Entre as novidades que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) trouxe para sua terceira gestão presidencial foi a criação de uma secretaria do direito da população LGBTQIA+.
Vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, a pasta é comandada por Symmy Larrat, militante da causa há anos e que já esteve à frente de entidades nacionais, como a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos).
"Construir esse espaço, tendo em vista o período recente de desmonte dessa pauta, a ponto de os ministérios serem proibidos de falar sobre esse assunto, nos demandou um esforço gigantesco de construção da burocracia necessária", afirma a secretária em entrevista ao programa Bem Viver desta terça-feira (27).
Um dos focos de Larrat neste primeiro ano de gestão foi a consolidação da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a criminalização da LGTBfobia.
Em 2019, o Supremo Tribunal federal (STF) decidiu que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero deve ser considerada crime. De acordo com o entendimento dos ministros, a LGBTfobia se enquadra na lei 7.716/89, a Lei do Racismo, até que o Legislativo nacional debata e vote uma legislação específica.
Segundo a secretária, embora a decisão já esteja em prática há quase cinco anos, ela está pouco aplicada nas investigações e denúncias.
"Não há uma orientação federal para que os estados, que são responsáveis pela Segurança Pública, possam proceder de forma unificada no que concerne à tipificação desse crime quando da motivação LGBTfóbica", explica.
Symmy Larrat confidencia que o trabalho na secretaria passa por uma dificuldade extra. "O maior desafio é enfrentar a vigilância extrema do conservador, que questiona todas as nossas ações. Há uma vigilância sobre o conteúdo do que fazemos, questionando a avaliação da política pública para essa população, como não necessária, como imoral e assim por diante."
Confira a seguir a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado no dia 29 de janeiro, ao menos 145 pessoas trans foram mortas no país. Em 2022, o total de assassinatos foi de 131, cerca de 10% a menos. Como a secretaria recebeu esse dado? Que ações tem sido tomadas para frear estes crime?
Symmy Larrat: Primeiro é importante dizer que quando nós recebemos esse relatório, tanto no ano passado quanto este ano, na sede do Ministério, recebemos como dados oficiais. Eles não são dados produzidos pelo governo, são produzidos pela sociedade civil, mas eles são oficiais para a gente. Os apontamentos que o relatório traz são oficiais. Eles são levados por nós como orientações para a nossa atuação de governo.
Uma recomendação que vem seguindo em vários relatórios da Antra é a construção de protocolos e de procedimentos operacionais padrão nas polícias, na Justiça, para que aconteça de fato uma conquista que nós temos no STF, que é a criminalização da LGBTfobia, que tem muita dificuldade de ser efetivada na prática.
Não há uma orientação federal para que os estados, que são responsáveis pela Segurança Pública, possam proceder de forma unificada no que concerne à tipificação de crime quando há motivação LGBTfóbica.
Nós estamos fazendo esse esforço desde o ano passado na construção e elaboração desses protocolos para que nós acordemos com a Justiça e com a segurança pública.
Ainda nesta semana, eu estive com o ministro [da Justiça e da Segurança Pública] [Ricardo] Lewandowski debatendo várias atuações de governo para que, ao final desse processo elaborativo, consultivo, de diálogo com a sociedade e com os movimentos sociais, consigamos entregar esses protocolos.
Nós também, oriundo de uma ação que a própria Antra moveu com o Ministério Público Federal a partir de uma ação de uma plataforma da rede social, apontamos a necessidade de um grupo de trabalho para pensar violência nas redes sociais.
Estamos publicando neste mês esse GT, nós estamos construindo os parceiros que vão compor e vamos lançar muito em breve, antes do 17 de maio, que é a data que traz o debate de enfrentamento à violência de uma maneira nacional.
Isso tudo é de enfrentamento direto, então tem muito diálogo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, com o sistema de Justiça como todo, nós temos um acordo com a Operação Técnica com CNJ, mas sobretudo com os estados e municípios, que têm muita responsabilidade.
Mas outras ações vêm no campo da prevenção. Uma nós lançamos ano passado. Estamos no período de instalação, que é o Projeto Acolher Mais, que pensa no acolhimento dessa população, que vem aí do abandono familiar e que precisa ser acolhida.
E vamos lançar até maio o programa de trabalho digno e de geração de renda, que é um programa que estamos construindo com o Ministério do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho.
A secretaria trabalha com uma meta de, pela primeira vez em anos, ver uma redução no número de assassinatos de pessoas trans?
Olha, é um sonho, uma vontade e o que a gente faz, a gente faz com o esforço de que esses números caiam. Mas a análise sobre esses números perpassa diversos fatores, inclusive a reação conservadora.
Então, acho que o que a gente precisa fazer de início é construir a resposta histórica, para que a institucionalidade do campo da segurança pública, do campo da Justiça e do campo da prevenção a essas violências aconteça de fato e seja nossa não só no papel. Que essa decisão do STF chegue na vida das pessoas. Eu acho que esse é o primeiro caminho, mas que talvez dure o mandato inteiro.
Então os impactos disso a gente não vai sentir imediatamente, mas não é uma matemática fácil. Não é assim que funciona, infelizmente, mas os esforços são nesse sentido.
Quais foram os principais desafios de implementar uma secretaria do zero?
Essa Secretaria Nacional leva a pauta LGBTQIA + para o maior escalão de governo no mundo. Nós não temos um outro país que tenha esta pauta num lugar tão alto. Isso nos dá diversos desafios.
Construir esse espaço, tendo em vista um período recente de desmonte dessa pauta – os mistérios eram proibidos de falar sobre esse assunto – nos demandou um esforço gigantesco de construção da burocracia necessária para que funcionássemos.
Isso demandou um grande tempo, a própria composição da equipe. Nós começamos com 10 pessoas, estamos com 50 pessoas hoje no quadro da secretaria e ainda não é suficiente.
O que nós passamos pelo período que estávamos fez com que o processo se burocratizasse ao extremo, então isso dificulta muito algumas ações.
Mas eu acho que esse é um desafio que a gente supera na política. Nós já estamos aí com um ano de secretaria e queremos que esse semestre tenha um semestre de muitas entregas do que nós prometemos em um ano.
Mas esse não é o maior desafio. O maior desafio é enfrentar a vigilância extrema do conservador, que questiona todas as nossas ações. Precisamos de controle social, de controle dos órgãos competentes, dos órgãos de controle, dos órgãos de Justiça, para que a gente consiga caminhar na construção da política pública de uma maneira exemplar.
Mas há uma vigilância sobre o conteúdo do que fazemos, questionando a avaliação da política pública para essa população, [vista] como não necessária, como imoral e assim por diante.
Essa vigilância extrema acontece no Congresso, por exemplo. Como vamos aprovar um orçamento digno para essa política pública tendo o Congresso que temos? Nós nunca vamos aprovar com esta realidade um orçamento, por mais esforço que tenhamos do Executivo nesse sentido. E esses conservadores, eles não estão só no Congresso. Eles estão em todos os espaços, fazendo uma fiscalização que tem como único intuito fazer que a gente não exista na política pública.
Então esse, para mim, é o maior desafio. Por outro lado, nós temos um movimento social que tem que ser vigilante como tem sido nas entregas de relatórios e na cobrança das ações que querem, mas também construindo a política pública que querem e isso a gente tem encontrado no movimento social, nos outros espaços de ministério, nas outras pautas como que nós temos que nos relacionar.
Dentro do próprio governo federal, a secretaria tem enfrentando algum tipo de resistência?
Eu não diria que nós enfrentamos uma resistência. Eu diria que nós enfrentamos algumas dificuldades que o mundo da política nos coloca. Nós tivemos que compor uma relação de governo muito ampla para derrotar o conservadorismo, o que nós chamamos no último ano de "ódio no poder público".
E isso por um lado é muito bom, porque a gente traz várias alas de governo, várias alas ideológicas para pensar o Brasil que a gente quer. Por outro lado, isso requer muita negociação, porque as opiniões são diversas.
Então, eu acredito que o que nós encontramos no governo é um caminho ainda maior de negociação e diálogo para implementar a política pública. Porque nós estamos com um governo de composição ampla.
Mas também temos encontrado pessoas que chegaram com muita gana de fazer mudanças por conta de tudo que viveram nos últimos anos. Então, acho que é esse o cenário de conjuntura que a gente tem.
E como a gente enfrenta e como a gente sofre a cobrança, todo conjunto de governo sofre dessa vigilância conservadora. Então isso requer que a gente tenha muito cuidado para que a gente consiga entregar políticas públicas com tamanha consistência que elas não sejam tão facilmente apagadas como no passado.
Isso demanda de nós, às vezes, segurar nossa ansiedade, sabendo que vai haver etapas para a construção da política pública, que ela não vai ser tão célere quanto a gente imagina, mas com certeza ela vai ter maior empenho que nós podemos ter
A secretaria fez uma avaliação de como foi o carnaval a respeito da violência contra população LGBTQIA+?
Esse último período teve o retorno das campanhas de governo, não só dos direitos humanos e da saúde. Não havia campanha, por exemplo, de prevenção a IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis] há alguns anos, então foi o retorno dessas ações de prevenção no Carnaval.
Óbvio que isso vai trazer à tona várias denúncias que têm que nos guiar para o próximo período.
Então, a gente ainda não fez todos os cruzamentos. O Observa DH, que é uma plataforma que reúne dados da política pública, que tem que fazer cruzamento com os dados dos nossos canais de denúncia.
Mas eu posso te dizer uma percepção que eu tenho tido a partir da conversa com os entes nos estados. Por mais que a gente não tenha esses protocolos, a gente sentiu esse ano um preparo maior das ações que nós fizemos de parceria com alguns governos,
Eu tenho tido um retorno de um maior, de um melhor acolhimento da denúncia. Eu acho que isso já é uma sinalização
Como funciona o Observa DH? A plataforma esta finalizada?
O Observa DH é uma estratégia super importante para essas pautas que tratam com populações que têm maior dificuldade de acesso, por conta do preconceito, de estigma, de chegar no seu acesso à cidadania.
Por que eu digo isso? Porque eu Observa DH é um observatório do próprio governo que olha para os dados, pega o governo e diz "nós não temos informação suficiente sobre tal determinada população, essa informação ainda não é a desejada".
Apontamos para nossos parceiros de governo os caminhos a partir desse diagnóstico do Observa DH para os dados de equipamentos de saúde, de equipamentos da assistência social. Ao olhar para esses dados a gente vê onde tem a informação, como melhorá-la.
É a primeira vez que o Ministério de Direitos Humanos lançou iniciativas que todas as populações envolvidas se enxergam.
É assim com os editais que temos lançado pelo Ministério de Direitos Humanos, onde todo mundo chega e todas essas populações, sobretudo a nossa, consegue se enxergar.
Agora, nós da Secretaria especificamente temos também feito um exercício de elaboração de dados, de levantamentos de indicadores que queremos entregar para o Observa DH para fazer um diálogo amplo no campo de direitos humanos.
Então, queremos produzir dados a partir do nosso atendimento da política pública específica, mas também transformar isso numa plataforma de dados nacional que queremos entregar até a nossa conferência de 2025.
Então estamos começando essa elaboração para que a gente também produza dados sobre o atendimento específico da pauta LGBTQIA+, para aí sim mostrar a importância que a política do direito da população LGBTQIA+ que queremos construir. Ela tem uma importância, ela tem um tamanho e a partir disso a gente valoriza o trabalho que tem sido realizado na ponta.
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Edição: Thalita Pires