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'A mulher não tinha nem documento no bolso, só os homens', conta a quebradeira Maria Querobina

A militante e presidenta de sindicato no sul do Maranhão recorda como enfrenta o latifúndio há mais de 50 anos

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |
Aos 78 anos, Querobina ainda se dedica à mobilização social em Imperatriz e região - Mariana Castro

Bisneta de indígena "pegada no laço", Maria Querobina é uma histórica quebradeira de coco babaçu do sul do Maranhão; militante da luta pela terra, pela emancipação das mulheres do campo e da mobilização social e sindical na região.

Querobina, como é mais conhecida, conta que vem de uma mistura que leva ainda negro, caboclo e branco. Nascida em setembro de 1945 na comunidade de Olho D’água do Tolentino, hoje Santo Antônio dos Lopes, não teve oportunidade de estudar naquele período, então ajudava a mãe e as outras mulheres da família nas atividades de casa, na quebra do coco babaçu e também na renda de redes, pois eram produtores de algodão.

"Igrejeira e rezadeira", se engajou nas lutas sociais a partir da igreja católica, quando padres iam até as comunidades e designavam pessoas para serem dirigentes. Depois, deram origem às chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que cumpriam importante papel de organização e mobilização social em defesa dos territórios.

Aos 78 anos, segue aguerrida, com fala firme e em bom som, com a serenidade e experiência de quem já enfrenta o latifúndio há mais de 50 anos, de quem abriu portas para as mulheres ao ocupar o cargo de primeira presidenta do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Imperatriz (STTR) e, ao lado do amigo e companheiro de lutas Manoel da Conceição, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única de Trabalhadores (CUT), participou ativamente da primeira ocupação de terra do Maranhão, hoje chamada Vila Conceição.

Quem é a Maria Querobina e quando ela se inseriu nas lutas sociais?

Sou maranhense, mãe solteira. Criei quatro filhas, três netas e hoje sou tataravó. Minha família veio para um povoado próximo de Cidelândia [Maranhão] no começo dos anos 70, com a chegada do Centru [Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural], com o Manoel da Conceição, e naquele tempo começamos uma discussão sobre sindicatos, o que era, para que servia.

Na verdade, estou há mais de 50 anos nas lutas do movimento social. Eu comecei na igreja, mas um pouco depois avançamos, quando surgiram as comunidades de base, onde tivemos muitas novas descobertas. Foi lá que a gente compreendeu que a mulher não votava e nem era votada, não tinha nem documento no bolso, só os homens. A mulher não podia sair desacompanhada, tinha sempre que andar acompanhada. E fiquei curiosa das razões.

Como era a participação das mulheres no movimento sindical naquele período?

Começamos a ouvir falar, já mais de dez anos depois das comunidades de base, de um tal de movimento sindical. Naquela época não existia o nome trabalhadora rural, todo nome era só trabalhador. Mulher era dependente e tinha até uma carteirinha de dependente, mas não podia se associar.

Com o Manoel da Conceição, alguns companheiros e as companheiras, vimos a necessidade de levantar uma bandeira para as mulheres se associarem no sindicato, que elas tinham até dupla jornada de trabalho, na lida das roças e na casa. Então por que ela não aposenta? Porque ela só tem uma pensão quando fica viúva, de dependente? Isso era coisa do cão e nós começamos essa briga de reforçar que a mulher é trabalhadora e tem que ser valorizada.

Uns trinta anos depois que cheguei nessa região de Imperatriz, fomos avançando mais ainda e ouvimos falar também de entidade não governamental, como a Cáritas, [com] que participei de muitas conversas. O cenário era outro totalmente diferente de hoje. A gente fazia roça, tudo frutificava nas nossas terras, a gente plantava de tudo em paz.

A gente começou as associações de mulheres, a participar das discussões e da luta pela terra, a levantar mais ideias. Nós começamos a sair pelas comunidades para conversar. Fizemos até um abaixo-assinado para a nova Constituição e elegemos uma comissão de pessoas para descobrir onde a gente ia se aboletar, onde a gente ia fazer a primeira ocupação de terra da região. Vimos a fazenda Itacira I e II, que tinha o apelido de criminosa. Nós já achamos aqui e lutamos para tirar do imaginário das pessoas. O nome aqui hoje é Vila Conceição, em homenagem ao Manoel da Conceição.

E com a terra ocupada, qual era a realidade?

Ah, naquele tempo foi fartura. Nós tínhamos de tudo na roça. Era produtor de algodão, era quebradeira de coco babaçu. Uma renda muito forte naquela época era arroz, mandioca, farinha e tapioca. A gente não tinha muito dinheiro, mas a mesa era sempre farta.

Hoje nós não conseguimos produzir nada, nem que tenha um pedaço de terra, porque a poluição que está vindo dos projetos da monocultura, de eucalipto, de soja, grande expansão de capim, o capim de gado, acaba com a nossa produção. A goiaba mesmo... Hoje nem amadurece fruta nenhuma. Ela já fica podre antes e descobrimos com técnicos que é por causa da poluição.

Quando o eucalipto chegou aqui na nossa região era colocado de avião, uma tal de capina química, hoje é colocado até de drone, e como as áreas de eucalipto e soja ficam muito perto das nossas casas, matam tudo o que tem nos nossos terreiros. Tem gente com dor de cabeça e não sabe o que é, o povo hoje quase todo tem catarata e Imperatriz virou um celeiro de venda de óculos e consulta de vista, está um caos e é por conta da poluição, dos venenos jogados em cima da gente.

Mesmo 50 anos depois, a senhora segue mobilizando as pessoas. Qual o sonho para hoje?

Hoje o movimento sindical foi capado, é uma palavra meio doida, mas é verdade. As lideranças estão sendo há muito tempo sendo cooptadas. A gente tinha muita luta junto com os agricultores familiares e até os políticos começaram a levar todos para gabinetes, para cargos em outros lugares. A nossa luta foi acabando.

As mulheres mesmo não querem mais ir para as coordenações sindicais. Elas preferem cuidar da roça em casa. Nós precisamos resgatar as lutas, porque nós estamos falidos e sem saúde. Eu mesma, moro em uma comunidade com mais de mil moradores e não tem nem mesmo um técnico de saúde.  

O nosso sonho, que não é só meu, é que a gente volte a ser uma classe, que não seja professor, que não seja estudante, que não seja funcionário público, que não trabalhador rural, que não seja com terra ou sem terra, mas que a gente compreenda que é uma classe que tem necessidade de tudo. Vamos juntar, vamos dar o melhor que já conseguimos dar outro dia.

Edição: Matheus Alves de Almeida