A recente viagem do presidente Lula pelo Egito e Etiópia foi marcada por suas contundentes declarações favoráveis ao fim do massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza e pelo reconhecimento de um Estado Palestino. Entretanto, seus pronunciamentos oficiais também carregam um importante apelo para rediscutir e redesenhar a governança mundial.
Ao final de seu discurso na sessão extraordinária da Liga dos Estados Árabes, no Cairo, no Lula declarou: “Nós precisamos ter um debate muito importante para que a gente repense a Organização das Nações Unidas, para que a gente repense a nova governança global. Não é possível que a ONU seja governada pelos países que saíram vitoriosos ou perdedores da Segunda Guerra Mundial. É importante lembrar que o mundo mudou; a geopolítica mudou. Os países ficaram maiores e mais importantes."
"Não tem nenhuma explicação o continente africano não ter nenhum representante [permanente] nas [no Conselho de Segurança das] Nações Unidas, e poderia ter dois, três. Não tem nenhum sentido a América do Sul e a América Latina não ter nenhum representante. Não tem nenhum sentido um país como a Índia estar fora, como a Alemanha estar fora. Ou seja, é preciso repensar para que a gente aumente o número de países no Conselho de Segurança. É preciso pensar e acabar com o direito de veto. (…) Porque são os membros do Conselho Permanente da ONU, os países que produzem armas, os países que vendem armas e os países que ultimamente têm feito as guerras.”
Em um único parágrafo, o Presidente expressou duas ideias fortes e imprescindíveis para pensarmos o mundo no século 21.
Primeiro, o desenho de governança pós-segunda guerra mundial fracassou, está falido e não corresponde à realidade geopolítica contemporânea. Sem redesenhá-la, a ONU é inócua diante de qualquer dilema global, em especial os conflitos bélicos atuais.
Segundo, a nova governança global não pode prescindir dos países do Sul Global. Os critérios para a reorganização destes organismos não podem ser apenas o poderio bélico ou econômico.
Não são as palavras do Presidente Lula, mas poderíamos acrescentar que o fracasso do sistema ONU é o fracasso também da insistência dos Estados Unidos da América em padronizar – culturalmente – o mundo à sua imagem e semelhança e de subordiná-lo econômica e militarmente. Tampouco, o mundo pode ser levado a uma nova bipolaridade, uma nova “Guerra Fria” no centro com “guerras quentes” na periferia.
E, parafraseando Lula, assim como no caso do Conselho de Segurança, é possível dizer ainda que os mesmos países que são responsáveis pela catástrofe climática são os responsáveis por impedir as verdadeiras soluções para o aquecimento global e a destruição ambiental.
Estes dois elementos – a crise geopolítica e a crise ambiental – são suficientes para que o Sul Global exija reconhecimento, voz e participação ativa na reordenação da governança global. Em um estudo produzido pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, “Hiperimperialismo: Um novo estágio decadente perigoso”, apontamos oito aspirações que unificam o Sul Global:
Multilateralismo: Engajamento em diálogos multilaterais profundos e cooperação entre os países do Sul Global sem depender de articulações oferecidas pelos países do Norte Global.
Nova modernização: Construção da integração econômica regional por meio de corredores e eixos econômicos dentro do Sul Global para concretizar economias de escala em nível continental.
Desdolarização: Redução da dependência do dólar estadunidense (sobretudo para os países que enfrentam sanções) no comércio internacional por meio de mecanismos como transações em moeda local, swaps cambiais e moedas regionais comuns.
Inovação liderada pelo Sul Global: Promoção da inovação tecnológica democrática e aberta entre os países do Sul Global. Isso inclui a redução do ágio econômico proporcionado pelos monopólios de propriedade intelectual em áreas como medicina, novas energias e tecnologia da informação.
Reparações e resolução da dívida: Enfrentamento à armadilha do endividamento centenário imposto pelos países imperialistas, por meio de negociações coletivas para reduções e compensações.
Soberania alimentar: Garantia do direito dos povos e dos Estados de definir sua política agrícola e alimentar, sem qualquer dumping em relação a outros países, corporações transnacionais e acordos de livre comércio.
Soberania digital: Aumento da capacidade dos países do Sul Global de controlar os espaços digitais em termos de hardware, software, dados, conteúdo, padrões e regulamentações, e construção de alternativas às plataformas digitais monopolizadas pelos EUA.
Justiça ambiental: Formulação de planos justos de alocação de direitos de emissão e exigências aos países imperialistas para que compensem sua poluição cumulativa de longo prazo. A financeirização da natureza é um beco sem saída para o Sul Global (TRICONTINENTAL, 2024).
Em outro estudo, publicado em 2022, o Instituto Tricontinental sistematizou juntamente com outros 26 institutos de pesquisas localizados no Sul Global, um conjunto de medidas que deveriam ser tomadas num Plano para salvar o Planeta (2022). Em relação à Democracia e a Ordem Mundial, as proposições eram:
(1) afirmar a importância da Carta das Nações Unidas (1945);
(2) insistir para que os Estados membros das Nações Unidas cumpram a Carta, incluindo seus requisitos específicos sobre o uso de sanções e força (Capítulos VI e VII);
(3) Reconsiderar o poder de monopólio exercido pelo Conselho de Segurança da ONU sobre as decisões que afetam uma grande parte do sistema multilateral; envolver a Assembleia Geral da ONU em um diálogo sério sobre a democracia dentro da ordem global.
(4) Insistir para que os órgãos multilaterais – como a Organização Mundial do Comércio (OMC) – formulem políticas de acordo com a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); proibir qualquer política que aumente a pobreza, a fome, a falta de moradia e o analfabetismo;
(5) afirmar a centralidade do sistema multilateral sobre as principais áreas de segurança, política comercial e regulamentos financeiros, reconhecendo que órgãos regionais como a OTAN e instituições limitadas como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) suplantaram as Nações Unidas e suas agências (como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) na formulação dessas políticas.
(6) Formular políticas para fortalecer os mecanismos regionais e aprofundar a integração dos países em desenvolvimento;
(7i) impedir o uso do paradigma de segurança – notadamente, contraterrorismo e antinarcóticos – para enfrentar os desafios sociais do mundo;
(8) limitar gastos com armas e militarismo; assegurar que o espaço seja desmilitarizado;
(9) converter os recursos gastos na produção de armas para financiar produções socialmente benéficas.
(10) Garantir que todos os direitos estejam disponíveis para todas as pessoas, não apenas para aqueles que são cidadãos de um Estado; esses direitos devem se aplicar a todas as comunidades até então marginalizadas, como mulheres, povos indígenas, pessoas não brancas, migrantes, pessoas sem documentos, pessoas com deficiência, pessoas LGBTQ+, castas oprimidas e pobres.
O protagonismo reivindicado pelo Sul Global, porém, não é possível de ser alcançado dentro das linhas defasadas e desequilibradas do desenho dos organismos multilaterais atuais. É preciso que estar força “venha de fora”.
Neste sentido, o Sul Global necessita de uma nova conferência de Bandung, a iniciativa de países africanos e asiáticos em 1955, ao qual o Brasil participou como observador, e que foi determinante para a constituição do Movimento dos Países Não-Alinhados, para o protagonismo do então chamado Terceiro Mundo e para o desdobramento concreto de inúmeras iniciativas de cooperação política, cultural e econômica entre estes países.
Nenhum outro líder mundial entre os países do Sul Global possui a autoridade política e moral de Lula para ser atendido num chamado como este. Vide o silêncio e a omissão de outros chefes de Estado de países mais poderosos. Mais do que isso, com o agravamento da catástrofe climática, poucos países possuem a autoridade do Brasil para convocar uma iniciativa desta natureza.
O estabelecimento e o reconhecimento de um mundo multipolar – não bipolar – com igualdades de direitos e deveres entre nações não é uma mera questão diplomática, ela é imprescindível para encerrar os conflitos causados pelas nações do hemisfério norte e seus satélites – na Ucrânia ou em Gaza – e para uma saída real e efetiva para a catástrofe climática – nem foguetes para Marte, nem carros elétricos – além da profunda desigualdade econômica que se tornou a regra na organização global. Que Lula não seja uma voz solitária de protesto.
*Miguel Enrique Stedile é doutor em história pela UFRGS e integrante da coordenação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. É autor, entre outros, do livro “Mao Zedong e a Revolução Chinesa: Métodos de Direção e Desafios da Transição ao Socialismo”. [https://amzn.to/3OSvqaK]