Em um fim de tarde quente do verão de 2012, o agricultor Roberto* desistiu de pegar a carona que havia combinado em um caminhão de madeireiros. Teve uma intuição, disse. Por não ter pego a carona, safou-se do que classifica como uma emboscada. Na época, Roberto liderava cerca de 30 famílias que buscavam se estabelecer em uma área concedida pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para a formação do Projeto de Assentamento Florestal (PAF) no Curuquetê, um vale localizado entre as bordas do município de Porto Velho (RO) e Lábrea (AM), que nessa época ainda era tomado por florestas conservadas.
Após se safar da emboscada, Roberto soube que perto das oito da noite, em um trecho da estrada de terra que liga o Curuquetê ao distrito urbano mais próximo, o caminhão onde estaria foi cercado por duas caminhonetes. Sem encontrar o alvo na carona, conta Roberto, os pistoleiros que desceram das camionetes deixaram o caminhão seguir viagem.
Depois da emboscada, o agricultor precisou afastar de sua militância junto às das famílias que tentavam se estabelecer no Projeto de Assentamento Florestal. Passou dois meses sob escolta policial e chegou a mudar de estado recebendo suporte do programa federal que à época tentava proteger defensores de direitos humanos ou ambientalistas ameaçados.
O caso de Roberto é um dentre outros 113 casos de ameaças de morte, tortura, intimidação ou assassinatos em conflitos rurais registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) somente na região do entorno do município de Porto Velho nos últimos 12 anos.
Ao menos desde 2012, Porto Velho aparece nas primeiras posições de um ranking triplo: altos índices de conflitos com ameaças e mortes, altos índices de desmatamento e de queimadas. A capital de Rondônia, que tem uma extensão territorial 22 vezes maior que a cidade de São Paulo, combina a perda de floresta com um grande número de disputas marcadas por violência em assentamentos, terras indígenas e propriedades rurais, aponta o levantamento feito pelo Mapa dos Conflitos, uma parceria da Agência Pública com a CPT.
No caso de Roberto, o conflito que gerou a tentativa de emboscada foi motivado pela disputa sobre as terras, mas sobretudo sobre as madeiras, dos entornos do Curuquetê. Um ano antes de Roberto fugir da região, o antigo líder do assentamento, que o antecedeu, Adelino Ramos, foi assassinado enquanto vendia hortaliças no distrito urbano mais próximo, a vila de Extrema.
Na época, o assassinato de Dinho atraiu atenção para a disputa travada na área entre as famílias sem-terra que buscavam o título do assentamento e grupos de madeireiros que dominavam a região através da extração irregular de madeira. O governo teria criado então o assentamento logo após a morte de Dinho, segundo fontes ouvidas pela reportagem, como uma estratégia de tentar pacificar a área e frear o avanço da cobiça sobre a floresta ainda muito conservada.
Nos anos seguintes, contudo, o assentamento seria inviabilizado pela pressão dos madeireiros. “As famílias não tinham como enfrentar o pessoal armado, da madeira, que não abria mão da terra. Era complicado, tinha gente envolvida com madeira ilegal se infiltrando no meio também, além das ameaças”, relata Roberto*. Em 2013, o PAF foi cancelado pelo próprio INCRA, após a maior parte das famílias originais do projeto fugirem da área. De lá para cá, o Curuquetê mudou: exploração irregular de madeira e focos de desmatamento alteraram a paisagem. Somente em 2023 ao menos seis operações de fiscalização ambiental do IBAMA foram feitas para coibir o desmatamento crescente na região. Entre 2016 e 2022, Lábrea e Porto Velho, que circundam o vale, apareceram todos os anos na lista dos quatro municípios com mais alertas para desmatamento contabilizados pelo Deter (INPE).
O caso que junta trabalhadores rurais sem-terra, exploração madeireira e disputa pela posse de terras, em áreas onde se verifica aumento nos índices de desmatamento e de assassinatos, sintetiza um conjunto de desdobramentos comuns em outros conflitos da região. Na área, grande parte das disputas agrárias vem acompanhada de crimes ambientais e episódios de violência rural.
“Uma ilegalidade atrai a outra. A região do Curuquetê por exemplo, já é uma região de ocupação ilegal, em que se ganha dinheiro com a madeira ilegal. Quem trabalha com madeira nesse caso grilou a terra”, aponta uma agente do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) que monitora a região há mais de uma década. “Mas isso é algo que não é singularidade do Curuquetê. É o histórico de Rondônia – aqui o estado se formou assim”, completa.
Como maior cidade em extensão territorial do estado, ocupando cerca de 15% de todo o território de Rondônia, Porto Velho tem seu território coalhado por casos de conflitos que repetem o padrão característico do estado. “É um modelo que vincula desmatamento, grilagem e invasão de áreas protegidas. E isso deságua sempre na violência física, na ameaça, no assassinato, na perseguição”, aponta Afonso Chagas, professor do departamento de direito da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que pesquisa e acompanha conflitos fundiários no estado há mais de 20 anos.
“A violência é inerente aos processos, tanto de colonização como de grilagem aqui”, diz. Para Afonso, ameaças, perseguições e até assassinatos não são efeitos colaterais ou consequências de conflitos muito acirrados, pelo contrário, consistem no próprio método de ocupação da terra característico do estado. Segundo o pesquisador, a violência é validada e considerada “aceitável” na medida em que impera a ideia de que as áreas de floresta seriam “espaços vazios”, desocupados. “A coisa se agrava porque se então aqui não era terra de ninguém, é terra que tem que ser o mais rápido possível destinada para esse modelo de colonização. Isso nutriu uma espécie de mentalidade de viabilizar esse modelo que despreza o ambiente, despreza a área protegida, despreza populações com bases tradicionais, porque acham que esses povos não têm direito e não existem”.
O caso do vale do Curuquetê tem mais uma camada que se repete também em outros casos da região: as áreas de floresta conservada eram morada original de indígenas Kaxarari e povos isolados. As terras exploradas por madeireiros, depois reivindicadas pelas famílias sem-terra e hoje ocupadas por incipientes fazendas de criação de gado, eram ocupadas por indígenas que foram empurrados e precisaram deslocar-se em direção ao Acre.
A ocupação irregular das terras do Curuquetê repetiu o processo que aconteceu na Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro, aponta o agente do ICMBio. “No caso da Bom Futuro, as pessoas viram que compensa invadir áreas, porque o governo vai e regulariza depois”, diz. O agente aponta que quando começou a crescer a invasão do vale, reconhecia muitos grileiros de terra que tinham se apropriado de áreas na Flona localizada mais ao sul do estado. “O que percebemos é um movimento que se repete – começa com a invasão, depois as pessoas fazem dinheiro com a madeira, investem em gado e se estabelecem nos territórios”.
“Aqui é o faroeste, a tempestade perfeita”
Para o procurador do Ministério Público Federal (MPF) que atua com questões fundiárias no estado, Raphael Bevilaqua, “o caos fundiário é um negócio” em Rondônia. Segundo ele, a bagunça nos títulos e registros de terra rende muito dinheiro. “Você não precisa nem ter um título [de terra], é só fazer um georreferenciamento e desmatar, que mesmo ilegal, aquele terreno já vale três vezes mais”, diz.
Acompanhando casos de grilagem na região há anos, o procurador ressalta que a “limpeza da terra”, que faz crescer o seu valor de venda, não significa só derrubar a floresta. O mesmo ocorre com a limpeza “das pessoas” que habitam aquela terra. “Se você almeja grilar uma terra que tem ocupação de sem-terra, isso vale X. Se você expulsar, limpar a terra de gente, vai valer três vezes mais”. Para ele, o desmatamento e a violência no campo são duas faces que não se separam, ocorrem sempre juntas.
“Aqui é o faroeste, a tempestade perfeita”, diz ao citar diversos casos em que grileiros lucraram com terras invadidas com uso da violência. Nos últimos oito anos, Raphael conta que viu a violência rural aumentar na região. Ele atribui esse crescimento às mudanças nas políticas fundiárias que ocorreram principalmente após 2015.
Segundo o procurador, a grande migração de pessoas que foram para Rondônia desde os estímulos de colonização produzidos pela Ditadura Militar gerou um problema fundiário, com dezenas de milhares sem acesso à terra. Em muitos casos, essas famílias começaram a ocupar áreas que foram destinadas a fazendeiros durante o período militar, mas que estavam abandonadas por razões diversas – seja por falta de interesse de produção, falta de logística ou suporte.
“A pressão social causada por esse contingente populacional é forte. Mas antes, existia um plano de que previa assentamentos. Sempre pagando indenizações aos antigos donos, mas assentando”. Porém, avalia o procurador, após a crise das commodities, o governo ficou sem dinheiro para pagar as indenizações aos antigos donos. “Acabou a indenização, tudo piorou: não teve mais nenhuma desapropriação e os conflitos cresceram muito”
Nos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, sem solução para destinação de terras, as disputas acirraram-se e o número de conflitos cresceu. “Teve muita morte. De várias formas. Foram anos de pancada, pancada, pancada e muitas expulsões à força feitas pela polícia”.
Exportando o modelo
Observando a incidência de conflitos na região junto com dados de desmatamento no passado recente, dos últimos dois anos, uma perspectiva chama atenção do pesquisador Afonso: o deslocamento dos conflitos que ocorriam em Porto Velho para áreas do Sul do Amazonas e do Acre.
Na análise do pesquisador, o que se verifica recentemente é a exportação do modelo de ocupação que se consolidou e marcou Porto Velho para novas áreas de interesse do agronegócio. “Se olharmos dentro desse arco do desmatamento e afunilarmos mais o foco, a gente vai perceber que esse leste do Acre, esse norte de Rondônia e o sul do Amazonas, é o lugar onde cresceu mais o número do desmatamento e mais o número de invasões de áreas protegidas”.
Essas regiões coincidem exatamente com onde foram implementadas as chamadas ‘zonas de desenvolvimento sustentável’ – áreas estabelecidas pelos governos estaduais como de interesse para o desenvolvimento do agronegócio. “Então, esses enclaves e projetos de desenvolvimento são somente senhas para que essas fronteiras do agronegócio, principalmente baseado no desmatamento, na pastagem de boi e na exploração do monocultivo da soja, possam aumentar”. Para ele, esta é uma perspectiva que preocupa muito. “Porque a gente sabe, já por experiência, o alto preço disso em relação ao desmatamento, à violência física contra indígenas, povos e comunidades tradicionais, contra camponeses, trabalhadores rurais sem terra. Um preço alto demais.”
*Agricultor Roberto concedeu entrevista à reportagem mas terá identidade preservada por conta das ameaças sofridas