Nesta semana, teve destaque o anúncio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sobre o Projeto de Lei Complementar (PLC) que trata da vida profissional dos motoristas de aplicativos. A proposta foi enviada ao Congresso Nacional e estabelece uma “nova forma de relação de trabalho intermediado por empresas que operam aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos de quatro rodas”.
Ou seja, ele abrange os quase 800 mil motoristas que prestam serviços via aplicativos hoje no Brasil hoje. Durante a cerimônia oficial de apresentação do PLC, Lula declarou: “os trabalhadores vão prestar serviço, vão ser respeitados por isso...”.
Segundo o governo, o projeto é o resultado de um Grupo de Trabalho Tripartite com representantes dos trabalhadores, empresas de plataforma e governo, instituído em 1º de maio de 2023. Cada segmento teve direito a 15 indicações, o que permitia prever que, se governo e trabalhadores jogassem juntos, por meio dos seus 30 representantes, o resultado seria uma proposta pendendo significativamente para o lado dos trabalhadores. Foi isso que aconteceu?
Há duas formas de julgar o significado real deste PLC para os motoristas de aplicativos.
A primeira delas é a de achar que não havia nenhuma regulamentação profissional destes trabalhadores e agora vai passar a existir. A questão é: o que vai passar a existir é bom para os trabalhadores ou apenas dá segurança jurídica, legaliza, o que as empresas de aplicativos já vêm fazendo? Não é novidade para ninguém que, no mundo todo, há uma enorme pressão social contra a situação insustentável de ilegal "superexploração" praticada por essas grandes empresas multinacionais.
A segunda maneira de julgamento é tomar como ponto de partida o que reivindicavam os representantes dos trabalhadores no Grupo Tripartite.
De acordo com Nota Técnica do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) de 5 de março último, indicada no site da CUT, as reivindicações dos trabalhadores eram as seguintes:
1. Regulação tributária e trabalhista conforme setor de atividade ao qual a empresa está vinculada, ou seja, não se trata de empresa de tecnologia, mas de uma empresa que faz uso de uma tecnologia específica para organizar o seu negócio.
2. Prevalência dos acordos e convenções coletivas, bem como das regulações próprias, leis municipais e estaduais, que estabeleçam condições mais vantajosas ao(à) trabalhador(a).
3. Direitos sindicais garantidos conforme previsto nos artigos 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 e dos demais dispositivos regulatórios, particularmente, os previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cabendo aos sindicatos laborais ter acesso às informações sobre o algoritmo, no que diz respeito às relações de trabalho que estabelecem com os(as) trabalhadores(as), assegurando total transparência em suas atividades.
4. Negociação coletiva como caminho mais adequado para a regulação dos desdobramentos do que já existe em lei para o trabalho em empresas-plataforma.
5. Flexibilidade do(a) trabalhador(a) para poder definir seus horários de trabalho e descanso, dentro do limite diário e semanal da jornada de trabalho, com direito à desconexão e Descanso Semanal Remunerado (DSR).
6. Vínculo de trabalho definido conforme legislação atual, ou seja, vínculo indeterminado para trabalhadores(as) habituais e [vínculo] autônomo para trabalhadores eventuais, conforme disposto na CLT e demais regras definidas na mesa, utilizados os registros do CBO 5191-10 (Motofretista) e CBO 5191-05(Ciclista).
7. Jornada de trabalho compreendida como todo o tempo à disposição da empresa - plataforma, desde o momento do login até o logout na plataforma, independentemente da realização ou não de serviço, sendo limitada a oito horas diárias e quarenta e quatro [horas] semanais, com direito a hora extra, caso ultrapasse esse horário, conforme Constituição Federal de 1988.
8. Seguridade social, com filiação do(a) trabalhador(a) ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) como contribuinte obrigatório e recolhimento da parte patronal, conforme tributação pertinente atualmente, no setor de atividade ao qual a empresa está vinculada.
9. Remuneração mínima (piso mínimo mensal), bem como regras que garantam valor mínimo por corrida/serviço, paradas extras, taxas para cancelamentos realizados pelos usuários dos serviços e sua atualização anual, realizada por meio de negociação coletiva. Garantir reembolso de despesas com veículos.
10. Transparência nos critérios relacionados à remuneração, meios de pagamento, fila de ordem de serviço etc., garantindo-se que a alteração de qualquer tema relacionado só ocorra por negociação coletiva, bem como garantindo que os códigos e os algoritmos sejam regularmente submetidos à auditoria de órgãos especializados do Poder Público.
11. Saúde e segurança: condições garantidas conforme a atividade efetivamente realizada, seguindo as regulamentações já existentes pertinentes a cada atividade e respectivos acordos e convenções coletivas.
12. Exercício e processo de trabalho: as condições de trabalho devem seguir as definições previstas O acordo tripartite para regulamentação do trabalho em plataformas de transporte remunerado de passageiros 4 na CLT e demais regulamentações existentes. Regras específicas devem ser definidas em negociação coletiva com as empresas. Além disso, deve-se criar um cadastro único dos trabalhadores e trabalhadoras que executam atividades nas plataformas, para que o setor público e os sindicatos possam acompanhar as necessidades do setor e realizar ações de fiscalização pertinentes.
O texto do PLC proposto pelo governo federal enquadra os motoristas como trabalhadores autônomos, ou seja, sem vínculo pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), determina o pagamento de alíquota de 27,5% de contribuição no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Desses, 7,5% seriam pagos pelos trabalhadores, e 20%, recolhidos pelas empresas. O texto também estabelece pagamento de R$ 32,09 por hora trabalhada e remuneração de, ao menos, um salário mínimo (R$ 1.412). Segundo a proposta do governo, o tempo de trabalho do motorista não poderá ultrapassar 12 horas por dia, mas, é permitida essa jornada, o que contraria a jornada de 8 horas prevista na CLT.
Comparando a pauta inicial dos trabalhadores e o que propõe o PLC, fica claro que o projeto do governo fica muito aquém do que desejavam os representantes dos motoristas de aplicativos no Grupo Tripartite.
O Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, declarou a respeito da questão da opção pela denominação jurídica de autônomos para a categoria:
“Era exatamente o que os trabalhadores pediam: ‘Nós não queremos estar rígidos’. O problema é que essa liberdade era uma liberdade falsa, porque os trabalhadores estavam sendo escravizados com longas jornadas e baixa remuneração”.
Há certamente uma controvérsia entre o que diz o Ministro e o ponto 3 da pauta de reivindicações dos representantes dos trabalhadores no Grupo Tripartite, onde, segundo o DIEESE, eram requisitados “Direitos sindicais garantidos conforme previsto nos artigos 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 e dos demais dispositivos regulatórios, particularmente, os previstos na CLT”.
Em outro momento, a fala de Marinho contradiz a ele próprio: “O que nós mais ouvimos dos trabalhadores de aplicativo: ‘Nós não queremos ser enquadrados na CLT, queremos coisa nova’. Mas também ouvimos trabalhadores que gostariam de ter a CLT” (grifo nosso).
Ora, se na pauta apresentada pelos representantes dos trabalhadores havia a reivindicação pela garantia dos direitos da CLT e o próprio ministro do Trabalho reconhece que há entre os milhares de trabalhadores quem queira isso, por que, no melhor estilo da democracia sindical não se consultou os trabalhadores para uma decisão final onde fosse respeitada a vontade da maioria?
As empresas de aplicativos, essas sim são unânimes em rejeitar os direitos inscritos na CLT uma vez que deste modo mantém o alto índice de exploração e suas gigantescas margens de lucro.
O PLC dos motoristas de aplicativos deve trazer dois tipos de preocupações sociais. A primeira delas diz respeito a que abre as portas para uma maior pressão das empresas de aplicativos de entregas (motoboys, etc) em arrancar um acordo rebaixado de regulamentação da profissão. A segunda, de ordem geral para todos os trabalhadores brasileiros, é a de servir de pretexto para escancarar as possibilidades de uma revisão geral da atual jornada de trabalho de 8 horas, aumentando-a para 12 horas em nome de suposto trabalho “autônomo”.
Se a CLT e seus direitos pode ser desconsiderada para um setor econômico, certamente servirá ao patronato em geral como um modelo para lastrear uma ofensiva política de generalização do abandono de sua aplicação. Isso num momento em que seria mais que providencial para a classe trabalhadora uma campanha pela redução da jornada de trabalho no país não é um bom sinal.
Numa parte de seu discurso na cerimônia de assinatura do PLC, o Presidente Lula afirmou: “Há algum tempo, ninguém neste país acreditava que seria possível estabelecer uma mesa de negociação entre trabalhadores e empresários, e que o resultado dessa mesa ia concluir uma organização diferente no mundo do trabalho”.
Concordamos com Lula que o PLC propõe uma “organização diferente no mundo do trabalho”, sobretudo diferente das garantias trabalhistas asseguradas na CLT. Caberia aos dirigentes sindicais e aos representantes dos motoristas de aplicativos convocar os trabalhadores deste setor para avaliar coletivamente o que fazer diante do PLC: apoiá-lo sem restrições, fazer emendas a ele no sentido das 12 reivindicações iniciais, apresentar-lhe uma outra proposta alternativa.
Evidentemente que qualquer avanço em relação ao texto proposto no PLC original só seria conquistado com a pressão de mobilizações. Será também a volta das mobilizações dos entregadores (motoboys) que fará empresas como a Ifood deixar a sua intransigência e negociar uma proposta de regulamentação benéfica aos trabalhadores deste setor.
Por fim, é questionável do ponto de vista jurídico se o PLC poderia legalizar o ilegal que hoje próspera na relação de trabalho entre os motoristas de aplicativos e as empresas de plataforma ao colocar de lado as regras da CLT em uma nítida relação de emprego. Como diz o ponto 1 da plataforma de 12 pontos apresentados pelos representantes dos trabalhadores no Grupo Tripartite: “Não se trata de empresa de tecnologia, mas de uma empresa que faz uso de uma tecnologia específica para organizar o seu negócio”.
*Anísio Garcez Homem, escritor e autor de "LRF uma lei antisocial" e Cláudio Antônio Ribeiro - militante, foi dirigente bancário, opositor à ditadura militar, e advogado trabalhista
**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano