Cerca de 300 mulheres de diversas partes da Bahia - e do Brasil - se reuniram no Assentamento Terra Vista, em Arataca (BA) para o 4º Encontro de Mulheres da Teia dos Povos, entre 5 e 9 de março. Foram cinco dias de trocas de saberes, reflexões, práticas, celebrações, rituais e místicas com o tema: “Mulheres em defesa da vida, por terra e território”.
O evento contou com mulheres indígenas, quilombolas, de povos e terreiros de matriz africana, pescadoras, marisqueiras, quebradeiras de coco, assentadas, mulheres do campo, de favelas e das periferias urbanas.
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"Estamos chegando ao 4º encontro e vivendo uma conjuntura muito difícil. Primeiro veio o bolsonarismo, que ainda estamos enfrentando. E por outro lado a violência no campo, a violência contra a mulher, a violência contra o povo preto, o povo de terreiro, o povo de axé, o povo de santo, a violência contra a população LGBTQIA+. São varias violências que a gente entende que tem de haver uma unidade", pontua Solange Santos, uma das lideranças femininas do Assentamento Terra Vista e da Teia dos Povos.
"A gente entende que é preciso lutar pela vida, pois nós geramos vida. E quando a gente gera vida, o agronegócio se torna um dos nossos principais inimigos. Porque o agronegócio não gosta de vida na terra. E a terra é vida, ela é mãe e reproduz vida, assim como nós mulheres. A gente gera sementes. Temos uma conexão forte com a terra e as águas, justamente porque somos vida", completa Solange.
A mestra Nádia Akawã Tupinambá é uma das precursoras na articulação da Teia dos Povos e destacou a importância do encontro para o objetivo comum de defesa dos territórios e da vida.
Segundo a liderança indígena, o evento trouxe uma referência sobre o que ela chama de "grande luta das mulheres por empoderamento, por espaço e por direitos", propondo uma importante reflexão.
"Esse momento é para uma reflexão geral na sociedade, para que todas as pessoas que têm contato com mulheres comecem a perceber o quão essa terra é feminina, o quanto a agroecologia é feminina e quantas coisas eles ainda precisam aprender com esse feminino", ressalta.
Nega Pataxó e Mãe Bernadete presentes
O encontro também foi uma forma de "tecer o acolhimento e colher forças" e uma forma de rememorar o legado de Nega Pataxó e Mãe Bernadete, brutalmente assassinadas no Estado da Bahia nos últimos meses.
"Nega sempre fazia parte dos encontros de mulheres, fazendo um trabalho de base nas comunidades. Então, esse momento foi muito triste, muito árduo, pois sempre estávamos vendo a presença dela nesse meio. Ela não estava em corpo presente mas estava em alma. Para nós ela não morreu. Sim, ela se encantou, e sempre está presente entre nós mulheres. E continua dando o grito dela por liberdade, por um caminhar sem que ninguém nos atrapalhe", conta a educadora, liderança política e religiosa da luta Pataxó Hãhãhãe, a mestra Mayá, ou Maria José Muniz Andrade Ribeiro, que é irmã de Nega Pataxó.
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"Os homens de dinheiro irem lá e tirar a resistência da minha irmã brutalmente, juntamente com a policia militar, pistoleiros, para matar uma mulher que simplesmente estava com um maracá na mão", desabafa.
A mestra revela a tristeza pelo assassinato da irmã e o clima de tensão ainda vivido no território indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. Também pontuou a importância do encontro para organizar o trabalho de base nas comunidades e evitar o combate que vem sendo feito contra as mulheres.
'Temos que nos organizar para para dar um grito mais alto ao mundo e evitar o combate que vem sendo feito contra nós mulheres" sintetizou.
Violência do estado contra territórios tradicionais
Makota Kidoiale é fundadora do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, comunidade tradicional de matriz africana de nação bantu, localizada no bairro Santa Efigênia, região metropolitana de Belo Horizonte (MG).
Para ela, o encontro possibilitou uma reflexão sobre os ataques sofridos pelos territórios tradicionais de matriz africana por parte do Estado. Makota cita o processo recente do licenciamento a favor da mineradora Tamisa/Cowan na Serra do Curral, que foi concedido por órgãos estaduais em Minas Gerais, incluindo a Secretaria de Meio Ambiente (Semad), em favor da empresa.
As 42 famílias do Quilombo não tiveram direito a uma consulta prévia, em um processo que desrespeitou a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
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"Os estudos de impacto não reconheceram o quilombo dentro daquela área. Conseguimos suspender o licenciamento, mas continuamos sendo ameaçados. Sabemos que toda aquela região é uma região de preservação ambiental devido às práticas tradicionais que mantemos como culto e rito sagrado. Territórios como este tem despertado interesses capitalistas, que negociam nossos solos e subsolos sem nos consultar", explica a liderança quilombola.
"Libertar a terra é um processo que faz parte da luta feminina. Porque nós mulheres negras somos as que gestamos nosso território. Nós gestamos a nossa sociedade, o nosso povo, mas também o nosso território. Quanto mais cresce o capitalismo sobre a riqueza produzida pelo subsolo, mas isso tem nos colocado no alvo. Muitas das nossas mulheres vem morrendo por uma questão comercial. Nossas vidas estão sendo negociadas", acrescenta.
A luta feminina de Ilha de Maré
Liderança quilombola de Ilha de Maré (BA), Marizélia Lopes é mãe de 3 filhos, e vem de uma famílias de 10 mulheres. Nascida e criada na comunidade de Bananeiras, ela luta pela defesa dos manguezais e dos territórios pesqueiros em uma ilha cercada por indústrias petroquímicas, na região central da Baía de Todos os Santos.
"Ilha de Maré é esse lugar de resistência, onde 99% da nossa populacão de quase 10 mil moradores são pretas e pretos. E quem está à frente dos processos são as mulheres. Estamos aqui nesse encontro para nos afirmar, e nos ajudar enquanto resistência", conta.
Conhecida como Nega, apelido dado por sua bisavó, a liderança quilombola também lamentou a falta da presença física de Mãe Bernadete e Nega Pataxó.
"Para o capital é muito fácil jorrar sangue do nosso povo. Mas para nós, que lutamos pela vida, é muito difícil concordar e aceitar esse projeto que está sendo legitimado pelo nosso estado. Estamos vendo o genocídio do nosso povo em nome da ganância, sem respeitar nosso modo de vida, nossa ancestralidade. Mas não vai ser fácil nos tirar. Podem nos matar, mas seremos plantadas em nossa terra", avisa a quilombola.
Créditos de carbono e as comunidades
Alda Maria, representante do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI), atua junto às mulheres indígenas dos povos Pataxó, Tupinambá, e Pataxó Hã-Hã-Hãe pelo fortalecimento dos territórios.
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Ela participou da oficina 'Falsas Soluções', que discutiu os riscos que as comunidades estão passando em meio ao avanço do arrendamento de florestas e dos contratos para créditos de carbono REDD+ nos territórios tradicionais.
"Muitos anos atrás essas lideranças ditas dos países civilizados e ricos chegaram aqui de caravelas; e hoje a cena se repete, com seus governos que acham que por ter dinheiro pode comprar o bem mais importante do ser humano, que é a natureza", explica.
"A natureza para os indígenas é um bem sagrado. Sem o acesso as florestas, esses povos não tem como praticar a religião, não tem como viver a vida como tanto sonham. Os indígenas não podem deixar de ser o são por conta do capital estrangeiro", completa Alda.
A Teia dos Povos
No 8 de março, dia de luta internacional das mulheres, também foi celebrado o aniversário de 32 anos do Assentamento Terra Vista. Foi na área do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), durante a I Jornada de Agroecologia da Bahia, em 2012, que foi criada a Teia dos Povos.
A articulação formula caminhos para uma emancipação coletiva, através de uma união entre povos extrativistas, ribeirinhos, povos originários, quilombolas, periféricos, sem terra, sem teto e pequenos agricultores.
Criar uma aliança preta, indígena e popular desatrelada da política eleitoral e das instituições do Estado, dar forma à autonomia dos povos e desenvolver um programa de soberania alimentar são as chaves dessa ponte entre comunidades e organizações políticas, rurais e urbanas.
"É esse processo histórico da diáspora africana e seus conhecimentos milenares, e também dos povos indígenas que estão aqui muito antes dos portugueses chegarem nessas terras. Então, sentimos a necessidade de nos aproximar desses povos, de beber dessas fonte, porque entendemos que isso também é agroecológico. A partir do momento que passamos a trocar conhecimentos com esses povos, fomos percebendo que a agroecologia é um modo de vida e tem vários pilares. Tanto em relação à produção, como sobre a espiritualidade. A materialidade junto com a espiritualidade se movem juntas", finaliza Solange.
Edição: Douglas Matos