As recentes tentativas de censura ao livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, são sintomáticas das mudanças sociais que o Brasil vem conhecendo desde a promulgação da Constituição Cidadã em 1988, mas principalmente após a intensificação de políticas sociais desenvolvidas no país a partir dos anos 2000. Estas mudanças, que balançaram minimamente a rígida estrutura social brasileira, suscitaram a reação de pessoas e grupos, desejosos de que “as coisas voltem a ser como era antes”. A ascensão de uma extrema direita veio radicalizar este cenário. Vejamos como a censura ao livro de Tenório se relaciona com isso.
No Brasil o campo literário é formado hegemonicamente por pessoas brancas, majoritariamente homens. Os principais prêmios literários, de igual forma, também são amplamente concedidos a escritores brancos e do sexo masculino. Este perfil do escritor mimetiza-se também nos personagens principais das narrativas, em sua maioria homens, brancos, pertencentes às classes médias. Entretanto, novas vozes vêm surgindo na literatura brasileira, apontando um tensionamento em relação ao mainstream literário do país.
Tenório é um escritor representativo de uma nova produção literária que o Brasil vem experimentando nos últimos anos, desenvolvida por autores emergentes, comumente descritos como “periféricos” ou “marginais”. Autores com este perfil têm alcançado espaço em grandes editoras, obtido sucesso em vendas e também conquistado importantes prêmios literários. A literatura, além de expressão artística, é lugar de manifestação de questões sociais referentes a uma época, e ganha forma por meio da interpretação particular dos autores sobre o que é relevante expor. Escritores como Tenório trazem uma nova abordagem em termos de forma e conteúdo, relacionada aos lugares sociais nos quais são forjados. Tomemos como exemplo, o livro em questão.
O Avesso da Pele é narrado em primeira pessoa por Pedro, que é filho de Henrique, homem negro, professor de literatura da rede pública de Porto Alegre. Henrique é morto em uma frustrada abordagem policial. Partindo deste fato, o livro narra a tentativa do filho em reconstruir a vida do pai. A “pele” que consta no livro é um marcador social que atravessa a trajetória de pai e filho.
O livro, no entanto, não se reduz a uma crônica sobre violência policial e racismo: embora sejam elementos incontornáveis do romance, Tenório constrói um panorama complexo das relações humanas, permeadas por violências, perdas, medos, esperanças, afetos, solidariedade e busca de identidade. Ao mesmo tempo em que olham para o mundo, os personagens olham pra dentro de si e confrontam percepções e sentimentos, extraindo daí reflexões sobre a realidade que experimentam. Tenório se dedica a desnudar a faceta humana de seus personagens, os diversos atravessamentos que conduzem às ações, e nos faz ver que a grande questão da violência e da brutalização não reside nos indivíduos isolados (mesmo naquele que empunha a arma que dispara contra Henrique), mas nas configurações sociais e relações de poder: racismo, violência de gênero, violência de classe, violência policial, etc.
A emergência de escritores como Tenório ocorre num momento histórico em que discussões sobre racismo, desigualdade social, violência e identidade ganham destaque na esfera pública brasileira. Observa-se o surgimento e consolidação das políticas de cotas raciais e sociais, a criminalização do racismo e da injúria racial, a criminalização da homofobia e a tipificação do crime de feminicídio – apenas para citar alguns exemplos. O próprio Jeferson Tenório, homem negro oriundo da periferia, ingressou no ensino superior pelo sistema de cotas raciais.
Ao destacar-se como escritor, Tenório adentra em um território de prestígio, historicamente reservado a pessoas brancas e de classe média, algumas das quais extremamente incomodadas em dividir este ou qualquer outro espaço que simbolize prestígio e poder. E ao abordar o cotidiano de uma família negra no Brasil, com todos os seus dramas diários, Tenório escancara as múltiplas faces da desigualdade brasileira, sendo o racismo uma das mais brutais.
Neste contexto, setores expressivos da classe média e alta vêm já há algum tempo demonstrando incômodo com os ainda tímidos movimentos de ascensão social, que políticas como cotas sociais e raciais, Prouni, valorização real do salário mínimo, Bolsa Família, regulamentação do trabalho doméstico, dentre outras, proporcionaram às classes populares nas últimas duas décadas. Soma-se a isso o recrudescimento de ideologias de extrema direita que exacerbam pautas moralistas, militaristas e religiosas, e temos um caldo no qual livros como o de Jeferson Tenório são passíveis de tentativas de censura. O Avesso da Pele, tão humano em sua proposta, torna-se, nas mãos destes grupos, instrumento para nos mostrar o avesso da sociedade que desejamos.
* Sociólogo, Doutor em Sociologia pela Ufrgs
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko