O livro não pode ser esse objeto que só é procurado em momentos extraordinários
Jeferson Tenório tinha recém chegado da 32ª Feira Internacional do Livro de Havana, realizada em março na capital cubana, quando percebeu que sua obra O Avesso da Pele estava entre os assuntos mais comentados do país.
Publicada em 2020 e vencedora do Prêmio Jabuti no ano seguinte, a obra conta a história de um jovem que embarca em uma busca pelo passado de sua família após perder o pai, vítima da violência policial.
Ainda em 2022, o livro foi disponibilizada pelo Ministério da Educação (MEC) para leitura nas escolas públicas, após ser aprovada nos critérios do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
A obra ganhou versão para o teatro, da encenadora Beatriz Barros, e está em processo de adaptação para as telonas, com direção de Silvio Guindane.
Mas não foram as conquistas que fizeram o livro virar assunto nacional nas últimas semanas. Governos de pelo menos três estados ordenaram o recolhimento da obra das escolas públicas: Goiaís, Matos Grosso do Sul e Paraná.
Nas redes sociais, secretários desses estados acusaram o livro de conter "linguagem chula" e inadequada para adolescentes.
Apesar do susto com a série de ataques, Tenório disse que "é uma velha estratégia que a gente já conhece de tentar tirar o foco do que realmente precisa ser tratado", em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (13).
Ao mesmo tempo que as ofensas intensificaram, a procura por um exemplar cresceu. Segundo o site de vendas Amazon, a busca pelo livro aumentou em 1400% nos últimos dias.
"Será que a gente precisa da censura para que as pessoas se atraiam?", questiona Tenório.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o autor revela mais detalhes sobre o filme produzido a partir da obra e sobre seu próximo livro, que já está em processo de finalização.
Brasil de Fato: O seu aniversário foi agora, na última sexta-feira (8). Foi semana passada no meio de toda essa turbulência. Foi o aniversário mais conturbado que o senhor passou nesses últimos tempos?
Jeferson Tenório: É, foi o que dizem de inferno astral, né? Que acontece uns dias antes do aniversário. Me pegou de surpresa. Eu recém tinha voltado de Havana. Estava participando de um evento literário em Cuba. Cheguei num dia e no outro já estava instalada toda a celeuma e a repercussão
As secretarias que criticaram o livro usaram o argumento que ele contém linguagem chula. Na sua opinião, isso é um discurso disfarçado que essas pessoas utilizam para não afirmarem que não querem nas escolas livros que debatem racismo?
Eu acho que um dos motivos é esse. Não me causa surpresa que o livro tenha sido censurado ou essa tentativa de censura no sul do país, que é, historicamente, bastante racista. O Avesso da Pele trata dessa questão, por ser localizado em Porto Alegre. Mostra como as pessoas negras são afetadas pelo racismo.
Acho também que tem essa cortina de fumaça que se utiliza, levantando um tema polêmico, que sabe que vai causar uma polêmica, que é a questão da sexualidade, palavrões.
Isso é muito comum como o discurso conservador, ultra conservador, que sabe que vai atrair uma quantidade de pessoas que tem uma ideologia mais conservadora e vai atender justamente a essas pessoas com um discurso desses. É uma velha estratégia que a gente já conhece de tentar tirar o foco do que realmente precisa ser tratado.
Como que o senhor vem reagindo diante de toda essa montanha russa de emoções? Porque, por um lado, as vendas dispararam.
Eu acho que primeiro é tentar entender o que motiva as pessoas a irem procurar um livro. Eu acho que com o histórico de movimentos autoritários, com o histórico de recolher livros — que não é uma coisa de agora, a gente sabe que isso já aconteceu no Brasil outras vezes — a gente de certo modo já aprendeu a reagir.
Uma das reações é essa. O efeito colateral da censura, da proibição, é a procura. Essa procura faz com que mais pessoas tenham acesso, que chegue a outros lugares, formando leitores. Isso é muito positivo. A editora vende, movimenta o mercado editorial.
Agora, a questão que a gente tem que se perguntar é qual é o preço disso. Ou seja, será que nós precisamos de eventos violentos como esse? A recolha de livros, eu considero como ato violento.
Será que a gente precisa da censura para que as pessoas se atraiam?
É uma questão que a gente tem que se colocar. Ou seja, o livro não pode ser esse objeto que só é procurado em momentos extraordinários, em momentos que acontece um ato como esse. Ele tem que fazer parte da vida das pessoas. E eu acho que o que aconteceu com O Avesso [da Pele] disparou esse interesse.
Então, se por um lado é ruim a gente pensar que a procura tenha acontecido por causa da censura, é bom também por outro, porque o meu projeto, que é o projeto de formar leitores, está sendo colocado em prática.
Talvez não da maneira que eu tenha pensado, mas como essa, digamos, ajuda, bem entre aspas, da direita. O que me leva a entender que, por caminhos tortuosos, a extrema-direita tem sido mais eficiente, assim, para conseguir chamar a atenção para a leitura.
O senhor tem recebido também mais convites para participar de palestras?
Faz uma semana que a minha vida tem sido dar entrevista. Hoje foram cinco. Essa é a quinta entrevista que eu estou dando hoje. Amanhã tem mais tantas entrevistas e os convites também triplicaram. Minha assessora não consegue dar conta de responder todas as pessoas.
Eu acho que de certo modo isso movimenta a discussão, faz com que as pessoas se interessem e se atentem para o que está acontecendo.
O meu único receio é isso que eu estou falando. Ou seja, parece que alguma coisa tem que acontecer para que a gente se dê conta de todo o processo de autoritarismo que está sendo construído não só no Brasil, mas no mundo.
Todo esse projeto autoritário que vem ganhando força na Europa. A gente tem casos aí de Portugal, França, Itália, Alemanha. Todo esse projeto autoritário nos Estados Unidos é a mesma coisa.
A gente tem aí uma série de livros, mais de 2,5 mil livros que foram proibidos ou tiveram restrição em determinados estados.
No Brasil a gente tem esse aumento de células nazistas em Santa Catarina, por exemplo. Então, é uma série de eventos e a gente não pode normalizar isso, achar que a recolha de livros é algo normal. Eu, enquanto produtor de arte, produtor de literatura, me recuso a normalizar a recolha de livros, me recuso a normalizar a censura.
Jeferson, o senhor é gaúcho e comentou que no Rio Grande do Sul e nos estados do Sul do país há uma manifestação acima da média de atos racistas. Você entende que sua literatura é importante, também, para mostras as vozes dissidentes que existem nesta parte do Brasil?
Eu acho que a literatura faz justamente isso. A literatura e a arte em geral.
Ela mostra a singularidade de algumas vidas, singularidade de experiências. Faz uma reflexão sobre isso. Não faz uma generalização, até porque a gente sabe que os estados são feitos de pessoas, e eu acho que a literatura na verdade representa um fenômeno, ela não representa pessoas.
Ela não representa determinado grupo. Ela faz uma análise de um determinado fenômeno. E isso tem a ver com a estrutura racista que a gente vive, uma estrutura racista muito sofisticada, que vai se modificando quando ela é combatida e vai encontrando novas formas de violência.
Eu acho que a literatura consegue fazer uma inflexão sobre essas nuances, sobre essa sofisticação, seja do racismo, seja do machismo ou do fascismo. Por isso que eu defendo que livros como O Avesso da Pele têm que voltar para as mãos dos alunos. Eles não podem ser privados de fazer uma reflexão sobre um tema tão difícil que é o racismo.
Há mais de um ano está circulando a peça O Avesso da Pele, inspirada, justamente, na sua obra. O que você achou da adaptação? O senhor gostou de como a dramaturgia se construiu?
Sim. Os atores são geniais. A Beatriz Barros também, que é a diretora, é incrível. O modo como eles fizeram a transposição da peça, fiquei muito feliz com o resultado.
É uma peça que tem feito bastante sucesso. Os ingressos esgotam muito rápido. Nas próximas semanas eles devem estrear em Porto Alegre. Os ingressos também já foram esgotados.
E hoje [terça-feira] daqui a pouquinho eu estou indo pro Prêmio Shell, porque O Avesso [da Pele] foi indicado a uma premiação. O Prêmio Shell é um dos maiores prêmios da dramaturgia.
Eu fico muito feliz que o livro acabou espraiando assim. Ele acabou indo para outras linguagens e esse ano começam as filmagens também do filme, do O Avesso [da Pele] com a direção do Silvio Guindane. Enfim, eu acho que está tendo aí uma caminhada bonita, sim.
Você está em contato com o Silvio Guindane? Vocês estão trocando figurinhas para a construção do filme?
A gente tem conversado já desde ano passado. Nós encontramos algumas vezes, mas não faço parte da equipe de adaptação. Funciona mais como uma consultoria: ele me fala algumas ideias e a gente vai trocando umas figurinhas, mas acho que teremos, também, uma boa transposição aí.
Teremos algumas surpresas também enquanto o elenco, a própria equipe que vai fazer a adaptação também é bastante famosa. Então acho que vai causar um barulho nos próximos meses.
Você tem novidades que não pode contar para a gente? É isso que eu estou entendendo?
É, tem novidades que não posso contar ainda sobre o elenco e também quem que vai fazer a produção.
Voltando a falar sobre o livro, gostaria de saber se toda essa polêmica te incentivou, te deu mais energia, para continuar escrevendo. Deu uma vontade de publicar mais rápido?
Olha, eu tento sempre me isolar das interferências externas. Na minha criação não é uma coisa que me preocupa, por exemplo, publicar um livro e que esse livro tenha a mesma trajetória que O Avesso [da Pele].
Eu dou importância, na verdade, a valorizar o meu projeto literário. Então, meu projeto literário tem agora pela frente mais um livro. Estou terminando mais um livro, independentemente da trajetória do anterior. É nisso que eu me baseio.
Tenho aí para as próximas semanas o término do próximo livro, que eu já venho escrevendo há dois anos. Aí no segundo semestre o lançamento desse novo romance.
Já tem nome, Jeferson?
Não tenho. Eu tinha um novo provisório, mas a editora me sugeriu outros nomes. Eu também estou pensando em outros títulos. Ainda não tem nada definido e me pediram também pra eu não falar.
Só o que eu posso adiantar é que ele vai se passar no ambiente acadêmico. Dentro de uma universidade e de todas as questões aí que giram em torno de discussões de certo modo atuais
E ele também tem um tom um pouco autobiográfico?
Eu acho que não tem como fugir. Acho que todo livro se utiliza desse material biográfico. Alguns deixam isso mais aparente, outros não. Depende de como é que você vai construir a narrativa, mas não tem como fugir do material biográfico. Acho que é importante que o autor consiga falar do seu mundo e de certo modo ser universal.
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Edição: Matheus Alves de Almeida