PLATAFORMAS DIGITAIS

Motoristas por aplicativos ganham regulamentação nos marcos da precarização

Após muitas negociações, governo Lula (PT) lança polêmico projeto de lei sobre trabalho de motoristas por aplicativos

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Após o lançamento, o PL foi encaminhado ao Congresso Nacional, onde passará pelos trâmites de negociação, avaliação e votação - Ricardo Stuckert

No último dia 4 de março, o governo federal realizou um evento de lançamento do projeto de lei (PL) que regulamenta o trabalho dos motoristas por aplicativos no país. O evento contou com a presença de autoridades e políticos, dirigentes sindicais, trabalhadores e representantes empresariais, é um marco, no âmbito do poder Executivo, após as intensas negociações que envolveram a regulamentação do trabalho subordinado às plataformas digitais no último ano.

O PL em questão é destinado especialmente aos motoristas por aplicativos, deixando os entregadores e outras categorias de fora. Chamada por “Autonomia com direitos”, a proposição visa garantir, conforme o discurso do governo, a autonomia dos trabalhadores na realização de suas jornadas de trabalho junto à concessão de alguns direitos sociais, especialmente relacionados à contribuição para a previdência social.

Uma história que se arrasta

Diferentes países têm regulamentado o trabalho por plataformas digitais, sobretudo o de transporte de passageiros e de entrega por meio de aplicativos. O Brasil, que é um dos maiores nichos dessas grandes empresas, ainda não havia dado nenhuma resposta para essa questão — sendo as únicas normas, em nível federal, aquelas que possibilitaram a atuação dessas empresas, em meados de 2014, sem nenhuma contrapartida aos trabalhadores que garantem os seus lucros.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) demonstrou interesse na regulamentação do trabalho por aplicativos desde o período da campanha eleitoral. O pronunciamento mais emblemático do atual presidente nesta direção foi em abril de 2022, em um encontro com sindicalistas e trabalhadores.

Em maio de 2023, após idas e vindas com representantes dos trabalhadores e das empresas, o governo constituiu um Grupo de Trabalho (GT), coordenado pelo secretário de Economia Popular e Solidária, Gilberto Carvalho (PT), para tratar do tema. O GT, que funcionou até setembro de 2023, discutiu somente as formas de regulamentação do trabalho de entregadores e motoristas por aplicativos. Além disso, terminou suas atividades sem nenhum resultado concreto, embora publicamente dissesse que as discussões embasariam uma proposição consensuada.

Em seu discurso no evento de lançamento do PL, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho (PT), comentou: “Fechamos a negociação em novembro. E de novembro até agora fizemos a redação. Uma redação complexa, e nós compreendemos isso. Eu nunca tinha participado de uma negociação que a redação demorasse tanto”.

Diante da postura do governo, as outras partes se mobilizaram para conquistar a opinião pública e pressionar as instituições: por um lado, as empresas investiram em lobby e publicidade, divulgando pesquisas tendenciosas que elucidavam uma possível opinião contrária dos trabalhadores às  formas de regulamentação; por outro, os trabalhadores realizaram diversas manifestações, com campanhas virtuais, paralisações e protestos.

Uma regulamentação fracionada

A regulamentação prevista somente para os motoristas por aplicativos se justifica, conforme o governo, por conta da aceitação de seu conteúdo tanto por parte dos representantes das empresas como dos trabalhadores — e é simbólico, tanto no evento como nas redes sociais, o discurso entusiasmado e a comemoração vinda dos dois lados.

A escolha por dois PLs cria uma regulamentação fracionada do trabalho por plataformas digitais. É provável que as normas referentes aos entregadores sejam diferentes e, nesta direção, envolvam condições de trabalho e acesso a direitos ainda mais rebaixados, uma vez que esses trabalhadores convivem com aspectos ainda maiores da precarização.

O que o governo quer dizer com autonomia com direitos?

Após assinar o PL, Lula discursou por cerca de 15 minutos. Em suas palavras: “A história irá provar que este é um dia muito diferente de outros (...). Há um tempo atrás, ninguém neste país acreditava que seria possível estabelecer uma mesa de negociação entre trabalhadores e empresários e que o resultado fosse uma organização diferente no mundo do trabalho (...)”.

O governo argumenta que o PL busca prever maior segurança e transparência — com base nos termos e condições de uso, que são estabelecidos pelas plataformas —, além da contribuição dos trabalhadores e das empresas ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) — impactando no auxílio-maternidade e aposentadoria, por exemplo —, e remuneração mínima e jornada de trabalho máxima, calculados pelo tempo “efetivamente trabalhado” — isto é, que leva em consideração o tempo em que os trabalhadores realizam corridas, e não o tempo em que permanecem à disposição das plataformas, esperando o chamado.

Um copo meio cheio ou meio vazio

Noutra oportunidade, sustentamos que a regulamentação do trabalho por plataformas digitais no país poderia assumir três caminhos. O primeiro, de viés progressista, alinhado às melhores experiências internacionais de regulamentação e consequente com aquilo que as pesquisas científicas têm apontado, seria a compreensão de que esses trabalhadores são subordinados às empresas e que, por isso, deveriam ter formalizado o vínculo de emprego e garantido o acesso à proteção social e trabalhista prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O segundo, de viés conservador, alinhado ao interesse de lucro das empresas, seria a manutenção da atual compreensão, de que esses trabalhadores não são subordinados e que, portanto, têm total autonomia de trabalho, sem ter garantido o devido reconhecimento do vínculo empregatício e acesso a direitos. O terceiro, de viés igualmente conservador, seria uma regulamentação rebaixada: sem a devida compreensão de que os trabalhadores são subordinados às empresas, e, portanto, sem prever a formalização do trabalho e acesso aos direitos previstos na CLT, mas com a garantia de certos benefícios. A proposta de Lula trilha o terceiro caminho.

Não à toa, as empresas comemoram a vitória. O discurso de André Porto, da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), representante das principais empresas de transporte por aplicativos, como a Uber, é elucidativo: “Sempre fomos favoráveis à construção de uma regulamentação que oferecesse equilíbrio entre as demandas dos trabalhadores e a sustentabilidade de um modelo de negócios inovador, que traz benefícios a toda economia do país. Defendemos, desde o início dos trabalhos [do GT], a inclusão dos trabalhadores no sistema público de Previdência Social, a definição de uma renda mínima e outras questões contempladas neste PL, como a maior transparência na relação entre as plataformas e os motoristas”. E continua: “(...) A proposta de uma regulamentação que garanta segurança jurídica para as empresas seguirem investindo, e ao mesmo tempo assegure direitos às trabalhadoras e trabalhadores de aplicativos, seguramente será um marco histórico nesta indústria no Brasil e um exemplo para os demais países”.

Em tempo: as empresas sempre foram favoráveis a qual regulamentação? Que assegura quais direitos às trabalhadoras e trabalhadores? A segurança e transparência que buscam e conquistaram são as mesmas que os trabalhadores reivindicam?

“Autonomia com direitos” tenta fazer uma síntese entre campos opostos — enquanto ter autonomia significaria falta de direitos aos trabalhadores, ter o acesso a direitos significaria total subordinação. O PL, no entanto, não cria autonomia e nem garante acesso pleno aos direitos.

O governo celebrou e foi aplaudido por “criar uma nova modalidade de trabalho”, “uma nova categoria de trabalhadores”. Nas palavras de Lula: “Foi parida uma criança nova. No mundo do trabalho, as pessoas que querem autonomia terão autonomia, mas terão um mínimo de garantias”. Na mesma direção, o ministro do Trabalho e Emprego afirma: “O que nasce aqui é uma categoria diferenciada. O problema é que essa liberdade até então era uma liberdade falsa, porque os trabalhadores estavam sendo escravizados por longas jornadas e baixos salários (...). É autonomia, sim.

Os trabalhadores estarão vinculados a quantas plataformas desejarem, poderão organizar os seus horários, mas terão direitos garantidos, o direito à cobertura da previdência social”.

O governo, na realidade, criou direitos de segunda ordem. Algo que poderia ser visto como um copo meio cheio, naquela alegoria há muito conhecida, mas que representa um copo meio vazio. Estranha o fato de o campo progressista insistir em beber deste copo meio cheio. Ao defender o PL, apontando que o governo “fez o que era possível”, muitos têm demonstrado conformidade com o resultado “menos pior”. Isto deveria nos assombrar quando pensamos, a médio e longo prazo, qual projeto de país e qual forma de proteção social e trabalhista temos disposição e capacidade de construir para as atuais e futuras gerações.

O trabalho dos motoristas por aplicativos continua sendo subordinado às plataformas digitais, isto é, controlado pelos algoritmos que definem o preço, o tempo e a própria possibilidade de trabalho, sendo a única autonomia dos trabalhadores o momento de escolha — que não é pura e simplesmente uma escolha, como sabemos — de estar logado ou não no aplicativo.

O discurso da autonomia dos trabalhadores mascara o vínculo de subordinação com as plataformas, e, por consequência, impossibilita a compreensão jurídica e política, por parte das instituições e dos próprios sujeitos, da possibilidade de acesso pleno aos direitos sociais e trabalhistas. As empresas, desde meados de 2014, propagandeiam a “liberdade” e a “flexibilidade” das jornadas para negar a sua relação com os trabalhadores. Essa tese não somente deixou de ser rebatida pelo governo do Partido dos Trabalhadores como passou a ser incorporada e incentivada. 

Um risco à CLT

Mesmo com os retrocessos e alterações legislativas que foram feitos pela reforma trabalhista de 2017 — cuja revogação parece estar cada vez mais longe do horizonte do governo Lula —, ao serem reconhecidos como trabalhadores subordinados às empresas, motoristas e entregadores por aplicativos — e mesmo outros trabalhadores por plataformas digitais — poderiam ser enquadrados em categorias profissionais já existentes, e contar com os direitos já previstos na CLT.

Nas palavras de Marinho: “A CLT está muito bem, viva e presente, na vida de milhões de brasileiros e brasileiras e do empresariado brasileiro. Ocorre que o presidente Lula fez um compromisso na campanha eleitoral, de trabalhar a regulamentação de trabalhadores e trabalhadoras por aplicativos e da atividade econômica dos aplicativos. Este compromisso, desde o início, não foi dito se seria pela CLT ou não. É um processo de debate num novo momento do mercado de trabalho e de novas escolhas (...). É preciso observar o que está acontecendo internacionalmente na economia e nas relações de trabalho, e observar que seria preciso um diálogo com trabalhadores e empresários. Mais do que participar da negociação, o governo organizou um grupo tripartite e provocou um diálogo entre as partes (...)”.

Lula tem discursado que a sua proposta de regulamentação do trabalho por aplicativos é inspirada naquela que foi aprovada recentemente na Espanha, que compreende que os trabalhadores devem ser formalizados e terem acesso ao conjunto dos direitos sociais e trabalhistas previstos na legislação.

No entanto, na prática, a proposta de Lula caminha em outra direção: apresenta convergência, isto sim, com leis que favorecem os contratos via terceirização e pejotização. Tais leis descaracterizam a relação de subordinação do trabalho, rebaixam ou retiram o acesso dos trabalhadores aos direitos sociais e trabalhistas e legitimam, por meio da norma, condições de trabalho precarizadas sob o véu da autonomia e da preocupação com a “segurança jurídica” das empresas.

Diversos pesquisadores, ativistas e lideranças de organizações coletivas têm advertido que o PL representa um risco ao emprego formal e ao acesso à CLT. Alegam que a criação desta forma de contratação rebaixada poderá incentivar o mesmo formato para outros casos — como já ocorreu após a aprovação das legislações de terceirização e da criação do Microempreendedor Individual (MEI).

Próximos passos

Após o lançamento, o PL foi encaminhado ao Congresso Nacional, onde passará pelos trâmites de negociação, avaliação e votação. Importante destacar que mais do que uma resposta pública à sociedade civil, o evento de lançamento serve como pressão do Poder Executivo ao Legislativo, que se mantém avesso às possibilidades de regulamentação. De toda forma, se aprovado com ou sem modificações no Congresso, o PL será considerado uma vitória do governo Lula próximo às comemorações do 1º de Maio.

A proposta de Lula é rebaixada. Evidentemente, a formulação do PL está inserida num contexto de uma fraca base de apoio no Congresso Nacional, de uma baixa capacidade de mobilização social e de uma forte pressão da ampla frente política que o sustenta, com setores da burguesia interna que dificultam uma guinada à esquerda. Mas, antes de mais nada, também é fruto de uma escolha política.

O conteúdo da proposta de regulamentação do trabalho dos entregadores por aplicativos segue sendo um mistério diante da falta de consenso entre as partes envolvidas e da indisposição do governo em assumir um dos lados. Conforme o ministro do Trabalho e Emprego, “ainda restam os trabalhadores de entregas. Ainda não chegamos lá. Espero que este PL [dos motoristas] inclusive influencie para que a gente possa voltar para a mesa. Não adianta o Ifood mandar recado. Nós conversamos um ano inteiro”.

Segundo Marinho, os representantes das empresas de entrega por aplicativos alegam que o padrão de negociação estabelecido pelos trabalhadores e governo não cabe em seu modelo de negócios: “O modelo de negócio é altamente explorador. É preciso que essas plataformas também sentem para conversar, sabendo que precisamos estabelecer padrão remuneratório que ofereça condições de cidadania e vida digna para esses trabalhadores, como estamos fazendo aqui [com os motoristas por aplicativos]”.

Lula deixou evidente que a aprovação de sua proposta não está ganha no Congresso: “Vocês sabem que terão que trabalhar com os deputados. É preciso começar a buscar os líderes de bancada. Da parte do governo faremos o máximo para aprovarmos o mais rápido possível, mas sempre tem gente contrária. É importante termos paciência e não raiva dos contrários. Convencer que são trabalhadores, que carregam o país nas costas”.

A proposta do Executivo e o comportamento do Legislativo influenciará diretamente nas próximas discussões do Judiciário, que também enfrenta o debate do trabalho por plataformas. Está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) a compreensão da existência do vínculo empregatício entre os trabalhadores e a Uber. Na última sexta-feira, 1º de março, em deliberação unânime, foi reconhecido que a matéria tem repercussão geral, isto é, que ultrapassa os interesses das partes envolvidas em um único processo, servindo como modelo de julgamento para processos semelhantes.

Conforme noticiado no site do STF, atualmente existem mais de 10 mil processos sobre o tema tramitando nas diversas instâncias da justiça trabalhista. A Uber, que é referência mundial no setor, e que já teve reconhecido o vínculo de subordinação com seus trabalhadores em outros países, já recorreu e pede a suspensão dos processos contra ela nas instâncias inferiores da justiça trabalhista brasileira.  
Cabe, novamente, recolocar a questão: as empresas sempre foram favoráveis a qual regulamentação? Que assegura quais direitos às trabalhadoras e trabalhadores?


* Eduardo Rezende Pereira é militante da Consulta Popular, doutorando em Ciência Política pela Unicamp e membro do Projeto Conexão - Observatório do Trabalho por Plataformas Digitais no Brasil (Unicamp).

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Pedro Carrano