No Livro dos abraços (1992), Eduardo Galeano escreveu sobre as graves divisões que afligem o mundo
Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
No dia 20 de fevereiro, a embaixadora dos Estados Unidos na Organização das Nações Unidas (ONU), Linda Thomas-Greenfield, cumpriu a terrível tarefa de vetar a resolução da Argélia que pedia um cessar-fogo em Gaza. Amar Bendjama, o embaixador da Argélia na ONU, disse que a resolução apresentada foi elaborada a partir de conversas entre os 15 membros do Conselho de Segurança da ONU. Mesmo assim, foi solicitado a ele que adiasse a resolução, mas seu país se recusou. “O silêncio não é uma opção viável”, respondeu. “Agora é a hora da ação e a hora da verdade”. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) em sua decisão provisória de 26 de janeiro, sugeriu ser “plausível” que as ações de Israel em Gaza configurem genocídio; nesse momento, a Argélia prometeu tomar medidas imediatas por meio do Conselho de Segurança da ONU.
Desde 7 de outubro, Israel matou quase 30 mil palestinos em Gaza, mais de 13 mil deles crianças. Desde a decisão da CIJ em 26 de janeiro para interromper o genocídio, Israel matou mais de 3 mil palestinos. Depois de meses fugindo de uma suposta zona segura para outra, que Israel bombardeia em seguida, mais de 1,5 milhão de palestinos – mais da metade da população de Gaza – está agora presa em Rafah, o ponto mais ao sul da Faixa de Gaza e a região mais densamente povoada do mundo. Rafah, que tinha uma população de 275 mil pessoas antes de 7 de outubro, agora está sendo bombardeada por Israel.
Apesar dessa realidade sombria, a embaixadora Thomas-Greenfield disse que os EUA não poderiam apoiar a resolução de cessar-fogo porque esta não condenava o Hamas e porque supostamente prejudicaria as negociações em andamento para a libertação dos reféns israelenses. O embaixador da China na ONU, Zhang Jun, discordou, ressaltando que o veto “em nada difere de dar sinal verde para o massacre contínuo”. Somente “apagando o fogo da guerra em Gaza”, disse ele, “poderemos evitar que o fogo do inferno consuma toda a região”.
De fato, a declaração de Thomas-Greenfield no Conselho de Segurança da ONU veio junto com a tentativa de seu governo de fornecer 14 bilhões de dólares em ajuda militar a Israel. Desde 1948, quando Israel foi criado, os Estados Unidos forneceram mais de 300 bilhões de dólares em ajuda, incluindo um desembolso anual de 4 bilhões em ajuda militar (e as dezenas de bilhões em andamento desde 7 de outubro de 2023). Quando o presidente dos EUA, Joe Biden, conversou com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, em 11 de fevereiro, em vez de criticar o genocídio, ele reafirmou o “objetivo comum de ver o Hamas derrotado e de garantir a segurança de longo prazo para Israel e seu povo”. O veto de Thomas-Greenfield não surgiu do nada.
O veto foi usado no Conselho de Segurança da ONU quase 300 vezes. Desde 1970, os EUA têm usado esse poder mais do que qualquer um dos outros membros permanentes (China, França, Rússia e Reino Unido). Muitos dos vetos dos EUA foram, primeiro, para defender o regime de apartheid na África do Sul, que começou no ano em que Israel foi fundado, e depois para defender Israel contra qualquer crítica. Por exemplo, 27 dos 33 vetos que os EUA exerceram desde 1988 foram em defesa das ações de Israel contra os palestinos. Desde 7 de outubro, os EUA vetaram três resoluções na ONU para obrigar Israel a interromper seu bombardeio genocida (18 de outubro, 8 de dezembro e 20 de fevereiro).
Apesar de seu uso recorrente pelos EUA, a palavra “veto” não aparece na Carta da ONU (1945). Entretanto, o Artigo 27 (3) da Carta diz que as votações no Conselho de Segurança “devem ser feitas por um voto afirmativo de nove membros, incluindo os votos concomitantes dos membros permanentes”. A ideia do “voto concorrente” é interpretada como o “direito de veto”. Durante décadas, a maioria dos países membros da ONU insistiu que o Conselho de Segurança da ONU não é democrático e que o poder de veto o torna ainda menos confiável. Nenhum país africano ou latino-americano têm assentos permanentes no conselho, e os país com a maior população do mundo – a Índia – também não tem esse privilégio. Os P5 (Permanent Five, como são chamados) não apenas dominaram o Conselho de Segurança, mas também enfraqueceram a importância da Assembleia Geral da ONU, cujas próprias resoluções não têm poder de aplicação.
Em 2005, a ONU realizou uma Cúpula Mundial para avaliar as ameaças de alto nível à ordem mundial, na qual a então vice-presidente da Costa Rica, Lineth Saborio Chaverri, disse que o “direito de veto deveria ser eliminado em questões de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e violações maciças dos direitos humanos”. Após essa cúpula, a Costa Rica juntou-se à Jordânia, Liechtenstein, Cingapura e Suíça para criar o Small Five (S5) e defender a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Eles colocaram uma declaração na Assembleia Geral que especificava que “nenhum membro permanente deveria exercer um veto no sentido do Artigo 27, parágrafo 3, da Carta, no caso de genocídio, crimes contra a humanidade e graves violações do direito internacional humanitário”. Mas isso não teve nenhum impacto. Após a dissolução do S5 em 2012, 27 Estados se uniram para criar o grupo Accountability, Coherence, and Transparency (ACT) [Responsabilidade, Coerência e Transparência], principalmente para reformar o “direito de veto”. Em 2015, o grupo ACT distribuiu um código de conduta especificamente sobre a ação da ONU contra violações graves do direito humanitário. Até 2022, 123 países haviam assinado esse código, embora os três países que usaram o veto mais energicamente nos últimos anos (China, Rússia e EUA) não o tenham feito. Com o aumento das tensões que os Estados Unidos impuseram à China e à Rússia, é improvável que esses dois países – agora ameaçados de ataque pelos Estados Unidos – aceitem a dissolução do veto.
A Carta da ONU, o tratado mais importante do planeta, é uma tentativa de acabar com a guerra e garantir que toda vida humana seja valorizada. E, no entanto, nosso mundo está fragmentado por uma divisão internacional da humanidade, segundo a qual a vida de algumas pessoas vale muito mais que a vida de outras. Essa divisão é uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e do instinto básico compartilhado por igualdade social. A proteção das crianças na Palestina, por exemplo, é tratada com muito menos urgência do que a proteção das crianças na Ucrânia (como a correspondente da NBC News em Londres, Kelly Cobiella disse, os ucranianos não são refugiados de qualquer lugar: para ser franca… Eles são cristãos; são brancos”). Essa divisão internacional da humanidade se infiltra na consciência pública geração após geração.
No Livro dos abraços (1992), nosso amigo Eduardo Galeano escreveu um pequeno fragmento sobre as graves divisões que afligem nosso mundo e cravam uma estaca fria de ferro no coração de nosso sentido de humanidade. Esse fragmento é chamado de “Os ninguéns”:
As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
Cordialmente,
Vijay.
* Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo