renda. Mas a atuação da prefeitura infelizmente vem violando esses direitos ao tentar restringir os horários da manifestação cultural e ao não providenciar a infraestrutura necessária”, analisa o diretor do Instituto Pólis.
“A Prefeitura, na verdade, está descumprindo o dever constitucional de fomentar o direito à cultura, o direito ao lazer e, inclusive, está descumprindo também o mandamento constitucional de preservar o direito de as pessoas terem o direito de ir e vir, da liberdade de associação, o direito de ocupar a cidade, o direito à cidade dessa população.”
A análise vai na mesma linha de Lira Alli, liderança do Arrastão dos Blocos, movimento que junta cerca de 100 blocos no município de São Paulo. Ela afirma que o Carnaval é uma das principais expressões culturais brasileiras, apesar de não ter nascido no Brasil – um estudo da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) indica o surgimento antes mesmo do Cristianismo como celebração para o início da primavera. “Dessa maneira é um direito à cultura garantido pela Constituição. Nós temos o direito de brincar o Carnaval de maneira livre”, afirma.
“A gente tem vivido um processo de criação de circuitos que são circuitos fechados e uma política que prioriza megaeventos, que tiram a potência dos blocos pequenos e comunitários. Esses blocos pequenos não têm garantidas as mínimas condições de estrutura, de financiamento, de apoio, de nada para realizar suas atividades”, afirma Alli.
Em Recife, o bloco Troça Empatando a Tua Vista, que surgiu em 2014, leva para as ruas e os foliões o debate da verticalização dos municípios e a relação direita com o direito à cidade. Ana Cláudia Oliveira, uma das integrantes do bloco, explica que o grupo surgiu a partir do Ocupa Estelita, que constrói a luta pelo direito à cidade na região central da capital pernambucana.
Oliveira afirma que quando os gestores públicos dificultam a realização do Carnaval e rua, priorizando, por exemplo, mais espaço para festas privadas ou não oferecendo infraestrutura, há uma quebra do direito à cidade.
É nesse sentido que o bloco de Recife “é um ato político-folião”, como classificam os organizadores. “A proposta é discutir a especulação imobiliária, o direito à cidade, a ausência de planejamento urbano, as relações escusas que existem entre o poder público e o setor privado, que acaba por fazer com que espaços públicos como o Cais José Estelita passem para iniciativa privada de forma até ilegal”, afirma Oliveira.
“Embora algumas pessoas ainda tenham a ideia de que o Carnaval se relaciona apenas com folia, também tem o viés político. A existência de uma festa popular que congrega tantas pessoas diferentes fazendo uso do espaço público de forma coletiva é, em si, um ato político.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho