ENCHENTES

'A crise climática veio com os nawá, não é algo nosso', diz Huni Kuin sobre enchentes no Acre

Estado sofre cheia histórica e povos indígenas estão em estado de calamidade; são 35 aldeias atingidas

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |
Organizações indígenas tem feitos campanhas de apoio às famílias, mas tem dificuldade de acesso - Chola Manchineri/Dsei

Ainda em 2023, os povos indígenas do Brasil decretaram estado de emergência climática durante a realização do Acampamento Terra Livre, marchando até o Congresso Nacional e em vigília contra o marco temporal.

Em carta aberta a toda a sociedade, denunciaram que "a crise climática tem piorado a precarização de amplos setores da população brasileira, sobretudo daqueles que como muitos de nós [povos indígenas] já viviam empobrecidos e marginalizados pelo atual modelo econômico vigente".

Agora, os povos indígenas do Acre alertam para os impactados da crise climática. De 22 municípios do estado, 17 já estão em estado de emergência por conta da cheia dos rios desde o fim de fevereiro. Cerca de 5 mil famílias estão sem energia elétrica, além de pelo menos 20 mil fora de casa, sem previsão de melhorias concretas para os próximos dias.

O boletim de eventos extremos emitido pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Purus no dia 28 de fevereiro aponta que 35 aldeias foram afetadas com inundação, outras 23 seguem sob riscos de inundação e 97 estão fora de risco, sendo 398 famílias e cerca de 1.533 indígenas.


Povo indígena Huni Kuin vive à base da natureza e alerta para insegurança alimentar / Metsapa Huni Kuin

Entre elas estão cerca de 400 famílias indígenas de 35 aldeias. Elas possuem forte vínculo com seus territórios e retiram da natureza a própria subsistência. Neste momento, estão em estado de calamidade, como explica o jovem artista e rezador Metsapa Huni Kuin, etnia que constitui a maior população indígena do Acre e historicamente sofre com a chegada de seringueiros na região.

"Estamos sentindo os efeitos da crise climática, que é uma coisa que veio com os nawá [não indígenas], não é algo nosso. O que temos visto é que o rio Jordão está secando, os peixes também estão morrendo, além disso, tem feito um calor que nunca sentimos antes e piora com a poluição de rios, desmatamento, queimadas e até fazendas de gado bem próximas a aldeias", explica Metsapa.

Dados do DSEI apontam que as etnias atingidas são os Huni Kui, Jaminawa, Kaxarari, Kulina e Manchineri. As principais demandas de ajuda são alimentos, materiais de uso diário, móveis, além de posterior recuperação da produção de roçados, o que Metsapa comenta com tristeza.

"Na enchente tudo é tomado por uma água barrenta que faz perder muita coisa. As famílias perdem móveis que conseguiram com muita luta e perdem livros que também são importantes para a educação dentro das aldeias. As águas também lavam as roças cobertas de lama e perdemos tudo, até as galinhas e aves que criamos são levadas com a água, então ficamos sem a base da nossa alimentação".


As principais etnias atingidas pelas enchentes são Huni Kuin, Jaminawa, Kaxarari, Kulina e Manchineri / Chola Manchineri/Dsei

As lideranças informam que estão inclusive sem água potável nas aldeias, pois algumas são abastecidas por meio de cacimbas [espécie de cisterna], que estão todas inundadas pelos rios. Além disso, perderam todas as plantações, e em alguns casos, os motores que puxavam água para as residências.

Por meio da sabedoria ancestral, os Huni Kuin, assim como os demais povos indígenas, desenvolvem técnicas de bem viver com a natureza, caçando pouco, o suficiente para alimentar as famílias. Nos últimos anos, vêm sofrendo os efeitos catastróficos das enchentes e declaram receber pouca ajuda dos governos.

"Nós somos guerreiros e resistimos a muita coisa, mas é por nossa conta, porque só recebemos algumas cestas básicas do governo. Nesse momento a Defesa Civil está ajudando com cestas básicas, mas muitas comitivas de Rezo Huni Kuin também têm feito campanhas de arrecadação de doações para ajudar meu povo nesse momento difícil. Juntos somos mais fortes, por isso pedimos ajuda e todo auxílio é bem-vindo, porque no momento muitas famílias perderam tudo", finaliza Metsapa.

A Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (MATPHA), associação articuladora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) no Acre tem acompanhado a situação e também alerta para o estado de calamidade em que se encontram os povos indígenas, além do risco de insegurança alimentar.

"Hoje o Acre como um todo está em estado de calamidade nas duas regiões, pois muitas aldeias estão totalmente inundadas, com perca de produções que vão ocasionar uma insegurança alimentar que não vai passar, mesmo que o nível do rio baixe, porque as produções estão sendo perdidas, não só para comercialização para também para a subsistência dessas populações", explica Wauana Manchineri, coordenadoras de projetos da Matpha.


O amparo chega em embarcações, mas segundo os povos indígenas ainda tem sido insuficiente / Chola Manchineri/Dsei

Sobre as medidas adotadas a fim de amparar as famílias, Wauana aponta que está sendo feita uma articulação entre os órgãos governamentais, sejam da área da saúde até as de infraestrutura, como também da fundamental participação das associações de povos indígenas.

"Está sendo feito um alinhamento entre os DSEIs [Distritos Sanitários Especiais Indígenas] e as CRs [Coordenações Regionais] da Funai do Alto Turus e Alto Juruá para monitoramento conjunto e nós, enquanto organização, estamos em contato com os órgãos governamentais para que possamos tomar iniciativas para reparar os danos sofridos pelas populações".

As organizações indígenas têm feitos campanhas estratégicas de apoio às famílias, mas alertam que apesar do recebimento de alimentos, muitos deles não estão chegando até as famílias, que estão completamente isoladas por causa das enchentes.

"Precisamos de uma ajuda emergencial porque muitas comunidades infelizmente ainda não estão sendo atendidas, porque falta material e com as enchentes está impossível trafegar nas estradas. Hoje precisamos não só de cestas básicas, mas de possibilidade de levar esses alimentos para as comunidades isoladas e o governo precisa agir rápido", explica Wauana.

Inicialmente, a organização divulgou uma campanha em defesa das comunidades indígenas de Assis Brasil, que agora se amplia para toda a região, mas alerta para a necessidade de um planejamento duradouro, com foco não apenas na reparação, mas principalmente na prevenção.

"O governo do estado está completamente despreparado para essas emergências climáticas, pois todos os anos ocorrem essas enchentes e as famílias perdem suas produções e suas casas. Precisa ser feito um plano para que essas comunidades replantem suas produções, reconstruam suas casas e que o estado tenha medidas que não sejam só de reparos, mas para prevenir essas situações".


As imagens de alegrias em outros períodos contrastam com as alagações presenciadas hoje / Metsapa Huni Kuin

A Matpha informa que está construindo um documento que será enviado à Coiab, a fim de que seja protocolado junto aos órgãos responsáveis, buscando o melhor atendimento às famílias, além da criação de um portfólio para que parceiros possam desenvolver projetos de apoio aos povos indígenas voltados ao replantio e suporte a essas famílias a médio e longo prazo, considerando especialmente a insegurança alimentar.

Entre as ações de saúde adotadas estão a vigilância nos territórios, o monitoramento de doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado e síndrome gripais, bem como demais doenças de notificações compulsórias, além da entrega de orientações ao uso de água sanitária e a entrega de filtros de barro e baldes.

Edição: Thalita Pires