De frente para a cidade, mas separada pela vastidão de um rio - ou lago. Essa é a visão de quem atraca o barco ou para o carro no Bairro Arquipélago, em Porto Alegre. A posição faz jus à ocupação secular do local: antes mesmo da capital dos gaúchos receber o nome que carrega até hoje, em 1773, a região das ilhas já tinha seus primeiros moradores.
Registros indicam que a região foi inicialmente habitada por povos indígenas do Rio Grande do Sul, que, com o avanço da ocupação urbana no século 18, migraram para o interior do estado. Os guaranis foram os primeiros a estabelecerem-se nessas terras, por volta do ano 100. Vivendo nas ilhas, desenvolveram habilidades excepcionais na pesca e na navegação, utilizando arco e flecha, anzóis, redes e o puçá, uma rede feita em crochê. Com a chegada dos colonizadores europeus, os indígenas começaram a migrar para regiões mais centrais do estado, fugindo da exploração e das doenças trazidas pelos invasores, que dizimaram populações inteiras.
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A expulsão dos indígenas da região alterou significativamente a ocupação de Porto Alegre. No século XVIII, o Brasil experimentava um boom do ouro, especialmente em Minas Gerais, impulsionando a demanda por mais produtos e mão de obra escravizada. Diante disso, os portugueses voltaram sua atenção para o Rio Grande do Sul, cenário de disputas frequentes entre Portugal e Espanha.
Para consolidar sua presença, os portugueses distribuíram terras entre os líderes locais e trouxeram colonos açorianos para a cidade. Essa política impulsionou o crescimento populacional na região, aumentando também o tráfego no Rio Jacuí, que atravessa a cidade. O rio tornou-se vital para o desenvolvimento da região mais ao sul do Brasil.
No entanto, a distribuição desigual das terras deixou muitos habitantes sem moradia, levando alguns a buscar refúgio nas ilhas. Ali, encontraram a oportunidade de cultivar a terra e pescar, apesar dos desafios naturais. Essa convivência com a natureza se tornou característica dos moradores locais.
Ilha do Quilombo
Além de serem símbolo da resistência indígena, as ilhas fizeram parte da história das pessoas escravizadas na cidade. Em 1810, a atual Ilha das Flores era identificada como Ilha do Quilombo, conforme os registros de venda da época.
As enchentes não são novidade para os ilhéus. Morar em uma ilha é saber que a água que circunda as residências pode subir a qualquer momento e invadir o teto de onde você mora com a família. No princípio, era a presença da água que justificava a vida dos moradores, que podiam plantar e pescar da porta de casa.
Beatriz Gonçalves Pereira, conhecida como Bia da Ilha, mora na Ilha da Pintada desde que nasceu. Quando os pais vieram para a região, a primeira ponte do Guaíba ainda estava sendo construída, na década de 1950. “Meus pais vieram para cá oriundos da cidade carvoeira de Charqueadas. Eles trabalhavam na mina de carvão e vieram para a Ilha da Pintada para trabalhar no estaleiro Mabilde, que era uma potência naquela época”, conta.
A família se estabeleceu em uma região que, na época, mal tinha conexão com o resto da cidade. A travessia era feita por balsas que saíam da Vila Assunção, na zona Sul de Porto Alegre. Foi só com a inauguração da Ponte Getúlio Vargas, em 1958, que a locomoção foi facilitada.
Na enchente de setembro, deixou sua casa e se instalou no terreiro à frente do imóvel onde vive. “Em toda a minha existência nessa ilha, eu não tinha visto nada igual. A ilha sem terra, somente água”, relata. Apesar de sua casa ter sido construída pensando na possibilidade de enchentes, com o uso de palafitas e em um terreno elevado, a chuva tomou conta.
Dentro de casa, as palafitas são transpostas para os móveis e eletrodomésticos. Todos os objetos e bens da família vivem em um andar elevado por tijolos, madeiras ou outros artifícios. “As pessoas perguntam para nós: ‘vocês têm enchente, porque estão lá?’. Ora, ora, ora. Se nós tivéssemos um poder aquisitivo, talvez nós não estivéssemos lá. A ilha da pintada foi se constituindo por si só”, pontua.
A enchente é assim. Tem o início, o meio e o fim. Eu não sei qual é o pior. Porque no fim, as pessoas estão voltando [para suas casas] e precisam de tudo, porque elas perderam tudo. E não é só o material, tem o acolhimento, porque as pessoas estão adoecidas, estão com seu psicológico abalado, desacreditadas. E nosso papel religioso também é levar esse conforto
A partir de outubro, o fenômeno El Niño intensificou a precipitação na região Sul do país. A chuva elevou o nível do rio Guaíba, que separa parte das ilhas do restante da cidade. Em novembro, atingiu 3,30 metros no Cais Mauá, ultrapassando a cota de inundação. Moradores precisaram acampar ao longo da BR-116 em busca de proteção.
Quando esta reportagem visitou a Ilha da Pintada, na primeira quinzena de dezembro, a água ainda estava acima do normal. “Houve um momento em que as ilhas ficaram totalmente isoladas. Quem estava do lado de dentro não conseguia sair, e quem estava do lado de fora não conseguia entrar”, conta Bia.
O futuro é logo ali
Inundações, deslizamentos, tempestades, ondas de calor, secas. O Rio Grande do Sul tem se tornado cada vez mais suscetível a eventos climáticos extremos. Isso se explica principalmente pelas mudanças climáticas aliadas ao fenômeno do El Niño, parte do ciclo natural do clima do estado. Tudo isso ainda se acentua com os padrões de emissão de carbono da cidade em decorrência de fatores como o transporte e o consumo de energia.
O estudo Análise de Riscos e Vulnerabilidade Climáticas, divulgado pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, aponta o bairro Arquipélago, ao lado de outros, como uma das regiões de maior risco. Essa iniciativa faz parte do Plano de Ação Climática da prefeitura, que tem como objetivo estabelecer medidas prioritárias para a redução de Gases do Efeito Estufa e tem previsão de ser encerrado em junho de 2024.
As ilhas também lidam com outro problema: uma grande parte da população ocupou cotas muito baixas dos terrenos alagáveis, o que faz com que elas estejam ainda mais vulneráveis à invasão da água quando o nível do Lago Guaíba sobe.
Segundo o urbanista Joel Outtes, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenador de um projeto de extensão sobre urbanização sustentável de comunidades de baixa renda, existem poucas opções práticas para evitar esse problema. Soluções possíveis são a realocação de parte da população para regiões mais altas do próprio território das ilhas ou a construção de palafitas - sistema no qual se tem uma estrutura abaixo de uma construção para deixá-la mais elevada. “Isso é uma estratégia que pode ser utilizada, mas que não é a ideal. Essa discussão está muito colocada nos municípios atingidos pelas enchentes no Vale do Taquari, como Muçum, Lajeado e Roca Sales”, explica.
Para Joel, existem formas de investimento social para manter a população nas suas áreas de origem e preservar suas conexões sociais. Em casos como esse, é preciso pensar em habitações com interesse social e infraestrutura, além de doação de habitações para os mais pobres. Entretanto, ele pontua que essas discussões precisam ser feitas com a participação da população. “É necessário fortalecer a democracia participativa e tomar as decisões adequadas em termos de urbanismo”, defende o professor.
Um dos obstáculos do ponto de vista do urbanismo de retirar os moradores do lugar onde já se estabeleceram é a ruptura que isso representaria para o estilo de vida que valoriza o coletivo, presente em locais como as ilhas. “Quando você remove a população, você precisa reproduzir as condições originais, ou seja, recriar a rede social que esses moradores têm nas suas comunidades de origem. Então, é preciso remover a maior quantidade de pessoas para o mesmo lugar, para que as redes se preservem”, Joel pontua.
Da ilha, sem negociação
Cida, moradora da Ilha Mauá - uma das regiões classificadas com maior risco para inundações - há 63 anos, é uma das filhas de uma família de cinco irmãos, todos nascidos nas ilhas. “Todo mundo mora em volta, em roda, assim, juntos”, explica. Com cinco filhos e uma quantidade de netos e bisnetos que já não pode mais contar, ela afirma que não deixaria o local. “Eu não saio da ilha por nada nesse mundo. Não tem o que explicar, só quem nasceu aqui e mora sabe o valor que ela tem”. Esse senso de comunidade é o que constrói a identidade das ilhas. “Na Ilha Mauá somos uma família, todo mundo coopera”, conta.
Eu não saio da ilha por nada nesse mundo. Não tem que explicar, só quem nasceu aqui e mora sabe o valor que ela tem
Cida, moradora da Ilha Mauá
Apesar disso, permanecer significa estar preparado para desastres cada vez mais recorrentes. Elevar os pertences já faz parte de uma rotina colocada em prática quando a água entra. É sobre o piso que cedeu na cozinha na última enchente que Cida revela o que realmente importa pra ela. “Como é que eu vou dizer pra ti… Aquilo ali arruma. É coisa material e pronto, acabou, segue de novo. Quem mora na ilha tem que se acostumar”, comenta.
A necessidade de adaptação a um cotidiano desconfortável de contenção de danos não significa que os moradores das ilhas estão conformados com a situação. A comunidade ainda luta por sua dignidade. Para Cida, existe uma necessidade ainda maior de se atentar à Ilha Mauá, que segundo ela ainda é muito esquecida. “Eu acho que tinha que olhar mais para Mauá. Até um certo ponto, ela é esquecida, esquecida mesmo.”
Em um contexto como esse, pequenas conquistas já são significativas. A última delas foi a ponte instalada pela prefeitura na entrada da ilha. A nova estrutura possibilita o fácil acesso ao local, onde antes não passavam veículos como caminhões e ambulâncias. “Agora, a ambulância vai parar na porta da gente quando é preciso”, destaca. Com a área desassistida, o transporte de materiais de construção ou de móveis, por exemplo, precisava ser feito a pé.
E os moradores?
Juramar Vargas é morador da Ilha das Flores. Desde que entendeu a importância das discussões democráticas nas ilhas, travou um desafio pessoal de adquirir o máximo de conhecimento possível sobre a vida de ilhéu. “À medida que entrou neste século, eu passei a me importar mais com a região. Me importar com as discussões nos espaços democráticos”, conta. O principal motivo? A ideia defendida por muitos de que a única solução para evitar problemas nas ilhas seria remover a população da região. “Sempre vem as discussões que os mais pobres deveriam sair dali. E eu achei que essas discussões eram um tanto absurdas”.
Beatriz, que já foi conselheira do Orçamento Participativo, reconhece que grande parte das evoluções vieram do OP. A ferramenta foi implementada em 1989, quando Olívio Dutra (PT) era o prefeito, e busca ser uma forma da população de cada uma das regiões definir onde serão aplicados os recursos financeiros da cidade. “Hoje vocês olham o que nós temos na ilha, é tudo conquista do Orçamento Participativo”, afirma.
Na época, o bairro Arquipélago fazia parte da região de planejamento junto com os bairros Humaitá e Navegantes, na Zona Norte da cidade. A comunidade, no entanto, questionava a decisão, já que, apesar da proximidade geográfica, as demandas eram muito diferentes. “As construções dos bairros [Humaitá, Navegantes e Arquipélago] são diferentes. Nas ilhas, por exemplo, temos a demanda por palafitas”, explica Bia. A comunidade conseguiu ser ouvida e, hoje, compõe a região 17 do Orçamento Participativo.
Os moradores das ilhas são muito unidos, porque quando chega do lado de lá, do centro, do central, a gente tem que gritar muito porque eles tampam os ouvidos para não nos ouvir. Então, nós sentamos na mesa e discutimos junto. É por isso que eles não conseguiram vencer até agora
Juramar reconhece que existem áreas no território em que a remoção dos moradores seria necessária por questões de segurança, mas defende que isso aconteça com um plano estruturado de assistência a essas pessoas, o que, até hoje, ainda não aconteceu. “O poder público toma as providências, faz o encaminhamento e depois vem a inércia, não faz nada”.
Que lei é essa?
Parte do problema para atendimento qualificado se relaciona com a classificação recebida pela região. Desde 1976, o bairro arquipélago faz parte da área do Parque Estadual do Delta do Jacuí. O parque foi criado sob a justificativa de que a região era uma “área verde próxima à parte mais urbanizada da capital e pelo fato das águas do delta atuarem como um imenso filtro natural, contribuindo para manter a potabilidade das águas do Guaíba e os bons níveis de produtividade de pescado”, conforme consta no site da Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Em 2005, quando foi criada a Área de Proteção Ambiental Estadual Delta do Jacuí, houve mudança dos limites da região, que atualmente tem área total de 14.242,05 hectares.
A indefinição, contudo, fazia com que os governos se eximissem de suas responsabilidades. Diante dos papéis que não são cumpridos, são os moradores que ficam desassistidos. “Os governos se escoravam um no outro. Não vamos fazer porque aqui é responsabilidade do município. Não vamos fazer porque é responsabilidade do Estado”, reflete Bia. “Na realidade, quem carrega toda a estrutura das ilhas é o município. E eu não estou aqui fazendo uma defesa de algum prefeito. Mas os outros entes, estaduais e federais, pouco atuam”, conclui.
Tu cobra do município, que não tem gerência nenhuma aqui enquanto essas coisas não forem encaminhadas. Porque o município não tem áreas aqui. Então, quando essas providências não são tomadas, elas vão passando, e para o município é muito fácil dizer que a culpa é do estado e não dele
No plano diretor da cidade, o desafio por reconhecimento segue. As regras de construção do bairro foram definidas em abril de 2023 por uma instrução normativa publicada pela Prefeitura de Porto Alegre, à parte do Plano Diretor da cidade, cuja votação só deve ocorrer a partir de 2025.
O que diz a prefeitura
Contatada, a Prefeitura de Porto Alegre afirma que “a alegação de não ter ocorrido alerta não procede”. O comunicado enviado à reportagem diz que “a Prefeitura de Porto Alegre sempre emite alertas quando há previsão de chuvas intensas ou expectativa de alagamentos ou temporais na cidade”. Em novembro, diante da iminência das cheias dos rios, a Prefeitura divulgou amplamente, nos dias 12, 15, 16 e 19 daquele mês, através do próprio site e da imprensa, alertas sobre a possibilidade de cheias.
Além disso, o paço municipal alegou que, em junho de 2022, pela primeira vez, um plano de contingência foi aprovado pela prefeitura. A determinação cria um conjunto de ações emergenciais em caso de desastres. O documento formulado por técnicos do poder municipal, informa que a cidade de Porto Alegre possui 142 áreas de risco: 14 delas estão localizadas na região das ilhas. Em fevereiro de 2024, também foi sancionado o projeto de lei que institui o Sistema Municipal de Proteção e Defesa Civil. O efetivo do sistema nesse momento é de 45 profissionais, diante dos dez profissionais que compunham o sistema no início da gestão de Sebastião Melo.
O comunicado enviado informa, ainda, que, desde 2022, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) realizou o pagamento de 200 bônus-moradia na cidade de Porto Alegre. O mecanismo é uma solução habitacional definitiva para que as pessoas deixem áreas de risco e adquiram um imóvel próprio. O valor também foi reajustado e passou a ser de 127 mil reais em 2023.
Daqui pra frente
Quando essa reportagem visitou a região das ilhas, em dezembro de 2023, a situação, apesar da melhora, ainda era grave. Depois disso, Porto Alegre e municípios da região metropolitana foram atingidos por uma das piores tempestades da história da capital. Alguns moradores chegaram a ficar vinte dias sem abastecimento da rede elétrica. Árvores caíram, postes foram derrubados, casas destruídas. O centro descobriu a força da água que as Ilhas já conheciam.
Se contarmos o período que vai de janeiro de 2023 a janeiro de 2024, o estado do Rio Grande do Sul enfrentou pelo menos seis episódios climáticos extremos: litoral, Vale do Taquari, região das ilhas e Porto Alegre. Podemos chamar isso de desastre? Ou devemos entender como consequência dos últimos 100, 200, 1000 anos de vida na terra? “Aqui onde eu moro não existia nada”, conta Bia, “as águas passavam com muita tranquilidade. Hoje elas querem passar, e elas não encontram mais o caminho que era delas. Isso é progresso? Bom, é. Mas que progresso é esse que a gente não consegue lembrar que a gente faz parte desse cosmos. E que tem água, tem chuva, relâmpago, trovoada, movimento de terra, vento, tempestade. O que a humanidade pensa? Nós estamos conectados com isso?”, finaliza.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko