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Desertificação no Nordeste é soma do aquecimento global com expansão da soja no Matopiba, diz Carlos Nobre

Cientista alerta que a mudança climática já é um fato principalmente na região oeste da Bahia e pode causar êxodo

Ouça o áudio:

Em 2011, o cientista Carlos Nobre foi escolhido como presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Marcelo Camargo/Agência Brasil

A ciência brasileira constata que, pela primeira vez, um clima árido está se consolidando no país. Estudos feitos pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) trazem evidências.

A maior preocupação é a região oeste da Bahia, que está passando de um clima semi-árido para semidesértico. 

Os estudos foram confirmados por Carlos Nobre, um dos mais prestigiados cientistas brasileiros, com respaldo internacional, principalmente, por sua pesquisa a respeito das mudanças climáticas.

"A região semiárida está se expandindo, principalmente para oeste, mas um pouquinho para a leste também, chegando ao Agreste e depois até mesmo perturbando a Zona da Mata" explica em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (1).

"Isso tudo é resultado um pouco um efeito do aquecimento global e também, o desmatamento da Caatinga e o desmatamento do Cerrado".

O cientista faz referência, principalmente, à região conhecida por Matopiba, que abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Por lá a expansão da soja, em detrimento da vegetação nativa, preocupa Carlos Nobre.

"Você desmata e substitui quase tudo por soja. E a produção da soja são poucos meses durante a estação chuvosa, depois você corta tudo ali e a temperatura aumenta, diminuindo a reciclagem de água. Então o que está acontecendo são as chuvas estão diminuindo."

Carlos Nobre carrega passagens pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Organização das Nações Unidas (ONU), além de ser membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Em 2023, recebeu o título Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e em 2022 foi eleito membro da Royal Society britânica, tornando-se o segundo brasileiro a fazer parte da entidade dedicada à ciência, ao lado de Dom Pedro II

As mudanças registradas devem obrigar a população rural do Nordeste a deixar essa região "muito proximamente", alerta Nobre.

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato: Como você avaliou esta publicação do Cemaden? Podemos entender como um fato essa mudança de clima?

Carlos Nobre: Esse estudo mostra uma tendência que vem acontecendo em toda região Semiárida do Nordeste e são dois aspectos muito preocupantes.

O primeiro é um aumento da região semiárida. Normalmente se define região semiárida quando tem chuva abaixo de 800 milímetros por ano, 0,8 metros de chuva. E por muito, muito tempo aquela é uma região que não diminuía nem aumentava. 

Nos últimos 50 anos, a gente já está vendo um aumento, principalmente nos últimos 20 anos, que já aumentaram cerca de 50 mil km² a região com chuva abaixo de 800 milímetros.

E essa extensão está se dando principalmente para o lado oeste, no Piauí, Bahia, no oeste de Pernambuco, mas a maior preocupação é o nordeste do estado da Bahia. Ali está ficando muito mais seco, muito próximo de se tornar o que a gente chama um semideserto. 

O bioma local, a caatinga, é em equilíbrio com o sistema climático da região semiárida. 

Quando você baixa a chuva abaixo de 500, 400 mm por ano você entra no semideserto aí a vegetação muda totalmente. Então existe uma grande preocupação, tanto da região semi-árida aumentar muito a sua área nas próximas décadas, como também uma parte dali, principalmente o nordeste da Bahia, tornar-se uma região semideserto. 

Que impactos podemos esperar para a população? E em quanto tempo?

Importante entender por que está acontecendo. É uma interação de dois fatores. Um é o aquecimento global, o planeta mais quente, ele muda as circulações atmosféricas, muda o sistema, o regime de chuvas.

E essa mudança, em parte, também induz a região semiárida a crescer, diminuindo as chuvas nessa região como um todo. Assim a região semiárida vai se expandindo, principalmente para oeste, mas um pouquinho para a leste também, chegando no Agreste e depois até mesmo perturbando a Zona da Mata.

Isso tudo é resultado um pouco um efeito do aquecimento global e também do desmatamento da Caatinga e o desmatamento do Cerrado.

Essas regiões estão com um desmatamento muito grande, tanto na vegetação do Cerrado, quanto da Caatinga. No Cerrado já foi mais do que 50% desmatado e também a Catinga.

E, principalmente, a grande expansão do desmatamento do Cerrado na região chamada Matopiba, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, oeste da Bahia. 

Ou seja: você desmata e substitui quase tudo por soja. E a produção da soja são poucos meses durante a estação chuvosa, depois você corta tudo ali e a temperatura aumenta, diminuindo a reciclagem de água. Então o que está acontecendo são as chuvas estão diminuindo. 

Então, isso é tudo é resultado da interação entre aquecimento global e mudança do uso da Terra, que está respondendo por esse aumento da área de Caatinga, inclusive com essa região no Nordeste da Bahia, e já com um enorme risco de se tornar semideserto.

Os cenários futuros são muito graves. Se a gente tiver um cenário de altas emissões, como tem sido agora, em 2022, batendo o recorde de emissões de gás de efeito estufa, ou 2023, que ainda não saiu o número, mas os estudos indicam que será maior que em 2022, a gente vai ver a Caatinga se tornar um semideserto. 

A região de Catinga se estenderia muito, avançaria pelo Cerrado , e a Catinga que é hoje se tornaria semideserto.

E isso, lógico, tem um impacto muito grande nas populações. Nós temos dezenas de milhões de brasileiros que vivem nessa região.

A Caatinga é um lugar em que secas existiam por milhares e milhares e milhares de anos. Tanto é que lá atrás praticamente todas as populações indígenas da Caatinga eram nômades, porque como às vezes, a cada 10 ou 20 anos, acontecia uma seca muito pronunciada, não tinha produção agrícola para os indígenas.

Estavam ali, a maior parte dos anos, mas quando ficava muito seca, eles iam para oeste ali no Maranhão, na Bahia, eles iam para a Leste, na zona da Mata, lugares que tinham chuva e que pudesse ter produção agrícola e alimentos para todos. 

Mas agora essas secas estão ficando mais frequentes e até mais intensas. Então isso tem um enorme impacto em toda a economia das populações rurais, de milhões e milhões e milhões de nordestinos. 

Essa é uma situação muito crítica, mesmo. Se continuar com o aquecimento global, nesse cenário que nós não podemos admitir em hipótese nenhuma de continuar com altas emissões, a maior parte da população do Nordeste rural terá que abandonar essas áreas na escala aí de, talvez, na segunda metade desse século, mas começando muito proximamente. 

Professor, diante deste cenário que você está explicando, o que podemos esperar da Amazônia? Podemos ver uma mudança completa de cenário por lá também?

Sem dúvida. A Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta e está muito próxima de um ponto de não retorno, não é de desertificação.

A Amazônia, mesmo com o cenário de altas emissões dos gases de efeito estufa, a vegetação ali se tornaria uma savana muito degradada. É a savana tropical, a vegetação de boa parte do Brasil, chamada Cerrado. Perdendo imensa biodiversidade da Amazônia, mantendo toda a biodiversidade do Cerrado, que é a savana tropical mais biodiversa do mundo.

Isso é um enorme risco. A Amazônia está na beira desse precipício. O sul e o sudeste da Amazônia, sul do Pará, norte do estado do Mato Grosso, estão no ponto de não retorno. A estação seca já está quatro a cinco semanas mais longa desde o Atlântico até a Bolívia. Mais quente, mais seca…

A mortalidade de árvores está aumentando muito, em 50 % da Amazônia. Então, a Amazônia pode se converter nessa savana muito degradada e com isso vai perder uma quantidade gigantesca de gás carbônico, vai para toda a atmosfera.

Se isso acontecer, [...] vai atacar a maior biodiversidade do mundo, centenas de milhares de espécies vão ser extintas, então esse é um enorme reto. que a Amazônia está correndo. 

Professor, esse ano a gente começou com uma notícia positiva em relação ao combate ao desmatamento. Houve uma queda de 60 % em relação ao mesmo período do ano passado, analisando apenas o mês de janeiro. No ano passado a gente também teve alguns números positivos em relação a isso. Isso é suficiente para conter esse cenário descrito?

A maioria dos países amazônicos declarou, e o Brasil um deles, que vai zerar todo o desmatamento da Amazônia até 2030. O Brasil inclusive disse zerar todo o desmatamento em todos os biomas brasileiros. 

Isso é muito importante. E agora, a ciência mostra que o desafio e o objetivo têm que ser zerar todos os desmatamentos, não pode ficar nessa descrição, diferenciação 'não, eu vou zerar só os desmatamentos ilegais'. 

Porque, por exemplo, grande parte do Cerrado é legal desmatar até 80% da área da vegetação savana tropical.

Então, realmente... para proteger o planeta, para proteger a biodiversidade, para impedir esses pontos de não retorno, nós temos que zerar o desmatamento. 

Então se zerarmos todo o desmantelamento do Amazon até 2030, nós vamos reduzir, de fato, o risco. 

Também o Brasil lançou na COP 28 em Dubai um projeto projeto arco da restauração florestal, um gigantesco projeto de restaurar 24 milhões de hectares da Amazônia Brasileira, entre agora e 2050, sendo 6 milhões até 2030 e outros 18 milhões até 2050.

Isso é muito importante, não só zerar o desmatamento, a degradação, o fogo, mas também restaurar. Então, nesse ponto nós podemos ser, vamos dizer assim, cautelosamente, otimistas. 

Se zerarmos o desmatamento da degradação um pouco e criarmos esses gigantescos projetos de restauração florestal, é muito provável que a gente diminua o risco do que a gente chama de savanização da Amazônia. 

Mas tem um outro risco. Se o planeta continuar aquecendo e ele chegar em 2050 a 2,5 graus teremos uma situação. Planeta mais quente induz secas muito pronunciadas, muito na Amazônia, também na Caatinga. E e aí, tendo secas muito intensas e mais frequentes, na Amazônia, também faz passar do ponto de não retorno.

Então, para salvar a Amazônia e salvar o planeta, de fato, além de zerar o desmatamento, a degradação e o fogo, nós temos esse enorme desafio, que é global, de não deixar a temperatura passar de 1,5 grau [acima do período pré-industrial].

Esse é um gigantesco desafio. Como nós vimos, o ano passado, a temperatura já chegou a 1 ,49 graus acima do que era lá atrás no século 19, 1850, 1900 lógico que um pouco dessa temperatura alta foi pelo fato de termos um fenômeno no oceano pacífico equatorial quente que é o El Nino. 

É muito preocupante que os vários cenários indicam que a gente pode atingir permanentemente 1,5 graus até 2033. E enorme risco de atingir entre 2,4 e 2,6 graus até 2050. 

Então, isso traz um enorme risco para a Amazônia, mesmo que a gente zere o desmatamento e a degradação, se o planeta continuar aquecendo nessa velocidade.


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Edição: Matheus Alves de Almeida