Caso de Passo Piraju

Júri popular inocenta indígenas Guarani Kaiowá de morte de policiais em conflito territorial no MS

Dezenas de indígenas acompanharam o júri em São Paulo; 18 anos após o episódio, território ainda não foi demarcado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O julgamento ocorre 18 anos após o episódio, que envolve a luta pelo reconhecimento de Passo Piraju como território indígena tradicional - Adi Spezia / Cimi

Walmir Júnior Savala e Sandra Arevalo Savala, indígenas Guarani Kaiowá acusados de envolvimento na morte de dois policiais civis e tentativa de homicídio de um terceiro, foram inocentados por júri popular. O veredito saiu na madrugada da última quinta-feira (29), após três dias de julgamento na capital paulista. Cabe recurso.  

O episódio aconteceu em 2006 em Dourados (MS), em um conflito envolvendo a luta pelo território tradicional de Passo Piraju, sobreposto pela Fazenda Campo Belo. Em 1º de abril daquele ano, em contexto de recorrentes ataques aos Guarani Kaiowá, três policiais à paisana invadiram a área em uma Parati preta descaracterizada e atiraram contra a comunidade. O indígena Márcio Ofaié foi baleado no pé. 

Ao ver os atiradores usando bermudas e camisetas, os indígenas dizem ter pensado se tratar de jagunços de fazendeiros. Segundo eles, abordaram o carro e, neste momento, uma arma calibre 12 de um dos policiais disparou, atingindo acidentalmente uma das vítimas fatais. O confronto escalou e resultou na morte dos policiais Rodrigo Pereira Lorenzato e Ronilson Magalhães. Um terceiro, Emerson José Gadani, se feriu.  

Em seguida, cerca de 20 policiais chegaram ao local, invadindo as casas e ameaçando matar todos. A versão da polícia, não acatada pelo júri, é de que eles teriam sido alvos de uma emboscada.  

No ano anterior ao ocorrido, em 2005, a comunidade recebeu uma decisão favorável do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), para permanecer no local, em uma área restrita a 28 hectares, entre a rodovia MS 156 e o rio Dourados. Apesar de viver legalmente no território tradicional que tinham retomado em 2004, a situação era de tensão. Vinte anos depois, ainda é. 

O júri 

Composto por sete jurados civis, o julgamento foi conduzido pela Justiça Federal em São Paulo. A competência foi transferida para a capital paulista a pedido da defesa, sob o argumento de que no Mato Grosso do Sul a imparcialidade não estaria garantida.  

O julgamento se debruçou sobre as acusações de tentativa de homicídio que pesavam sobre Valmir e Sandra e, no caso dela, também duplo homicídio. O júri entendeu que Valmir não participou dos fatos e o inocentou de tudo.  

Sandra foi inocentada do assassinato dos dois policiais. Já em relação ao que se feriu, o júri interpretou que não houve nenhuma intenção de matá-lo, mas condenou Sandra por lesão corporal. Assim, a juíza Bárbara de Lima Iseppi determinou uma sentença de três anos de prisão em semiliberdade na aldeia. Ré primária, Sandra é responsável pela criação dos netos e os cuidados com os anciãos de sua família. 

As sessões foram acompanhadas por cerca de 20 indígenas que viajaram de Dourados (MS) a São Paulo (SP). “A gente deixou o serviço para acompanhar essas pessoas. Porque são inocentes. Com o resultado, a gente se sentiu melhor um pouco”, conta Epitácio Espíndola, morador de Passo Piraju: “Pelo menos alivia a alma”.  


No intervalo de uma das sessões, os indígenas que acompanharam o júri realizaram o Guaxire, canto e dança sagrada do povo Guarani Kaiowá / Adi Spezia / Cimi

Waldison Savala, de 14 anos, ouviu emocionado a decisão pela absolvição de seu pai. “No julgamento, tiveram momentos em que a promotoria estava falando e que ofendia a gente. Mas como público, sem autoridade para falar, nós tínhamos que engolir quieto”, relata. 

 “Eu fiquei com medo porque têm seis crianças pequenas em casa, com menos de 12 anos. Sem meu pai não tinha como minha mãe criar sozinha”, diz Waldison, agora aliviado.  

Em 1º de abril 2006, Valmir tinha 19 anos e era agente de saúde. Estava cuidando de um menino com subnutrição e tinha subido num morro para buscar sinal de celular para pedir que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) enviasse um carro para levá-lo para o hospital. Quando voltou para a aldeia, o confronto já tinha acontecido e a polícia estava lá.  

“Ele foi preso porque era o único que tinha celular. Mas tinha celular porque era agente de saúde. Conseguimos provar que ele tinha feito o telefonema para a Funasa”, conta Michael Mary Nolan, uma das advogadas do caso e integrante da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). 

Valmir, Sandra e Marcio Ofaié foram presos por um ano, entre 2006 e 2007. Relatam ter sofrido violência física e psicológica. Quando saiu da cadeia, Valmir prestou concurso de novo e é, até hoje, o agente de saúde da comunidade. Tem feito uma série de cursos, como de socorrista, e atualmente cursa Pedagogia na faculdade.  

 “Eles foram acusados sem merecer e conseguimos, graças a Deus, a justiça”, afirma Silvana Castelão, também de Passo Piraju. “E são tantos indígenas que morrem na mão dos policiais que se envolvem com os fazendeiros. Não foi apenas naquele momento, a comunidade sofre ameaça até hoje”, ressalta. 

O processo 

O processo de Valmir e Sandra integra um maior, que foi desmembrado. Outros quatro indígenas - Jair Fernandes, Ezequiel Valenzuela, Lindomar de Oliveira e Paulino Lopes - foram condenados pelos homicídios em um júri em 2019.  

Na ocasião, o cacique Carlito Oliveira, liderança de Passo Piraju, foi inocentado. Outro dos réus, Márcio Ofaié, foi impronunciado, ou seja, a justiça considerou que eram improcedentes as acusações contra ele.  

Dois indígenas são réus confessos. Um deles, Ezequiel, está desaparecido. Outro, Hermínio Romero, foi morto. Os três condenados restantes aguardam julgamento do recurso em liberdade, depois de terem passado seis anos presos.  

“De todos os casos de conflito no Mato Grosso do Sul, este é o primeiro em que indígenas se sentam como réus. Porque sempre são eles os que são mortos. E não acontece justiça para eles. Às vezes até o pistoleiro é punido, mas nunca o mandante. E a gente sabe muito bem quem são aqueles que querem tomar posse das terras dos povos indígenas”, comenta Maria Câmara Vieira, irmã das Servas da Santíssima Trindade e missionária do Cimi.

“No caso de Valmir e Sandra, foram injustamente processados, levados, torturados, ficaram presos sem visita durante um ano. E toda a comunidade indígena se sentia muito injustiçada por causa disso. A sensação de liberdade quando veio o veredito foi comovente”, descreve Vieira. Valdir e Sandra choraram em silêncio por um tempo antes de se levantarem.  


Ao lado da advogada indigenista Michael Nolan, Sandra Savala se emociona ao ouvir a decisão dos jurados / Adi Spezia / Cimi

Demarcação estagnada 

O tekoha (lugar onde se é, em guarani) Passo Piraju está na região de Porto Kambira e faz parte da Terra Indígena (TI) Dourados Amambaipegua III. Apesar de um grupo de trabalho da Funai ter sido criado em 2008 para fazer a identificação e delimitação da área, até agora o processo demarcatório está parado.  

“A situação hoje é tão ou mais tensa do que foi naquela época, 20 anos atrás”, avalia Michael Nolan, citando a casa de reza incendiada no último 22 de fevereiro.  

“E toda essa violência é ligada à questão de terra. Para um homem branco, terra tem um valor econômico. É algo que compro e vendo. Para um indígena, a terra faz parte da sua cosmovisão. É sagrada. Não é meu individualmente, é do meu povo. É dos meus ancestrais. É inegociável. Então enquanto houver essas duas visões de mundo que não conseguem dialogar”, analisa Nolan, “a violência vai seguir”.  

Edição: Vivian Virissimo