Uma associação de proprietários rurais vem tentando impedir que os Enawenê-Nawê, indígenas de recente contato que vivem no Mato Grosso (MT), realizem um ritual anual que envolve a construção de pequenas barragens artesanais em rios.
A Associação dos Proprietários Rurais do Rio Preto (APRRP), de Juína (MT), cobrou que os indígenas apresentem licenças ambientais para execução da sua manifestação cultural. O ritual, chamado Yaõkwa, tem como objetivo capturar peixes que subiram para desovar nas cabeceiras e estão voltando da piracema.
Em atuação extrajudicial feita no dia 20 de fevereiro, a Defensoria Pública da União (DPU) recomendou que a associação evite dificultar a prática dos Enawenê-Nawê. O ritual é a principal cerimônia do calendário desse povo, com atividades que chegam a durar cerca de sete meses. Desde 2010, a prática é considerada um patrimônio cultural do Brasil, registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
"A importância dessa recomendação se dá pela própria existência dos Enawenê-Nawê enquanto povo, pois eles nascem e vivem pelos seus rituais, para manter contato com o mundo espiritual. Negar que eles possam pescar seus peixes, que já faz parte do ritual, e realizar o Yaõkwa, considerado um patrimônio cultural, é negar a própria existência do povo originário", explica o defensor público federal Raphael Soares.
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A DPU recomendou, com um prazo de retorno em 15 dias, que a associação se abstenha de exigir dos Enawenê-Nawê autorização estatal para realização do ritual Yaõkwa e de intervir na construção da barragem artesanal, considerando a tentativa uma violação aos direitos humanos.
"É uma forma de inibir uma prática violadora de direitos humanos, do próprio modo de existência dos Enawenê-Nawê. E a não realização do ritual, da forma como a espiritualidade deles determina, pode acarretar até mesmo em punição dentro da cosmologia deles. Impedir que eles façam o ritual é uma forma de domínio", complementa Soares.
A DPU ainda não recebeu resposta da APRRP, com a qual também não conseguimos contato por meio de telefones ligados ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Entretanto, a reportagem recebeu informações de que os indígenas já iniciaram a construção da barragem para realizar o ritual anual.
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Em relatório do Iphan, a historiadora e à época presidente do órgão, Kátia Bogéa, declara que "o reconhecimento do ritual Yaõkwa como Patrimônio Cultural do Brasil é a demonstração do respeito à cosmologia dos Enawenê Nawê e ao seu modo de viver. Sua ampla divulgação e promoção pretende apresentar para a sociedade em geral a importância da preservação ambiental e cultural para a manutenção da rica diversidade cultural de nossa nação".
O povo Enawenê-Nawê e o ritual Yaõkwa
Os Enawenê-Nawê são um povo de recente contato que vivem na Terra Indígena (TI) do Noroeste do estado do Mato Grosso, próxima aos municípios de Brasnorte, Juína, Comodoro e Sapezal.
O território está localizado em uma área de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, habitado por 1.023 indígenas Enawenê-Nawê de acordo com Censo de 2022 do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE).
O ritual Yaokwa tem início em janeiro, com a colheita da mandioca e a coleta das matérias-primas, como casca de árvore e cipó, para a construção do Mafa – corpo central das armadilhas de pesca que deve ser acoplado às barragens a serem construídas nos rios.
A partir de oferendas de alimentos, cantos e danças, o ritual Yaõkwa tem continuidade com a construção de barragens nos igarapés, para darem início à maior pesca coletiva do ano. No final da pesca, as barragens são destruídas, para permitir que os peixes possam voltar a subir para a desova. Todo o processo de captura envolve modelos próprios da arquitetura tradicional dos indígenas.
Em reunião realizada ainda em agosto 2008, os Enawenê-Nawê denunciaram que enfrentavam embates que colocavam em risco a prática do ritual. Eles apresentaram a diversos órgãos regionais e federais recomendações com o objetivo de salvaguardar a manifestação cultural.
Entre as sugestões estavam o reconhecimento e a declaração da importância do rio Preto para a prática do ritual Yaõkwa e a instalação de um processo administrativo junto ao Iphan para reconhecimento da bacia hidrográfica do Juruena como corredor ecológico-cultural. A iniciativa culminou, em 2010, com o registro de patrimônio histórico e cultural do ritual.
Edição: Thalita Pires