Moradores do quilombo de Providência, município de Salvaterra, no arquipélago do Marajó (PA), denunciam ter sido vítimas de despejo irregular de agrotóxicos. A origem do veneno foi uma plantação de arroz que há dois anos está sobreposta à área de ocupação tradicional.
A situação é acompanhada pela Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, a Malungu, pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e pela organização Terra de Direitos, que presta auxílio jurídico aos quilombolas.
Segundo os moradores e as organizações que acompanham o caso, o quilombo de Providência foi invadido em 2022 por uma plantação de arroz pertencente a Joabe Dauzacker Marques, que já foi alvo de uma ação do Ministério Público Federal (MPF).
Além da sobreposição do arrozal à área de ocupação tradicional, moradores afirmam enfrentar retaliações e ameaças. Os quilombolas estariam ainda sendo impedidos de criar animais. Os porcos, segundo a Malungu, são "sistematicamente eliminados" pelo invasor.
Representantes do quilombo de Providência já entraram na Justiça com um pedido de reintegração de posse e de retirada do fazendeiro do território. As solicitações estão em um processo judicial em curso na Vara Agrária de Castanhal (TJ-PA).
O caso põe em evidência os efeitos da rápida conversão de áreas quilombolas no Marajó (PA) em monoculturas de arroz, com apoio do poder político local, em nome do desenvolvimento econômico. O cenário é agravado pela falta de titulação dos territórios quilombolas, que ficam vulneráveis aos registros fundiários feitos pelos invasores.
Liderança foi envenenada e hospitalizada
O despejo irregular de agrotóxicos ocorreu na última segunda-feira (4). Segundo o Malungu, a pulverização provocou a contaminação de "diversos moradores", que relataram tosse, ânsia de vômito e tontura. Intoxicada, uma importante liderança comunitária precisou ser hospitalizada.
"Foi um desespero, um cheiro insuportável. Até os meninos que estavam jogando bola precisaram deixar o campo. Mesmo sendo da linha de frente, precisei tomar coragem e ir lá pedir para pararem de jogar. Todos estavam passando mal aqui", relatou outra liderança do quilombo de Providência.
Por segurança, os relatos foram divulgados sem a identificação dos autores pela Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, a Malungu.
A vigilância em Saúde da prefeitura de Salvaterra (PA) foi até o quilombo de Providência. Em nota, declarou que oito pessoas "tiveram mal estar acompanhado de dor de cabeça, relacionado ao que eles identificaram como sendo cheiro de veneno que viria da fazenda em questão".
A gestão municipal faz uma investigação para verificar se os sintomas relatados pelas vítimas foram provocados por "algum agente tóxico". A vigilância em saúde pontuou que atua na "prevenção para que outros casos não venham a acontecer".
O dono da fazenda, Joabe Marques, disse ao Brasil de Fato que está "sofrendo perseguição" e chamou a acusação de "narrativa". "Fizemos apenas uma aplicação de defensivo em uma cultura de arroz com produtos autorizados e registrados", afirmou à reportagem.
Prefeitura incentivou arrozais considerados irregulares pelo MPF
Os arrozais sobrepostos a comunidades quilombolas do Marajó (PA) entraram no radar das autoridades em 2020. Com incentivo da prefeitura de Salvaterra (PA), a rizicultura se expandiu sobre as áreas tradicionais, sem consulta à população ou licenciamento adequado.
Por isso, os ministérios públicos Federal e do Pará (MPF e MPPA) protocolaram em 2020 uma ação civil pública contra o arrozeiro Joabe Dauzacker Marques e o prefeito de Salvaterra (PA), pedindo o fim do plantio de arroz em áreas quilombolas, mas os pedidos não foram acatados pela Justiça.
O prefeito, Valentim Lucas de Oliveira (PSDB), doou um terreno para a instalação de uma planta de beneficiamento do arroz à Joabe Dauzacker. Para o MPF e o MPPA, a lei municipal que autorizou a doação foi inconstitucional.
"A gente pede às autoridades, pelo amor de Deus, parem de ficar do lado desse homem [Joabe] e nos ajudem. A gente não tem mais para onde correr", pediu uma quilombola, no relato divulgado pela Malungu.
A assessora jurídica popular da organização Terra de Direitos, Suzany Brasil, lembrou que a luta pela posse do quilombo de Providência é de longa data.
"Há ações judiciais em curso indicando a necessidade de retirada do fazendeiro, cessação de ameaças e violências e garantia dos direitos territoriais e à vida da comunidade", afirmou Suzany.
Registro de fazendas está sobreposto a quilombo não titulado
Ainda em 2020, MPF e MPPA pediram em caráter de urgência o cancelamento de seis registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR) sobrepostos ao quilombo de Rosário e Mangabal, próximo ao quilombo de Providência, onde houve a contaminação por agrotóxicos nesta semana.
Para o MPF e o MPPA, o licenciamento ambiental que possibilitou o plantio de arroz nas fazendas não considerou os impactos aos quilombolas, como o desmatamento e o despejo de agrotóxicos, nem exigiu consulta prévia, livre e informada
Os órgãos também apontaram omissão da União e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pela falta de regularização fundiária nos quilombos do Marajó e solicitaram que os territórios tradicionais fossem titulados.
Em 2022, todos os pedidos do MPF e do MPPA foram negados pela 9ª Vara Federal Ambiental e Agrária, em decisão proferida pelo juiz José Airton de Aguiar Portela.
O proprietário Joabe Marques respondeu que trabalha na legalidade e que suas fazendas "são todas tituladas, georreferenciadas, reconhecidas pelas comunidades vizinhas e possuem licença para realizar o plantio". Afirmou ainda que atua com sustentabilidade ambiental, "preservando mais de 70% de suas áreas".
Monocultura do arroz devasta diversidade quilombola no Marajó
O quilombo de Providência é uma das 17 terras quilombolas do município de Salvaterra (PA) que já pediram o título definitivo junto ao Incra, mas sem resolução. O Pará tem mais de 600 quilombos autodeclarados - só 64 são titulados.
Em oposição à monocultura do arroz, Providência tem roças com seis tipos de mandioca, dois tipos de macaxeira, além de jerimum, maxixe e melancia - tudo sem agrotóxicos e com técnicas de produção coletivas e ancestrais.
A diversidade de cultivos foi descrita pela dona Dica e sua filha Leida, moradores de Providência, ao professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Flávio Bezerra Barros, que divulgou o relato em um artigo no Brasil de Fato em 2023.
"O cultivo de arroz na Ilha do Marajó tem proporcionado conflitos sociais de distintas magnitudes, medos, destruição da natureza, contaminações, estando mais alinhado com a morte do que com a vida. É preciso agir, muito rapidamente", escreveu o professor da UFPA.
Lideranças quilombolas de Providência narraram ao professor que grandes fazendas foram adquiridas por produtores que vieram da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde a demarcação contínua resultou na retirada dos rizicultores há 20 anos.
Com o arroz, chegaram as cercas, os seguranças privados e os tratores. Os quilombolas foram apartadas de áreas usadas tradicionalmente para caça, pesca e agricultura familiar.
"A comunidade de Providência conversou também acerca do crescente aparecimento de cobras na região, e associam esse problema aos desmatamentos", escreveu o professor da UFPA.
Edição: Matheus Alves de Almeida