Quando o Manifesto do Partido Comunista foi publicado em 21 de fevereiro de 1848, Karl Marx e Friedrich Engel eram dois jovens de 29 e 27 anos. O breve panfleto de 23 páginas foi encomendado pela Liga dos Comunistas, grupo revolucionário ao qual os dois escritores juntaram-se meses antes.
Com o passar dos anos, o pequeno panfleto tornou-se um dos documentos políticos mais influentes da história da humanidade. A data de seu lançamento é celebrada anualmente como o "Dia do Livro Vermelho".
Por ocasião deste aniversário da publicação, o Brasil de Fato conversou com Iramís Rosique Cárdenas, jovem pesquisador do Instituto de Filosofia de Cuba e integrante do coletivo da revista digital La Tizza.
Como parte da Feira Internacional do livro em Havana, Iramís Rosique Cárdenas venceu o Prêmio Calendário deste ano, na categoria ensaio, por sua obra La actualidad de la Revolución.
Brasil de Fato: O que a publicação do Manifesto Comunista significou para a história humana?
Iramís Rosique Cárdenas: A publicação do Manifesto Comunista é, sem dúvida, um ponto de inflexão. Podemos pensar nela como o nascimento de um novo movimento, que questiona o sistema e que continua até hoje. É importante ter em mente que sempre houve questionamentos contra a opressão ou a exploração. De fato, o Manifesto se sente parte de todas essas tradições, no entanto, tem uma particularidade que o distingue toda a obra de Marx: sua crítica ao capitalismo pretende transcender a denúncia moral para construir uma crítica científica que parta do próprio funcionamento do capitalismo.
Isso não quer dizer que a indignação moral não seja um importante motor para a luta. Mas significa que os problemas que o capitalismo produz, a injustiça e a opressão constitutivas dele, não são apenas um problema moral. Não se trata de pessoas boas contra pessoas ruins ou de uma mera falta de entendimento que pode ser resolvida convencendo o outro. É por isso que o Manifesto coloca o problema da luta em primeiro plano. É revolucionário porque este regime, este modo de produção, deve ser derrubado.
No Manifesto, Marx diz coisas muito claras sobre o modo de produção capitalista. No Capítulo I, chamado Burguesia e Proletariado, Marx começa reconhecendo o caráter revolucionário da burguesia, assim como todas as mudanças trazidas pelo advento do capitalismo. De fato, Marx elogia profundamente muitas dessas mudanças. Mas, ao mesmo tempo, ele descreve com extraordinária inteligência o tipo de sociedade que está sendo produzida. Ele observa que, com o desenvolvimento do capitalismo, "tudo o que antes era sagrado se torna profano" e que todas as relações sociais se afundam nas "águas geladas do cálculo egoísta".
Marx está dizendo que, com o capitalismo, toda a sociedade é subitamente transformada em um grande jogo de pessoas que tentam obter o máximo de lucro. E é essa racionalidade a responsável por toda uma série de problemas sociais, injustiças e misérias. Não é a vontade de ninguém em particular, é a maneira como o sistema funciona que produz todo esse sofrimento.
Dessa forma, o Manifesto Comunista representa um ponto de inflexão, pois é uma declaração da existência do comunismo como uma forma específica de pensar e agir em relação ao modo de produção capitalista.
Poucos panfletos cuja intenção explícita é fazer uma intervenção política, uma forma de propaganda, conseguiram transcender a história como o Manifesto Comunista. Hoje lemos quase como se fosse um texto teórico. Há um amplo consenso de que, para o marxismo, a teoria e a prática política são aspectos indissolúveis da mesma atividade. No entanto, muitas vezes não se explicita em que sentido a teoria e a prática estão relacionadas. Como você acha que essa ligação é feita?
Em minha opinião, o que acontece é que a relação entre teoria e prática ocorre de muitas maneiras diferentes. Em primeiro lugar, a prática teórica é uma prática. E isso é importante porque o capitalismo oculta sua natureza e produz toda uma série de ilusões. Nesse sentido, o simples fato de revelar a natureza do sistema, de ser capaz de revelar seus enganos, suas dobras e sua opacidade, já é uma punhalada no sistema. Pensar no capitalismo como um modo de produção que não permite que se pense nele já é um ato político fundamental.
Em segundo lugar, tenho a convicção de que o marxismo produz um tipo de teoria que serve acima de tudo para as pessoas em luta. Os especialistas em Marx ou especialistas na história do marxismo não são necessariamente marxistas. O marxismo tem a ver com uma postura política rebelde.
O marxismo é uma teoria que se concretiza na prática. Mesmo que não seja na mesma pessoa. Tudo o que é dito, tudo o que é desenvolvido, tudo o que é escrito na tradição marxista, acaba servindo para qualquer pessoa que esteja lutando por qualquer militante, a qualquer momento, em qualquer lugar.
Costuma-se dizer, mesmo na esquerda, que o marxismo é uma teoria que foi criada para um mundo que não existe mais. Que tudo o que o Manifesto Comunista diz é bom, mas descreve um mundo que não é mais o nosso. Qual é a sua opinião sobre isso?
O marxismo é uma tradição que implica uma visão crítica do capitalismo, assim como uma tentativa política de superá-lo. A sociedade capitalista está organizada com base em um princípio: a maximização do lucro. O marxismo é uma proposta crítica, teórica e política para superar essa sociedade e essa lógica específica.
Ao contrário do que a direita acredita, o que justifica a existência do marxismo são os problemas do próprio capitalismo. Esses problemas, desde a publicação do manifesto até os dias de hoje, não só não deixaram de existir, mas estão cada vez mais generalizados.
O marxismo, como a maioria dos marxistas o entende, é provavelmente uma invenção posterior a Marx. De fato, o próprio Marx disse em várias ocasiões que não era marxista. Ele sempre se opôs a que suas pesquisas e contribuições fossem reduzidas a um conjunto de dogmas ou a uma fraseologia supostamente revolucionária.
Nesse caso, podemos dizer que o marxismo é mais uma invenção que começa com a Segunda Internacional. São os leitores de Marx, seus discípulos, que constroem a partir de sua obra uma tradição que é alimentada, como eu disse antes, por uma maneira específica de pensar e agir em relação ao modo de produção capitalista.
Alguém pode se perguntar: o que os marxistas querem? E a verdade é que é realmente simples, não podemos nos esquecer de que o objetivo de nossas lutas é construir sociedades onde as pessoas possam se sentir realizadas, felizes, satisfeitas. A exploração, que é constitutiva do sistema capitalista, nos impede de ter esse tipo de realização humana.
Fico rindo quando a direita diz que o marxismo já foi refutado. A cada década, desde seu surgimento, alguma corrente que alega ter refutado o marxismo se tornou moda. Mas, então, devemos nos perguntar: por que eles se esforçam tanto para tentar refutar o marxismo todos os dias? Há uma obsessão por parte da direita.
O marxismo está em boa saúde. Entretanto, devemos aceitar que nós, marxistas, é que não gozamos de boa saúde.
Fala-se com frequência da crise dos paradigmas emancipatórios ou da ideia de um "realismo capitalista" que não nos permite pensar em alternativas fora do sistema. Como isso se relaciona com a ideia de que "o marxismo está bem de saúde, mas alguns marxistas não estão"?
O marxismo está bem de saúde porque o capitalismo também está bem de saúde. Enquanto o capitalismo existir, junto aos problemas que ele gera, haverá a necessidade de uma teoria e de um compromisso político para imaginar como sair dessa situação.
Agora, todos os socialistas e a esquerda em geral, após a queda do "socialismo real" na Europa Oriental, estamos atônitos. A destruição dessa alternativa específica ao capitalismo, que em algum momento nos pareceu a única possível, foi uma grande derrota para a esquerda em geral. Parece que nos tornamos incapazes de imaginar possíveis alternativas - no plural - ao capitalismo.
Isso nos torna muito ineficazes na política. Acho até que uma das razões para o avanço dessas novas extremas direitas tem a ver com o fato de não termos sido capazes de construir, nesses anos, grandes alternativas ao capitalismo na esquerda. É importante observar que esses extremistas de direita também, à sua maneira, reagem aos problemas do capitalismo. Eles são forças que metabolizam o mal-estar que o capitalismo contemporâneo segue gerando. Eles lhe dão um significado, uma interpretação, e uma saída política reacionária por meio de seu radicalismo.
Algo que muitas vezes nós não fomos capazes de fazer. Porque ainda estamos lamentando que o que era uma maravilha para nós tenha fracassado e desaparecido. E ainda temos dificuldade para reconstruir uma imaginação política que nos dê uma nova perspectiva radical sobre como superar os problemas do capitalismo. Aqueles de nós que se sentem parte das tradições da esquerda revolucionária devem reconstruir uma alternativa radical para as dores que o capitalismo produz.
Toda vez que dizemos que um mundo melhor é possível, estamos fazendo um exercício de imaginação. Estamos usando a utopia. Se não formos capazes de imaginar alternativas ao horror, alternativas a esse mundo desprezível em que estamos vivendo, é impossível construir algo que vá além dele. A imaginação é fundamental para que se possa construir. Mas o capitalismo, entre outras coisas, está sempre cortando nossa imaginação, apresentando-se como o único mundo possível.
É por isso que a leitura, a arte e a cultura são tão importantes. Porque elas nos ajudam a imaginar...
Durante o século XX, esquerda e socialismo eram mais ou menos sinônimos. Essa relação parece não ser mais tão direta; a esquerda socialista faz parte da pluralidade mais amplia das esquerdas. No entanto, esses novos direitistas de que você fala tendem a acusar tudo o que não sejam eles mesmos de socialistas ou marxistas. Qual é a sua opinião sobre isso?
Estamos sofrendo muita confusão com isso. A tendência é chamar de marxismo ou marxismo cultural tudo o que preocupa e aterroriza a direita ou o conservadorismo.
Certas abordagens, muito características da pós-modernidade, que questionam a fixidez de certas estruturas sociais são rapidamente rotuladas como "marxismo cultural". Muitas vezes, essas abordagens, que têm a ver com um relativismo moral e histórico, são devedoras de outros tipos de teorias não necessariamente marxistas, como o construtivismo, o estruturalismo e todos os seus derivados pós-modernos.
Essas abordagens questionam a natureza e a fixidez de certas estruturas de funcionamento social que têm funcionado dessa maneira por centenas e centenas de anos. Elas percebem que, em muitos casos, não precisam continuar funcionando dessa forma. Por exemplo, as formas tradicionais da família, certas relações de poder ou a ideia de nação estão sendo questionadas.
Em sua reação aos questionamentos, os direitistas conservadores chamam tudo de "marxismo cultural". Eles constroem um saco quebrado no qual misturam tudo o que temem, juntam coisas que tradicionalmente eram herança da esquerda revolucionária com todas as teorias pós-modernas ou mesmo todas as lutas pela expansão dos direitos. A direita conservadora odeia que aqueles que não tinham direitos antes agora os tenham, ou que as hierarquias sociais sejam questionadas.
Mas nem todo questionamento de gênero, família ou nação como estruturas vem da tradição marxista. Embora seja verdade que há maneiras especificamente marxistas de questionar essas estruturas ou relações sociais.
Em 1959, Cuba foi abalada por uma revolução social. Entretanto, foi somente em 1961 que essa revolução foi declarada socialista. Qual foi a contribuição de Cuba para a tradição comunista?
A contribuição mais importante de Cuba para o marxismo é o fato de ter feito a revolução. Como disse Fidel: onde os manuais soviéticos diziam que não poderia ser feito, nós fizemos a revolução. Essa é a grande contribuição dos cubanos ao marxismo.
No nível teórico, há diferentes linhas que merecem ser mencionadas. As reflexões de Che Guevara — que, embora nascido na Argentina, realizou sua ação política mais importante na Revolução Cubana — deram enormes contribuições ao marxismo. Contribuições que muitas vezes são desconhecidas na esquerda, onde Che é visto como se fosse apenas um homem heroico. Certamente foi, mas também foi um grande pensador.
As reflexões e a prática política de Fidel talvez sejam uma das contribuições mais importantes do marxismo cubano para o marxismo internacional. Mas também vale a pena mencionar o pensamento descolonizador cubano com figuras extraordinárias como Roberto Fernández Retamar, Manuel Moreno Fraginals, Raúl Cepero Bonilla ou Alejo Carpentier. Embora muitas dessas contribuições tenham sido feitas no campo da arte e da cultura, isso também é marxismo e é cubano.
Acho que o pensamento crítico cubano, na linha de Fernando Martínez Heredia, também merece uma menção especial. Isso, de certa forma, faz parte do pensamento guevarista. As obras de Aurelio Alonso, Juan Valdez ou José Bell Lara que elaboram um marxismo da revolução cubana. Um marxismo com ênfase no papel da vontade dos seres humanos, nos problemas da consciência, nos problemas e desafios dos povos do Terceiro Mundo e no confronto com o imperialismo. Isso foi amplamente desenvolvido aqui.
Há também o marxismo negro cubano. Um marxismo pouco conhecido, mas que pensou nos problemas da negritude, da descolonização e da integração social, que são desafios para todos os nossos povos latino-americanos. Há uma reflexão sobre isso que também é uma escola específica dentro do marxismo cubano, com autores como Juan Pérez de la Riva, Walterio Carbonell e Manuel Moreno Fraginals.
É preciso dizer que há uma forma de marxismo cubano, em minha opinião menos original do que as que mencionei, que tem todo um discipulado e toda uma escola. Uma apropriação cubana do marxismo soviético mais ortodoxo. Centenas de pessoas em Cuba foram treinadas na Europa Oriental Soviética e isso, nem sempre, mas com frequência, produziu versões tropicais dessas escolas soviéticas ortodoxas, juntamente com suas obsessões e ênfases teóricas. Essa é uma escola que influencia as leituras que temos de fenômenos como a guerra cultural, a comunicação ou o partido.
O manifesto comunista começa dizendo que "é chegada a hora de os comunistas expressarem à luz do dia e perante o mundo inteiro suas ideias, suas tendências e suas aspirações". 176 anos após a publicação desse panfleto, o que significa ser marxista hoje?
Ser marxista hoje é um ato de rebelião. É rebelar-se contra um modo de produção que não nos dá vida e que acabará liquidando todos nós. Ser marxista é um ato de responsabilidade para com a humanidade: é viver pensando em como sair dessa situação, é viver lutando para construir uma saída para esse mundo que nos ameaça.
Sempre me lembro de quando Ludovico Silva, em seu Anti-Manual, diz que o marxismo é aquela teoria que dividiu o mundo em dois, mas que acabará unificando-o. Acho que ser marxista ainda tem a ver com a necessidade de insistir que um mundo melhor é possível. Que este mundo, tal como existe, deve ser superado e que, de fato, o marxismo, que já dividiu o mundo em dois, acabará unificando-o. Portanto, é uma posição de rebelião e responsabilidade.
Edição: Matheus Alves de Almeida