PAPO DE SÁBADO

'Leite tem um projeto bem claro que é o da privatização', afirma diretora de sindicato da educação no RS

Presidenta do CPERS conta que a rede estadual abre 2024 com problemas não resolvidos e escolas deterioradas

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
A professora Helenir Aguiar Schürer foi a convidada da 28ª edição do podcast De Fato - Foto: Alexandre Garcia

A professora de Letras Helenir Aguiar Schürer, 70 anos, enfrenta mais um início do ano letivo e completa uma década como presidente de um dos maiores sindicatos do país.

O Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS) representa 80 mil trabalhadores. A frente dele, Schürer constata que antigas reivindicações da educação e dos servidores das escolas estaduais continuam à espera de solução.

Neste 2024, a rede escolar recomeça sua tarefa em condições ainda mais precárias. Tudo sem contar o fato que o Rio Grande do Sul, que já se orgulhou da qualidade do seu ensino e da sua vasta malha de escolas presentes nos rincões mais remotos, inicia o ano com menos 200 escolas.

A sindicalista conversou com Brasil de Fato RS sobre esses e outros assuntos, como a ameaça da terceirização e a privatização. Dentro do quadro de dissipação do patrimônio estadual, não esqueceu, com humor. Leia:

Brasil de Fato RS - É verdade que o básico dos funcionários de escola é de R$ 657 mensais?

Helenir Schürer - Sim, é difícil acreditar. É uma vergonha, não para o funcionário, mas para o governo do Rio Grande do Sul. Eles pagam R$ 657 de básico, mas, como é proibido pagar menos do que o salário mínimo, então pagam um completivo para chegar ao mínimo.

Mas, vejam bem: a gente conseguiu na Justiça que fosse implantado e pago o adicional de insalubridade para os funcionários da cozinha, que fazem a merenda, e para os que fazem a limpeza. O que acontece? O governo paga essa, que é uma verba indenizatória, mas desconta dessa parcela do completivo para chegar ao salário mínimo. Na verdade, tu tens, na lei, direito à insalubridade, mas não recebes, porque, tendo ou não tendo, vais receber o salário mínimo regional.

E mesmo a insalubridade vai ser calculada sobre o básico apenas?

Sim, sobre os R$ 657.

Não é uma política justamente para terceirizar?

Óbvio. Por que o governo não conversa ou não quer conversar sobre concurso público para funcionário de escola? Não querem porque a terceirização está aí. Já foi aprovada. A reforma trabalhista, que penalizou muitos trabalhadores, hoje se encontra nas escolas. Eu tenho que rir. Às vezes eu brinco que tem professor aposentado que odeia o Leite porque está pagando a previdência.

Aí quando lembro: odeia o Leite e ama o Bolsonaro. Quem deu esta condição foi o Bolsonaro quando permitiu que cobrasse até 22% [dos aposentados]. Então, neste caso, o Leite nem cobrou os 22%, cobrou 14%. Eu sempre digo que nós temos na vida pública aquilo que o nosso direito de escolha produz. Agora, o teu direito de escolha também gera consequências...

Então é importante saber. Nada contra quem votou no Bolsonaro. A democracia a gente tem que respeitar. Mas daí tu não podes xingar o Leite, porque ele te penalizou em 14% sendo que o Bolsonaro disse 'Pode ser até 22%, não tem problema'. Essa despolitização das pessoas — e a grande mídia trabalhou muito isso, como se a política fosse uma coisa demoníaca — cria a imbecilidade. Tem pessoas que votam contra si mesmas e, depois, chegam lá no CPERS perguntando o que o CPERS vai fazer. Me dá vontade de dizer: pensa no que tu fizestes em outubro.

Mas o governador Leite tinha prometido aumentar o salário para R$ 1,5 mil. Isso não aconteceu?

Não aconteceu. Sempre quando nos sentamos à mesa com o governo é quase um mantra: concurso público para professores e funcionários e o básico decente para os funcionários. Numa das reuniões que tivemos com o governador, quando eu falei sobre o básico, ele disse: 'Não professora, isso a gente tem que resolver. O básico tem que estar entre R$ 1,5 mil e R$ 1,6 mil'.

Ao sairmos da reunião, quando ele foi falar, me chamou para falar junto. Daí, eu disse: 'Vou aproveitar que o senhor está aqui para dizer que o senhor apresentou a proposta de R$ 1,5 mil para os funcionários e nós queremos discutir'. Então, botamos na pauta. Queremos discutir de que forma vai ser feito.

Os funcionários do estado têm um plano de carreira. Não pode acontecer, por exemplo, o que o Leite queria fazer com o nosso plano de carreira, que a gente conseguiu melhorar depois de muita luta. Ele queria pagar 7% (de diferença) entre quem tem o ensino médio e quem tem doutorado. Com muita briga conseguimos elevar para 30%. Só que, no nosso plano anterior, a diferença entre o nível 1 e o 6, a pós-graduação, era de 100%. Então, a gente perdeu muito. Não perdemos o plano, mas foi achatado. E não queremos que isso se repita com os funcionários.

Vamos cobrar, mas pisando em ovos. Porque sabemos qual é o projeto. Está muito equivocado quem acha que o governo Leite não tem projeto. Tem um projeto, para mim bem claro, bem específico, que é o projeto da privatização, da entrega, da diminuição do Estado para a população. Eu sinto hoje, bato na minha cabeça, que a CEEE [Companhia Estadual de Energia Elétrica] foi vendida por R$ 100 mil. O CPERS poderia ter comprado. Mas a gente bobeou. Já imaginaram nós comprando a CEEE e transformando em uma grande cooperativa? Perdemos a oportunidade. Gente, R$ 100 mil é de chorar...

Mas é o dito projeto neoliberal, conhecido nosso de muitos anos.

Já nem é neo mais, porque já tá velho, mas, infelizmente, aprofundado cada vez mais. Esse negócio de dizer que não tem projeto é despolitizante também. A Fundação Lemann [do bilionário Jorge Paulo Lemann] formou muita gente nesse Brasil aí e o [governador] Leite é um deles.

De acordo com o estudo Observatório da Educação Pública da Assembleia Legislativa, de 2006 a 2022, o número de professores efetivos na rede pública estadual caiu de 75 mil para 31 mil, menos da metade. E o número de servidores nas escolas estaduais também caiu. De 17 mil para sete mil. São os que ganham o básico de R$ 657 mensais. O que quer dizer isso? Os alunos estão aprendendo tão rapidamente que não há necessidade de tantos professores assim e de tantos funcionários para apoiar esse aprendizado?

Helenir - Tem algumas questões que são verdadeiras. Por exemplo, hoje nascem menos crianças do que há 10 anos atrás. É real. A diminuição de alunos acessando as escolas estaduais também é uma realidade. Muitas escolas públicas municipais aumentaram a sua oferta, cresceram as redes. Mas não podemos desconhecer os números de crianças fora da escola. Temos muitas crianças e adolescentes fora da escola.

Há mais um problema. O governo está implantando a escola em tempo integral, o que a gente defende. Na periferia é um salvo-conduto do cidadão do futuro. Sabemos com quem disputamos os alunos nas escolas periféricas. Tendo-se a criança o dia inteiro ajuda na proteção. Agora, temos muitos adolescentes que trabalham, precisam ajudar em casa. Estudam de manhã ou de tarde, e no outro turno eles são estagiários ou aprendizes.

Com o governo federal apresentando esta proposta da poupança para os alunos do ensino médio acho que ajuda. O governo daqui do estado pagava R$ 150 no ano passado. Os próprios alunos diziam: 'Com R$ 150 não pago nem o ônibus. Ganho R$ 400 trabalhando fora'. É uma equação que tem que ser resolvida. Não é que os alunos não estejam na escola porque não querem estudar. Eles necessitam gerar renda para ajudar na família. É um problema social que o estado e os municípios têm que dar conta.

E a questão da busca dos alunos (que estão fora da escola), às vezes menores? A gente passa em semáforos e vemos crianças vendendo alguma coisa. Quem está buscando essas crianças? Será que é o professor? Ou será que é o Estado através de políticas públicas, de assistência social? Porque, a cada dia, mais aumenta a carga nos ombros dos professores.

Muitos dizem: 'Professor tem que fazer a busca ativa'. Às vezes, tentas telefonar e não encontras ninguém. Mandas o conselho tutelar e não encontra. Espero que ninguém esteja pensando que o professor tem que pagar um Uber para ir até a casa das crianças e buscar informações porque elas não estão indo à escola. E muito menos um funcionário que ganha R$ 600 e pouco... Falta essa política de busca.

Em compensação, aquelas pessoas que estão fora do tempo normal (de aprendizado), que buscam os NEJAS (Núcleos de Educação de Jovens e Adultos) ou EJAS (Educação de Jovens e Adultos) estão sofrendo um processo de privatização disfarçado no Rio Grande do Sul. Vamos fazer um levantamento de quantas EJAS e NEJAS tínhamos aqui em Porto Alegre em diversos bairros? Quantos temos hoje?

Por que digo que é uma privatização escondida? Porque é onde o Estado se afastou da comunidade, fechou a EJA e disse: 'Agora, venham para o Centro'. Temos pessoas que não têm dinheiro para pagar um ônibus, quanto mais dois para estudar no Centro. Surgiu um cursinho, uma empresa particular, que está ofertando cursos da EJA ou NEJA por R$ 79. Para quem precisa, é mais barato pagar os R$ 79 no local onde mora do que ir ao Centro pagando o ônibus. Se alguém perguntar ao governo se está privatizando, ele diz: 'Não, a gente está ofertando'. Mas ofertando longe de onde as pessoas moram...

Mas o governo participa disso de alguma maneira, estimula esses cursinhos?

Não, mas é a procura, então tem um monte. Tu fechas onde [está] o público. O mercado está aberto, não existe espaço vazio.

E estão muito disseminados esses cursinhos?

Se tu pegares o carro e deres uma volta na periferia de Porto Alegre vais achar muitos cartazes, muitos outdoors.

Me lembra aquela situação onde as pessoas iam pegar o trem e tinha uma banquinha vendendo plano de saúde por R$ 20 ou R$ 30. Onde se afasta o Estado, o mercado vai ocupando espaço.

Isso.

A gente está vivendo recentemente a situação no NEJA Paulo Freire. E tem uma coisa que me chama atenção, sempre tem a desculpa de uma situação física na escola: precisamos reformar tal parte, o Paulo Freire está com goteiras, está caindo o telhado, então vamos tirar daqui e levar para outro lugar. E aí leva para outro lugar e nunca mais volta.

Olha o Instituto de Educação. O que aconteceu? Resistiam para não sair dali. Saíram e quando voltaram há um grande espaço que não é mais da escola. Foi privatizado. Se quiserem nos contestar, nos contestem, mas uma parte do instituto, que vai ser um museu, privatizado, não é do Estado.

Parece que isso está se repetindo em vários lugares. No ano passado, saiu um relatório também da Comissão de Educação da Assembleia, mostrando que a situação está muito complicada.

Fizemos dois dossiês. Um em novembro de 2021, outro em 2022. Pasmem: as mesmas escolas que tinham problemas em 2021, continuam a mesma coisa três anos depois. E lembre-se bem, durante esse período teve discurso do governo que mandou verba, que as escolas todas iam ser estruturadas. Há poucos dias mandaram mais uma verba. Só que isso não aparece.

No [colégio] Inácio Montanha é um escândalo. Chove que nem na rua. Foram arrumar, pagaram uma empresa e o que ela fez? Botou umas telhas de brasilite. Hoje, não pinga mais onde pingava. Conforme a água desce pela telha ela se esparrama. Cada vez que chove ou parece que vai chover, tens que tirar computador, um monte de coisa. No último vendaval, caiu o muro, caiu a grade. Não foram lá consertar e, nesse meio tempo, roubaram os aparelhos de ar condicionado. Não estou falando de uma escola no Chuí. Falo de uma escola que está ali do lado do Palácio da Polícia. Temos outra escola onde faltava luz, ali perto da (bairro) Restinga.

As crianças estudavam no escuro. Chegamos lá numa caravana e tinham acabado de roubar os fios. Todo mundo foi para a delegacia junto. No dia que fomos lá haviam roubado o portão da escola. Isto aqui em Porto Alegre. Então, o que vamos falar, por exemplo, lá de Rio Grande? Lá tem uma escola que está totalmente podre, toda interditada. Se uma pessoa entrar pela porta da frente é capaz de cair a escola.

A Olavo Bilac, em Santa Maria, uma escola centenária, às traças. No Partenon (bairro de Porto Alegre), uma escola enorme com todo um pavilhão mofado. O vendaval tirou um pouco do teto, ficou assim, e cada vez que venta arranca mais um pouco. Está lá apodrecendo toda uma estrutura que poderia, se tivesse agilidade e boa vontade do estado, resolver rapidamente para não deteriorar.

BdF RS - O levantamento do Observatório da Educação Pública da Assembleia notou que o número de escolas diminuiu também de 2012 para 2022. Mais de 200 escolas desapareceram no ar.

Helenir - E eu quero te dizer que foi com muita briga, porque, no início do primeiro governo Leite, pedimos uma audiência na Secretaria da Educação e nos levaram para a sala de projetos para discutir. Quando eu olhei para o projeto na parede — nosso jornalista tirou fotos de absolutamente tudo — estava escrito que queriam fechar 400 escolas. Então vocês veem, o governo conseguiu 200 e poucas...

Em 2017, estive em um encontro internacional da educação e havia uma pesquisa sobre o processo de privatização das escolas públicas da América Latina. Em 2019, se não me engano, houve uma reunião dos bispos das igrejas evangélicas que decidiram disputar as escolas públicas com o Estado.

Já temos 136 escolas públicas na América Latina que foram entregues para as igrejas pentecostais administrarem. Imaginem crianças pequenas sendo doutrinadas nesse falso cristianismo que eles pregam, porque eu não conheço cristianismo que pregue ódio e arminha.

Uma PEC (projeto de emenda à Constituição) que está em discussão no Rio Grande do Sul me assusta muito. Conversei com o governo inclusive sobre isso já que há possibilidade de serem criadas escolas que não tenham o ensino fundamental completo. Quer dizer que podes criar uma escola que ofereça só o primeiro ano e o segundo e qualquer instituição com alguma relação com a educação poderia abrir essas escolas. E o meu medo é esse.

Fizemos uma matéria sobre as escolas municipais de Eldorado do Sul, onde o secretário de Educação é evangélico e quase todos os diretores das escolas municipais são evangélicos. Eles aprovaram a lei da Semana Evangélica nas Escolas, uma semana inteira de cultos na sala de aula. Professores incomodados com isso vieram procurar o Brasil de Fato para fazer essa denúncia. Imagino que isso deva estar acontecendo em muitas escolas públicas.

Em Caxias do Sul descobrimos uma escola que fazia cultos. Fizemos a denúncia. Se o Estado é laico, os espaços públicos têm que ser laicos também. Se vais ofertar um culto, tens que ofertar para o candomblé, tens que ofertar para os budistas... Sou cristã, mas cristã daquela frase 'Ama o teu próximo como a ti mesmo' e ponto final.

Fala um pouco da Conferência Nacional de Educação (Conae) de que o CPERS participou, onde o Fora Lemann foi uma das palavras de ordem.

Tivemos um embate que achávamos que seria muito mais duro. Foi uma bela surpresa na Conae ver que outros estados conseguiram ter uma maioria progressista. Aqui no Rio Grande do Sul, foi uma vergonha. Tínhamos três delegados e não mandaram sequer passagem para irem a Brasília. Acho que a gente reafirmou uma pauta histórica nossa, os 10% do PIB, o plano nacional com a valorização dos professores, uma escola realmente inclusiva, tudo que a gente queria.

O grande problema para mim não foi a Conae, porque foi um sucesso. O nosso grande problema será o Congresso Nacional. A extrema direita tentou se articular para ir para a Conae, mas não conseguiu. Os pouquinhos que estavam lá ficaram acuados. Mas no Congresso Nacional se inverte. Lá temos muita gente que defende a educação como mercadoria. Que quer trazer pautas como escola sem partido - que é a grande mentira, porque querem uma escola doutrinadora como se teve desde o tempo da ditadura neste país - uma escola que não discuta gênero, raça, diversidade.

A escola que a gente sonha é a escola em que a pessoa seja feliz. Tive alunos que defendiam o neoliberalismo, mas me senti feliz quando foram defender com argumentos, com capacidade de defesa. Nunca me senti uma doutrinadora, mas uma libertadora do pensamento. Que as pessoas tenham liberdade de se colocar como acham melhor.

* Esta é uma versão reduzida da entrevista concedida ao podcast De Fato e da qual também participou Dão Real Pereira dos Santos.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno