Análise

'A mídia comercial brasileira opta por linha sensacionalista e racista', diz pesquisadora

Iara Moura comentou sobre os riscos da ascensão do 'jornalismo declaratório' e sobre o papel da comunicação popular

Brasil de Fato | Rio de Janeiro |
A mídia brasileira vem apresentando uma cobertura favorável a Israel - Lucas Martins (@lucasport01)

Nos últimos dias, mais do que os milhares de mortos – incluindo civis, mulheres e crianças – no conflito em Gaza, as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre os ataques de Israel ao povo palestino ocuparam as manchetes e noticiários de veículos da imprensa comercial brasileira.

Em visita à Etiópia, durante a reunião da cúpula da União Africana, Lula expressou preocupação com a crise humanitária no Oriente Médio e cobrou dos países ricos um posicionamento mais ativo pelo cessar-fogo, além de mais ajuda à Gaza.

Na ocasião, o chefe do Executivo brasileiro afirmou que o país condena as ações do Hamas – grupo islâmico palestino –, mas que também não pode deixar de condenar as ações de Israel, classificando-as como “genocídio” do povo palestino e comparando a situação na região ao Holocausto, quando judeus foram mortos e perseguidos pelos nazistas.

Para entender melhor a reação da imprensa brasileira às falas do presidente, assim como a postura adotada por diversos veículos comerciais em relação à cobertura do conflito em Gaza, a Pulsar Brasil conversou com a jornalista, pesquisadora e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Iara Moura.

Além de analisar as opções editorais da mídia brasileira, ela comentou sobre os riscos da ascensão do chamado “jornalismo declaratório” e sobre o papel da comunicação popular e contra-hegemônica diante de cenários de crise humanitária.

Confira a entrevista completa a seguir:

Pulsar: Como você avalia a cobertura da mídia comercial brasileira sobre o conflito em Gaza, sobretudo nos últimos dias, após as recentes declarações do presidente Lula contra a postura do governo de Israel? Por que as declarações do presidente geraram tamanha polêmica por aqui?

Iara: A gente, do Intervozes, tem avaliado que a cobertura da mídia ocidental, e especificamente a brasileira, sobre o que está acontecendo em Gaza é uma cobertura muito pouco aprofundada. Aliás, a mídia comercial brasileira tem optado por uma linha editorial que é sensacionalista, pouco aprofundada, maniqueísta e racista.

Uma cobertura que reforça estereótipos, que liga a população Palestina ao “terrorismo” e que reduz o processo de genocídio a um processo de defesa do Estado de Israel, como se fosse uma defesa legítima e proporcional das fronteiras. A gente vê que é uma cobertura que não se aprofunda no histórico de violações que o Estado de Israel impunha à população palestina. Afinal, não é de hoje. Essa era uma bomba prestes a explodir e que já foi classificada pela Anistia Internacional e por organismos internacionais como um estado de apartheid.

Hoje Gaza alcançou a triste marca de 10 mil mortes civis em apenas um mês de ofensiva. E quando a gente vê a opção da mídia brasileira de, na última semana, desviar o foco da morte de civis da população palestina e voltar toda a sua atenção à crítica do posicionamento do presidente Lula, a gente comprova essa análise de que não há compromisso com o aprofundamento da compreensão sobre esse conflito.

Não há compromisso em resgatar e difundir as raízes históricas, políticas e econômicas desse cenário. Não há o compromisso de construir uma narrativa aprofundada sobre a situação da questão palestina atualmente e sobre como ela implica em um desrespeito a uma questão humanitária global.

Quando a mídia faz essa opção – os canais de TV comercial, os noticiários como o Jornal Nacional, Jornal da Record e Estadão, para citar alguns exemplos – de abrir enorme espaço para fontes que criticam o posicionamento do presidente Lula pelo cessar-fogo, a gente vê que é uma opção que não coloca a informação e a vida em primeiro lugar.

Eu fico me perguntando, inclusive, quais são os critérios de noticiabilidade nesses casos. Talvez diga muito mais respeito a posicionamentos políticos de crítica ao governo Lula e ao interesse em captar cliques do que ao interesse jornalístico e da ética jornalística propriamente.

Iara Moura é coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social (Foto: arquivo pessoal)

Como você analisa a relação entre as mídias tradicionais e as redes sociais nesse caso, considerando, especialmente, o modo como o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tem utilizado perfis oficiais do governo?

A gente tem visto também se repetir na cobertura de conflitos e guerras internacionais uma tendência do que a gente chama de “jornalismo declaratório”. Um jornalismo ancorado em declarações oficiais, inclusive nas redes sociais, e muitas vezes pautado pela velocidade das redes sociais. Um jornalismo que não se permite o aprofundamento, que não busca o contraditório. Que se restringe a repercutir narrativas de líderes de Estado e representantes de governos pelas redes sociais.

Essa não é uma característica só da cobertura do que está acontecendo em Gaza, mas é uma tendência que a gente tem observado no jornalismo e que tem a ver com diversos fatores, como, por exemplo, a precarização do trabalho jornalístico e a diminuição dos postos de trabalho. Mas também é uma linha editorial que prioriza a velocidade, que prioriza o “empacotamento” de fatos para produzir cliques e audiência sem a preocupação com a qualidade dessa informação.

Essa questão da utilização das redes sociais por chefes de Estado e porta-vozes de governos como a principal via de produção de informação acaba dando a eles um poder de determinar qual narrativa vai prevalecer.

É importante a gente ficar atento e compreender – a imprensa, os profissionais de comunicação – que o jornalismo declaratório não basta. Porque senão a gente vira correia de transmissão dessas narrativas oficiosas ou oficiais.

O que fazer, então, frente a este cenário? Qual o papel de comunicadores, comunicadoras e mídias contra-hegemônicas – em especial as que atuam no Brasil – em um contexto como este?

As mídias contra-hegemônicas e populares se tornam fundamentais quando a gente está frente a uma situação de crise humanitária como essa do genocídio do povo palestino. Sobretudo quando pensamos a partir do contexto brasileiro, em que a gente tem uma concentração midiática muito grande e que não avançou rumo a um cenário de comunicação aberta à diversidade de ideias, à pluralidade e com uma regulação participativa e democrática. São nesses momentos de aguçada crise que a gente abre os olhos para a importância vital dos meios populares comunitários e contra-hegemônicos.

Assim como a gente assistiu na cobertura da Covid-19, são os veículos de comunicação comunitários e populares – que não têm o lucro como base de sua linha editorial – que mantêm o compromisso ético e político com a difusão de informação de qualidade.

São nesses momentos que a gente vê a importância vital deles, que, apesar dos serviços prestados, seguem tão carentes de políticas públicas próprias, de financiamento, de garantia de sustentabilidade e de sua independência e autonomia.

Edição: Jaqueline Deister