De quatro em quatro anos, uma mobilização intensa em torno das eleições diretas para prefeitura e vereança se amplia para além dos partidos, reorganizando forças políticas municipais e da sociedade civil, e se repete longa lista de promessas vinculadas à ampliação do acesso a políticas públicas urbanas e ao direito à cidade, voltadas ao saneamento ambiental, moradia, transporte, segurança pública, saúde, educação.
Mesmo com o desmantelamento das políticas estatais nos últimos anos e a crescente descrença neste sistema, vide os números significativos de abstenção nas últimas eleições, tendo como perfil da maioria homens, com baixa escolaridade e idade acima de 40 anos, a esperança e expectativa de mudanças via democracia representativa ainda ocupa nosso imaginário de transformação.
Não há dúvidas que nas últimas décadas tivemos a afirmação normativa de mecanismos e processos participativos no planejamento das cidades, seja em elaborações e revisões de legislações urbanísticas, ou em processos decisórios quanto ao ciclo orçamentário. Criou-se com isto um certo constrangimento público por municípios ao não adotarem políticas de participação popular, tanto para realizar o comando normativo, quanto para construir uma aparente legitimidade.
Em Curitiba, conselhos, comissões, audiências públicas, tecnologias digitais são alguns instrumentos formalmente instaurados, a conformar a arquitetura participativa da cidade. Entretanto, há participação popular efetivamente? Há diálogo informado entre sociedade civil e máquina tecno-burocrática municipal? Há espaço para o dissenso e conflito de posições? Existe deliberação nestes espaços que implicam em mudanças estruturais na cidade? São questões tratadas neste ensaio, com intuito de apresentar mais caminhos para reflexão do que respostas, ao abordar pontualmente alguns nós do sistema de participação popular em Curitiba.
No âmbito do Sistema Nacional das Cidades e processos de Conferências das Cidades, estabeleceu-se a obrigatoriedade de existência de Conselhos das Cidades, também para a aprovação dos Planos Diretores "participativos". Em 2008 foi criado o Conselho da Cidade de Curitiba (Concitiba), vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). Várias mudanças passaram pela consulta do Concitiba, como revisão de Plano Diretor, Planos Setoriais, Lei de Zoneamento, Lei da Outorga Onerosa, entre outros, sempre com dificuldade de reconhecimento das sugestões da sociedade civil em melhoria e correções das propostas. por vezes inexistentes.
Iniciou-se um processo contínuo de tornar propostas para a cidade meras cartas de intenção. Ademais, desde 2017 estancou-se o processo de Conferências da Cidade, mesmo cientes de que as mudanças no governo federal, que desestruturaram as políticas nacionais para a cidade, não impediam o município de se organizar para as conferências e novas eleições para o Concitiba.
Nesses sete anos não houve alternância nas representações do Conselho, demonstrando imobilismo e descaso quanto a este canal de participação. Há ainda um conflito aparente sobre os projetos de intervenção urbana, que pretendem "fazer acontecer o Plano Diretor", como diz o lema do IPPUC, e que não são discutidos com a população, nem mesmo no Concitiba, que deveria ser o órgão de monitoramento da execução dos princípios do Plano Diretor. Na prática temos conhecimento sobre projetos de embelezamento e mudanças viárias e urbanísticas, em praças e barracas da Feira do Largo da Ordem por meio das mídias sociais e canais de comunicação, sem possibilidade de debate, já que se assentam na suposta "legitimidade" do conhecimento técnico que alicerça o modelo de fazer a cidade de Curitiba.
Outras contradições se observam na atuação da Secretaria de Urbanismo e seu Conselho Municipal de Urbanismo, diariamente no comando e gestão do espaço urbano, às vezes, para além do proposto nas legislações que reconhecem o direito à cidade. Constata-se que suas decisões sobre empreendimentos, uso e ocupação do espaço público não incorporam a prática participativa.
Ao contrário, atuam de forma punitivista e proibicionista, a depender de público que se dirige a decisão, vide as dificuldades quanto ao pré-carnaval, multas a artistas urbanos, e mesmo operações da Ação Integrada de Fiscalização Urbana (AIFU), em alguns casos abusivas, quanto a determinados estabelecimentos. Pesquisa da UFPR (Mafra, 2020) constata que decisões sobre empreendimentos, às vezes carecem de adequada motivação jurídico-urbanística, e que a execução do planejamento urbano é perpassada por lógicas exteriores ao direito e ao próprio urbanismo, movimento que atesta a ausência de uma racionalidade no processo de implantação do planejamento urbano.
Por último, a inovadora ferramenta de "consulta" ou mecanismo de participação popular voltado ao ciclo orçamentário municipal, o "Fala Curitiba", instaurado pela Prefeitura na onda das "cidades inteligentes", apesar de prêmios internacionais, este processo não garante o diálogo e a explicitação dos conflitos oriundos dos interesses divergentes próprios da constituição do espaço urbano.
Kornin e Nagamini apontam que o "Fala Curitiba" é "levantamento de dados e não um processo de consolidação de um pacto a partir de processos dialógicos em que se considerem os conflitos de posições como parte essencial." As audiências públicas, complementares ao processo digital, ocorrem de costume em horários que trabalhadores e trabalhadoras não podem participar, limitando assim o acesso. E as apresentações técnicas por parte da Prefeitura, na maioria das vezes são indecifráveis para o cidadão médio, sem espaço para divergências ou deliberações. Na lógica, "Fala" que não te escuto!
Diante deste panorama evidencia-se uma despolitização dos processos participativos em Curitiba, onde são escassos os espaços e, quando existem, estão ausentes do sentido do direito à cidade, isto é, o direito de decidir sobre a cidade que queremos.
Na contramão das propostas governamentais de participação, confirma-se a ação direta de movimentos sociais, que mantêm viva a ação política por uma cidade mais inclusiva, justa e menos desigual. Tatagiba entende que "uma política pública menos permeável à influência dos atores societais tende a empurrar as organizações – até mesmo aquelas que se inclinaram a uma atuação mais ‘propositiva’ – a diferentes formas de ação direta." E, na cidade temos visto mobilizações em torno da moradia, transporte, ciclomobilidade, população em situação de rua, carnaval movimentarem e pressionarem a Prefeitura a justificar suas posições quanto às políticas urbanas. Intensificar estes espaços da sociedade civil faz com que a frieza técnico-burocrática escute e, também, considere as propostas e demandas para garantia do direito à cidade.
Ao pensamos em participação popular, sabemos que a população deve estar presente não só na construção e acompanhamento, mas no monitoramento da política pública urbana, no âmbito da ação cotidiana, dos modos de apropriação do espaço urbano. Neste ano de eleições, para além das propostas finalísticas quanto à moradia, saúde, educação, segurança, transporte, entre outros direitos, queremos e precisamos de propostas que garantam o direito à participação ativa e real da sociedade, em busca da partilha do poder e da gestão democrática.
*Leandro Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Professor Adjunto de Prática Jurídica em Direitos Humanos e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Urbanístico. Pesquisador do Centro de Estudos Constitucionais e do LABA- Direito, Espaço & Política. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4442105583996723
**Doutora em Geografia pela UFPR. Pesquisadora do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e colaboradora sênior na pesquisa Fronteiras do Brasil: uma avaliação de política pública, na Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur) do IPEA. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6758554966892282
Notas:
i CERVI, E. U.; BORBA, F. Quem se abstém no Brasil? Competição local e efeito da Covid-19 na participação do eleitor no primeiro turno da eleição municipal de 2020. Sociedade e Estado, 37(2),2022, 599–619.
ii MAFRA, M. Entre Planejamentos E Alvarás: A Gestão Do Espaço Urbano De Curitiba. Dissertação de Mestrado em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, 2020.
iii KORNIN, T.; NAGAMINE, L. Y. Participação popular remota: novo paradigma de segregação socioespacial. In: Reforma Urbana e Direito a Cidade. Curitiba [recurso eletrônico] / organização Rosa Moura, Olga L. C. de Freitas. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022.
iv TATAGIBA, L. Desafios da relação entre movimentos sociais e instituições políticas O caso do movimento de moradia da cidade de São Paulo – Primeiras reflexões. Colômbia Internacional [On-line], 71|2010.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano