No seu sexto mandato de vereador em Porto Alegre (RS), Pedro Ruas militou no antigo MDB, passou para o PDT quando Leonel Brizola retornou do exílio e, desde 2014, integrou-se ao PSOL. Advogado trabalhista, sempre se interessou pelo drama dos trabalhadores. É também um adversário da onda de privatizações que remove do Estado os instrumentos para administrar o país, regular o papel do capital e proteger o trabalho.
Em conversa com o podcast De Fato, produzido pelo Brasil de Fato RS, ele aborda as consequências da entrega da CEEE por R$ 100 mil ao grupo Equatorial e como isso redundou no fracasso do enfrentamento dos temporais e inundações, cada vez frequentes na Capital e no Rio Grande do Sul. Leia a seguir os principais trechos da entrevista e acompanhe a íntegra no nosso canal do YouTube.
:: Ato público na Capital pede 'Reestatização da CEEE Equatorial, água e luz para todo cidadão!' ::
Brasil de Fato RS: O Rio Grande do Sul, especialmente Porto Alegre, viveu uma experiência tenebrosa com as tempestades de janeiro que escancararam as limitações da prefeitura e da privatizada CEEE Equatorial [Companhia Estadual de Energia Elétrica] para enfrentar a situação. Como vistes isso?
Pedro Ruas: Quando nós falamos em CEEE, gosto de fazer um registro importante: foi o [ex-governador gaúcho Leonel] Brizola quem estatizou a empresa privada de energia elétrica que havia e criou a CEEE. A empresa era a norte-americana Bond and Share, que oferecia um serviço de péssima qualidade e preços altíssimos. E quem cuidava da telefonia era a ITT [International Telephone and Telegraph, dos EUA] também péssima com preços altos.
Então, o Brizola encampa, estatiza ambas, depositando judicialmente um dólar para cada uma, deixando a discussão do preço para 100 anos depois. As duas passaram a ser do Estado, surgindo a CEEE e a CRT [Companhia Riograndense de Telecomunicações].
Falei muito com o Brizola sobre isso. Ele entendia que, se o Rio Grande do Sul tivesse energia elétrica de qualidade e telefonia com um preço bom, seria igual a São Paulo. Era a visão dele nos anos 1950/60.
É uma tristeza muito grande ver essa privatização absurda. A CEEE foi vendida por R$ 100 mil, uma loucura. É que nem a Carris em Porto Alegre, uma empresa de 1872, vendida a preço de banana. Nessas tempestades e enchentes, a gente acompanhou o sofrimento do nosso povo.
Visitaste muitas comunidades?
Muitas e vi o horror mesmo e, pior, ele continua. Essa tal de CEEE Equatorial, digo isso com todo o respeito, porque eu nem conheço seus dirigentes, com certeza eles não dão conta. A impressão que temos é que eles diminuíram muito o pessoal em relação à antiga CEEE. Não só diminuíram o número de pessoas como diminuíram sua qualificação.
E estão contratando basicamente terceirizados.
Então, o que acontece? Estamos com muitas comunidades sem água, sem luz ou sem os dois. O que as comunidades fazem? Vão protestar. Põem um cartaz 'Quero água, quero luz'. Aí, o Estado que não chega nunca lá, chega rapidamente através da Brigada Militar. Não chega nunca, mas com a BM chega rápido e dispersando. Não chega para ajudar, mas para dispersar. Em 10 minutos estão chegando.
É impressionante a rapidez da repressão no estado, particularmente na capital. É uma contradição. Não tem condições de chegar, alega não ter recursos, alega não saber onde acontece, alega isso e aquilo, mas quando é repressão é na hora.
E que não dá as condições básicas, que é ter luz, ter água...
Exatamente. E nem falamos em internet...
Internet o povo das comunidades já tem muito pouco.
Nem falamos da internet porque essa não chega mesmo. A periferia e as pessoas com menor poder aquisitivo, via de regra excluídas das melhores condições da sociedade, são as que mais sofrem, são as que estão sem água, sem luz, e são as que têm perto delas a Brigada.
Energia elétrica e água são bens tão essenciais que deveriam ser considerados direitos e não mercadorias. E o Estado deveria estar defendendo as pessoas em relação aos seus direitos e contra o setor privado, quando ele não atende os direitos.
:: Reestatizar a CEEE e fortalecer os serviços públicos é a solução ::
Como que fica a questão de até onde vai o direito do cliente em relação àquele bem quando só tem um fornecedor? O Ministério Público tem entrado com algumas ações pedindo reparação, mas não resolve o problema.
A ação da Brigada deveria ser em relação à empresa e não às pessoas. Assim, defenderia o Estado e os direitos dos cidadãos...
No chamado mundo ideal tem que ser assim. Quero usar um exemplo bem forte aqui: se privatizarem o ar, vocês imaginam as pessoas que não podem pagar o ar? Iriam protestar como? Asfixiadas?
Não estou discutindo ideologia, não estou discutindo socialismo ou capitalismo. Todo Estado quer o bem comum. A iniciativa privada quer o lucro. Talvez se ela quiser o bem comum até vá à falência... Agora, o Estado querer o lucro? Não tem como. Atender aos direitos é o papel do Estado. Então, por isso essa força toda do mercado para reduzir o Estado.
Dados da Equatorial apontam lucros estratosféricos.
Tínhamos há dezenas de anos a Vale do Rio Doce, uma empresa modelo. Antes da privatização não houve um único acidente. E agora quantos acidentes. Brumadinho é uma marca trágica. Claro, as medidas de segurança são menores porque são caras.
Em todas as áreas onde a iniciativa privada atua, ela vai visar o lucro. Vale para a saúde, vale para qualquer lugar. Em uma situação de UTI, num hospital privado, sem plano de saúde, gasta-se R$ 1,5 mil ou R$ 2 mil por dia. Quem pode pagar isso?
Onde a iniciativa privada assume o controle, temos um prejuízo para a sociedade. Não quer dizer que, em algumas áreas, não possa atuar. Na área das diversões, por exemplo. Ninguém imagina isso controlado pelo Estado.
Queria voltar à questão do modus operandi das privatizações no nosso país. Em janeiro, logo após o temporal, foi resgatada uma matéria que fizemos no Brasil de Fato RS em 2021, logo após a privatização da CEEE. Ouvimos técnicos da CEEE, a presidenta do sindicato do Senergisul, o sindicato dos eletricitários. Eles contaram que seriam demitidos quase mil técnicos, que estavam há muitos anos na empresa. Previram que, nos verões seguintes, Porto Alegre iria ficar na escuridão. Ou seja, tragédia anunciada que vimos acontecer. Como se leva a crer que o privado é melhor que é preciso privatizar?
Tem um estudo, importantíssimo, do [pensador italiano] Antônio Gramsci. Ele demonstra como uma multidão de dominados se deixa conduzir por poucos dominadores. É uma questão de ideologia. O dominado acredita que aquilo é o certo. Se não acreditar, o dominador está ralado. São milhões de dominados e poucos dominadores.
:: Debandada de técnicos na ex-CEEE pode provocar um verão de apagões ::
Através dos meios de comunicação convencionais, os governos ou setores vinculados aos governos, conseguem levar essa ideia de que o privado é melhor. Não conseguem fazer isso num momento como agora (da tempestade que mostrou a inépcia dos governos e empresas) porque as pessoas estão vendo. Tem um ditado francês que diz assim: "Quando se joga a realidade porta afora, ela volta arrombando a janela". Quando a realidade estoura, não há conversa, não há mídia que vá alterar aquilo ali.
Nós temos a situação caótica, por exemplo em Porto Alegre, onde existem pessoas que tem mais de 100 imóveis fechados. Não é alugado, não é vendido. É fechado, especulando-se para que subam os aluguéis. Organizam-se para fazer isso.
Lembro que fiz um projeto de lei anos atrás, onde me baseei em Buenos Aires - não foi em um país socialista - definindo que o segundo imóvel fechado ou o terceiro aumentaria em muito o IPTU. Perdi obviamente na Câmara de Vereadores. Eles têm muita força.
Há na Constituição Federal a obrigação de que a propriedade tenha função social que, no caso, é alugar ou vender. Temos hoje em Porto Alegre em situação de rua aproximadamente 5,7 mil pessoas. Vinte por cento são idosos. Essas pessoas, com base no Estatuto do Idoso, têm direito à moradia digna. E não tem moradia digna nenhuma.
No caso da falta de energia elétrica e da CEEE Equatorial, as pessoas percebem a ineficiência da empresa privada? Ou estão ainda atribuindo ao Estado a responsabilidade por esse problema? Hoje, a gente vê manifestações contra o poder público como se a CEEE ainda fosse do Estado, como se fosse uma empresa pública. Vemos pessoas falando que é um absurdo o Estado não providenciar a solução para o problema da falta de luz...
Naquele leilão onde a Equatorial tomou conta, quando eles decidem manter o prenome CEEE, senti que era malandragem. Não é Equatorial. É CEEE Equatorial. Então, as pessoas fazem confusão porque temos seis décadas de CEEE pública. Vai demorar muitos anos para haver essa volta aí.
É que tem CEEE e RGE. Era fácil identificar que uma era do estado e a outra privada. Agora não.
A Equatorial usar CEEE é um abuso.
Cria uma dificuldade a mais nessa campanha de reestatização.
É proposital, não é coincidência. Tinha marqueteiro estudando já na época qual nome ficaria. É deliberado.
Se der tudo certo é Equatorial, se der tudo errado é CEEE.
O fator é a proteção contra o erro. Também temos que considerar que há responsabilidade do poder público lá na origem, quando promove esse leilão de privatização absurdo, derrubando a garantia [de que a população seria ouvida em plebiscito antes da privatização] que havia na própria Constituição Estadual com relação à CEEE e outras empresas.
:: UEE/RS e movimentos sociais vão promover plebiscito popular sobre a reestatização da CEEE ::
Cai essa garantia, vai para o voto, e no voto na Assembleia Legislativa a gente fica sempre dependendo dos governos do momento. Temos que ter muita cautela na eleição dos governantes. São aqueles, como o atual governador, e digo com respeito, que disse que jamais privatizaria a Corsan e o Banrisul. Depois de eleito, pediu desculpa, que estava enganado e tinha que privatizar. Eu chamo isso de deboche.
Agora, foi criada a frente pela reestatização da CEEE e uma das propostas justamente é de se fazer um plebiscito, o que deveria ter sido feito antes da privatização. Essa questão do plebiscito inclusive seria muito pedagógica, neste momento para deixar claro que esta empresa que produz todos esses danos é a empresa privada.
Mas vocês conseguiram aprovar uma CPI na Câmara de Vereadores.
Mas aí é diferente. Não fomos nós, a iniciativa foi do governo municipal. O que o prefeito (Sebastião) Melo quer é se descolar da CEEE Equatorial. Esquece que foi ele quem privatizou a Carris, que acabou com a Procempa. Quer se descolar da CEEE Equatorial e jogar para o (governador Eduardo) Leite. Eu não assinei e não vou colocar minha assinatura ali. A intenção é de livrar a cara do prefeito, que está horrorizado com a Equatorial. Como deputado, ele votou (pela privatização da CEEE). Quer que a CPI essa conclua que toda a culpa é da CEEE Equatorial.
E a CPI não é para acabar responsabilizando a Agergs [Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados/RS], porque há um problema de regulação aí?
A CPI é para tirar o problema das costas do Melo. Tem que concluir dizendo que o prefeito não tem nada a ver com isso. Esse é o papel da CPI. E se o Leite tivesse uma maioria mais organizada na Assembleia como o Melo tem na Câmara, ele faria a mesma coisa.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno