A França resiste tenazmente ao acordo Mercosul/União Europeia, como é público e notório. O próprio presidente Macron tem reiterado que a França se opõe a esse acordo. Devemos concluir que ele está morto e enterrado? Talvez não. Vou explicar por que ainda estou inquieto.
Há forças poderosas, dos dois lados do Atlântico, que insistem em concluir a negociação. Do lado europeu, principalmente a Alemanha e a Comissão Europeia. Do nosso lado, a Argentina e, ao que parece, o Brasil. Pode soar estranho que o governo brasileiro esteja no mesmo barco que a Argentina de Milei. Infelizmente, é o que parece estar acontecendo. Os negociadores brasileiros e argentinos dão sinais de que continuam determinados a fechar um acordo intrinsicamente desfavorável a nós. É possível, entretanto, que a cúpula do governo Lula venha se tornando mais crítica dessa negociação.
Desde o ano passado, argumentei que havia motivos abundantes para abandoná-la. Não vou repetir todos os argumentos. Remeto ao artigo mais recentes, que publiquei em dezembro. Lembro apenas que o acordo abre os mercados do Mercosul à livre concorrência, sem tarifas de importação, com as firmas industriais e demais empresas da União Europeia. Os principais prejudicados são a indústria e a agricultura familiar brasileiras.
E é exatamente por isso que a Alemanha continua lutando pelo acordo. As suas indústrias, as principais beneficiárias, estão ávidas para ganhar acesso pleno a nossos mercados. Estão apreensivas com o posicionamento da França, que teme a concorrência do setor agroexportador do Mercosul. Note-se que o acesso adicional que nossos produtores agrícolas ganham com o acordo é pequeno, mas tem os seus feitos concentrados em alguns países, notadamente na França.
Como se explica que o governo brasileiro persista na busca do acordo? Pelo que pude depreender, as razões para a insistência são essencialmente do campo da política internacional. Há três argumentos desse tipo.
Em primeiro lugar, o governo parece convencido, por enquanto, de que é vantajoso fechar um acordo de grande magnitude com a Europa. Prepara-se talvez para proclamar que uma negociação que vinha se arrastando há mais de 20 anos foi concluída agora por causa da capacidade negociadora do governo. Os aspectos econômicos ficariam em segundo plano.
Do ponto de vista estratégico, ademais, faria sentido aproximar-se da Europa para reduzir a dependência em relação à China. O mercado chinês já é há alguns anos o principal destino das nossas exportações, em parte porque lá não enfrentamos barreiras expressivas à entrada de nossos produtos primários. O mercado europeu ajudaria supostamente a diversificar as nossas exportações.
Em terceiro lugar, levanta-se o temor de que a Argentina de Milei, frustrada com o eventual não fechamento de um acordo de tipo liberal, resolveria sair do Mercosul para negociar individualmente com a União Europeia. O acordo com a Europa seria assim condição sine qua non para a sobrevivência do Mercosul.
Os três argumentos são frágeis, no meu entender. Se não, vejamos. Que sentido faz, primeiramente, comemorar a conclusão de um acordo emperrado há vinte anos ou mais? Não estava emperrado por acaso. A razão é que os europeus sempre ofereceram pouco e nós, até agora, não víamos vantagem em aceitar um acordo desequilibrado. Não se requer capacidade negociadora especial para fechar um acordo nessas bases. Qualquer um conclui uma negociação entregando, no essencial, as demandas da outra parte.
Não fica claro, em segundo lugar, como um acordo que nos fornece pouco acesso adicional aos mercados europeus poderia servir de contraponto à dependência em relação à China. Para isso, seria preciso que o acordo trouxesse possiblidades de aumentar as exportações do Mercosul. Ora, por causa das preocupações protecionistas na Europa, é exatamente isso que o acordo não nos proporciona.
Em terceiro lugar, a saída da Argentina do Mercosul é pouco plausível. São fortes os laços econômicos criados dentro do bloco, especialmente com o Brasil. Não é casual que Milei tenha abandonado as suas bravatas de campanha em relação ao Mercosul. E mesmo que Milei tentasse, o Congresso provavelmente não aprovaria a saída.
Os burocratas e diplomatas neoliberais que ficam acenando com esses argumentos geopolíticos deveriam sossegar o facho. As concessões parciais que obtiveram dos europeus em 2023 não alteram a essência de um acordo de tipo neocolonial. E, no entanto, leitor, a verdade é que essa mentalidade é algo que não desaparece de uma hora para a outra, nem do lado dos colonizadores, nem do lado dos colonizados.
Justamente por ser neocolonial, o acordo Mercosul/União Europeia é anacrônico, está fora de sintonia com as tendências contemporâneas. É um estilo de acordo superado, cujo formato básico remonta ao final do século passado, tempo em que se pensava que acordos econômicos de ampla abrangência deveriam nortear as relações internacionais dos países. Os EUA, por exemplo, propuseram a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, e diante do insucesso dessa iniciativa, fecharam acordos bilaterais no estilo Alca com diversos países latino-americanos. Fecharam, além disso, a Parceria Transpacífica com vários países da Ásia e das Américas. Porém, essa Parceria ficou esvaziada depois que os EUA dela se retiraram. O que a União Europeia está tentando é emplacar tardiamente um acordo desse naipe, aproveitando-se das debilidades do Mercosul. Que o governo Milei se submeta a isso não surpreende em nada. Mas o governo Lula?
Esse tipo de acordo vai contra as tendências do momento em outro aspecto central: provoca desindustrialização em países em desenvolvimento que a eles se dobram. Ora, todos os países que se desindustrializaram em décadas recentes, a começar pelos EUA e os próprios europeus, buscam agora ativamente a reindustrialização. A China, todos percebem, acabou virando “a fábrica do mundo” e, em grande parte por isso, tornou-se a potência mais dinâmica.
O Brasil que, desde os anos 1980, também passou por um processo de desindustrialização deveria seguir o exemplo desses países. A indústria de transformação é, de fato, um setor estratégico – não só para o desenvolvimento econômico, como também, ponto menos notado, para a segurança nacional.
Segurança nacional depende de existir no território nacional um setor industrial capaz de produzir armamentos modernos. E, do ponto de vista do desenvolvimento, a indústria é um setor capaz de gerar empregos de qualidade e progresso tecnológico. Países que renunciam à indústria acabam subdesenvolvidos e desarmados.
Muito positivo, portanto, que o governo Lula, com apoio do BNDES, tenha lançado recentemente uma nova política industrial. Trata-se de uma iniciativa meritória que rompe com décadas de omissão nesse campo. Porém de que adianta apoiar a indústria, de um lado, e submetê-la, de outro, a uma concorrência desigual com empresas estrangeiras?
Não se deve perder de vista, além disso, que o acordo com a União Europeia é um de vários do mesmo estilo negociados no período Paulo Guedes. O ministro de Bolsonaro os deixou prontos ou quase prontos. Um deles, o acordo Mercosul/Singapura, foi assinado em dezembro. Há outros na prateleira – com o Canadá, com a Associação Europeia de Livre Comércio e a com Coreia do Sul. Se não houver uma mudança de rumos, o Brasil estará em breve enredado em uma teia de acordos neoliberais.
Do seu túmulo político, Paulo Guedes comemorará.
* As opiniões contidas neste artigo não representam necessariamente as do Brasil de Fato
**Paulo Nogueira Batista Jr é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, foi publicada em 2021.
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Edição: Rodrigo Durão Coelho