programa bem viver

Abdias do Nascimento estaria denunciando o massacre em Gaza hoje, afirma viúva do intelectual

Nascida nos EUA, Elisa Nascimento foi casada por 38 anos e hoje dirige o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiro

Ouça o áudio:

Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento em 1991 - Foto: Chester Higgins Jr. - Chester Higgins Jr
Quando era deputado, foi convidado pelo Estado de Israel para uma visita a Israel, foi e contestou

Em vida, Abdias do Nascimento não se conformou em manter seus debates apenas em território nacional. O intelectual, artista e político se notabilizou por fazer publicações internacionais, participar e mobilizar eventos em diferentes partes do mundo.

Nesta semana, em que se completam 110 anos do nascimento do fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), o Brasil de Fato conversou com a viúva sobre o legado de Abdias do Nascimento.

Elisa Larkin Nascimento, que esteve 38 anos ao lado do intelectual, defende que Abdias Nascimento não se calaria diante do que está acontecendo na Faixa de Gaza, especialmente desde 7 de outubro de 2023, quando iniciou uma nova etapa do massacre.

"O que está acontecendo na Palestina é essencialmente não só parecido, é essencialmente a mesma coisa que acontece aqui no Brasil contra a população negra", disse em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (15).

"Eu acho que é importante a gente apoiar a posição do nosso presidente, que no âmbito internacional tem sido muito importante em chamar a atenção e ter a coragem de dizer: 'Nós reconhecemos o sofrimento dos nossos irmãos judeus, nós reconhecemos tudo que eles passaram em sofreram, mas o Estado de Israel, não as pessoas judias, não a população judia, mas o Estado de Israel, o que está fazendo na Palestina, não somente desde os dias 7 de outubro, mas muito tempo antes, décadas antes...'"


Elisa Nascimento nasceu nos Estados Unidos e conheceu Abdias do Nascimento, no Brasil, nos anos 1970 / Fernando Frazão/Agência Brasil

Abdias do Nascimento nasceu em Franca, interior de São Paulo, no dia 14 de março de 1914. Como artista, suas pinturas foram exibidas dentro e fora do Brasil. Ele foi professor emérito da Universidade do Estado de Nova York e, dentro da política, foi deputado federal, senador da República e secretário do governo do Estado do Rio de Janeiro.

Ele e Elisa Nascimento se conheceram na década de 1970. Ela é mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova York e doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo). Hoje, dirige o Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros).

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Elisa, na sua opinião existiu na história uma figura tão diversa como Abdias do Nascimento? Ele foi capaz de denunciar o racismo por meio da arte, teatro, política…

Elisa Nascimento: Eu acho que é o seguinte: é importante a gente dizer que a denúncia do racismo é uma coisa, é uma parte do que ele fez. Ele e o povo dele, ele é a coletividade do movimento negro. 

A outra coisa são as proposições. Abdias como o deputado, por exemplo, levou ao Estado brasileiro em 1983 — ou seja, 20 anos antes do marco de 2003, quando nós temos a sanção da lei 10.689, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana; 20 anos antes da instalação da política de cotas nas primeiras universidades públicas, a estadual do Rio de Janeiro e a estadual do país da Bahia, que adotaram programas de ação afirmativa — ele já tinha, em 1983, feita essa proposta ao Estado brasileiro. Não só quando se fala em cotas, porque havia outras medidas de ação compensatória. Ele chamava de compensatória.

Mas o importante é dizer que as cotas não eram só no acesso à universidade pública. Era também no mercado de trabalho, no funcionalismo público. Ele teve um projeto de lei específico para o Itamaraty, que é um bastião de discriminação racial desde a sua fundação, e também nas forças armadas.

A proposta dele, complementada também por uma proposta de lei, criminalizava o racismo. A discriminação racial se tornava um crime qualificado, crime de lesa humanidade.

Tem vários outros projetos dele que — é importante também a gente dizer — não foram simplesmente rechaçados ou engavetados pelo Congresso. Ele soube muito bem articular apoios. Esses projetos foram aprovados em todas as comissões técnicas e, naquela época, a comissão técnica do Congresso não era um palco de palhaçadas feitas para publicação na internet. Eram realmente comissões sérias que levavam os assuntos para o escrutínio mais elevado possível.

Então, os projetos passaram em todo o mundo, nas comissões, e foram impedidos de chegar ao plenário pelo acordo de lideranças, liderada pelo pelo PMDB, pela presidência da Câmara, que era o senhor Direta Já, o senhor constituinte, Ulysses Guimarães.

Eu não não cito o Ulysses pessoalmente, mas como o símbolo, como o exemplo do que era o clima político daquele momento em relação à questão racial.

Então, assim, essas proposições, ele vinha trabalhando desde muito antes. Inclusive na apresentação que ele fez no II Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, no Colloquium, onde ele apresentou aquele que seria o livro publicado mais tarde em português, com o título O Genocídio do Negro Brasileiro. No Festival, ele apresentou em inglês, publicado pela Universidade de Ifé, na Nigéria. Ali tinha toda uma série de proposições que acabam sendo até hoje uma matriz de se pensar em políticas públicas de igualdade racial. 

Essa é, na verdade, a primeira razão da gente estar aqui é a luta contra esse racismo, que mata de tantas formas diferentes.

E como vocês se conheceram?

Eu conheci o Abdias em 1974. Eu já havia visitado o Brasil quatro anos antes, em 1970. Eu estive no intercâmbio e falava um pouquinho de português.

A minha cidade natal é Buffalo, nos Estados Unidos, no extremo oeste do estado de Nova Iorque. Lá é a sede sede do Judiciário Estadual do Estado de Nova York, onde estavam sendo acusados, na justiça, os presos de uma rebelião que aconteceu na Penitenciária de Attica em 1971. Nessa rebelião houve 43 mortes, e os presos rebelados foram acusados, levados à Justiça, processados por todas essas mortes. Todas elas, ficaram provadas, foram causadas pela repressão do Estado de Nova Iorque, então governado por Nelson Rockefeller.

Então, eu deixei a universidade. Eu estava com os meus estudos na Princeton University, e resolvi deixar a Torre de Marfim e voltar para minha cidade para participar da defesa jurídica e política desse grupo de pessoas, 99% negras, alguns indígenas, vários latinos, entre aspas, mas esses são os negros latinos.

Eu já havia trabalhado com a questão do apartheid na África do Sul. Minha universidade tinha investimentos nas empresas que sustentavam o regime do apartheid e também no movimento contra a guerra em Vietnã.

Então, eu tinha um contato com a questão do colonialismo, com a questão do racismo. Sempre entrava em embates teóricos com o pessoal da esquerda, que dizia que a questão toda é a questão de classes, que a luta de classes é a única frente legítima de atuação política, ou seja, o movimento de mulheres, o movimento negro essas outras expressões seriam lutas menores.

Aí no meio disso, uma amiga minha que me conhecia e sabia que eu tinha estado no Brasil, e que eu já era apaixonada pelo Brasil, disse: "Você precisa conhecer um professor aqui que tem ideias parecidas com as suas e ele é brasileiro".

Então, eu fui lá conhecer o professor, que era o Abdias. Ele era um cara de teatro, era um cara das artes. Além de ser militante — que e eu era também — tinha todas essas atuações em campos que, enfim, eu havia trabalhado um pouco como amadora.

Eu pude aprender muito com o Abdias sobre aquelas coisas que já me fascinavam. Também pude atuar ao lado dele de uma forma muito mais adequada àquilo que era a minha maneira de ser no mundo. Eu acompanhei ele durante os últimos 38 anos de vida.

Que sonhos Abdias deixou?

Eu tive a alegria de assistir novamente um filme documentário, ontem, da Aida Marques sobre a vida dele. Ali eu vi ele na Câmara Municipal aqui do Rio de Janeiro, quando recebeu o título de cidadão carioca, e ele disse que queria ver o negro no poder.

Era sonho dele. Ele queria ver a população negra, o povo negro, atingir todos aqueles patamares que a sociedade, que a vida plena oferece, em todas as áreas. A vida dele foi dedicado a isso.

Claro que não é uma coisa plenamente conquistada. Há algumas vitórias, alguns avanços.

Eu acho que, depois que ele partiu, nós temos assistido no mundo das artes e, também na literatura, uma maior interesse e procura pela produção de artistas intelectuais negros.

Eu espero, eu sempre digo, que isso não seja uma bolha transitória de interesse. Eu sei que em alguns setores já se mostrou assim, como, por exemplo, a filantropia. Mas eu espero que, em outras áreas, nós possamos não ter uma bolha mercadológica passageira, e sim realmente uma abertura de novos espaços. 

Agora, tem uma área em que certamente ele tinha um sonho que está longe de ser realizado. Essa é a área da violência. Não apenas policial — claro que em grande parte policial — mas todas as violências que são sofridas pela população negra por conta do racismo.

Nós temos uma média de 70 pessoas morrendo por dia. Nós temos a juventude negra, as famílias negras, a juventude negra tendo seus lares invadidos de uma forma violenta a todo momento, enquanto uma pessoa branca
que é abordada pela polícia xinga a própria polícia manda sair fora de sua casa. Ou seja, nós temos uma situação racial nesse sentido muito séria.

Um sonho do Abdias seria um enfrentamento sério e eficaz desta violência que abate a população negra e a juventude e negra.

Eu não poderia deixar de dizer também que eu sei que o Abdias hoje estaria apoiando o nosso presidente [Luiz Inácio Lula da Silva] nas suas posições sobre Israel e sobre o genocídio que está acontecendo na Palestina.

É muito importante que a gente, enquanto movimento negro, assuma o fato de que o que está acontecendo na Palestina é não só parecido, é essencialmente a mesma coisa que acontece aqui no Brasil contra a população negra.

Porque é uma questão que tem um fundo racial muito importante, um fundo racial que emerge da natureza colonialista dessa ocupação da Palestina, dessa desumanização da população palestina, que é tida como uma terra sem gente e uma gente sem terra.

Esse slogan foi inventado para justificar o roubo das terras, e não estou falando apenas da ocupação das próprias casas das pessoas.

Eu acho que é importante a gente apoiar a posição do nosso presidente, que no âmbito internacional tem sido muito importante em chamar a atenção e ter a coragem de dizer: [Emocionada] 'Nós reconhecemos o sofrimento dos nossos irmãos judeus, nós reconhecemos tudo que eles passaram em sofreram, mas o Estado de Israel, não as pessoas judias, não a população judia, mas o Estado de Israel, o que está fazendo na Palestina, não somente desde os dias 7 de outubro, mas muito tempo antes, décadas antes...'

Isso é eu sei que o Abdias estaria… E eu agradeço a oportunidade que você me dá de dizer isso, porque é difícil a gente poder se expressar sobre esse assunto.

Ele, quando era deputado, foi convidado pelo Estado de Israel para uma visita a Israel, e ele foi. E, lá mesmo, ele contestou, ele perguntou às autoridades que faziam o tour, ele perguntou sobre a relação deles com a África do Sul, com o apartheid. 

Ele teve essa oportunidade e não foi simplesmente fazer a visita. Ele interpelou essas autoridades sobre essa questão.


Confira como ouvir e acompanhar o Programa Bem Viver nas rádios parceiras e plataformas de podcast / Brasil de Fato

Sintonize

programa de rádio Bem Viver vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 11h às 12h, com reprise aos domingos, às 10h, na Rádio Brasil Atual. A sintonia é 98,9 FM na Grande São Paulo. A versão em vídeo é semanal e vai ao ar aos sábados a partir das 13h30 no YouTube do Brasil de Fato e TVs retransmissoras: Basta clicar aqui.

Em diferentes horários, de segunda a sexta-feira, o programa é transmitido na Rádio Super de Sorocaba (SP); Rádio Palermo (SP); Rádio Cantareira (SP); Rádio Interativa, de Senador Alexandre Costa (MA); Rádio Comunitária Malhada do Jatobá, de São João do Piauí (PI); Rádio Terra Livre (MST), de Abelardo Luz (SC); Rádio Timbira, de São Luís (MA); Rádio Terra Livre de Hulha Negra (RN), Rádio Camponesa, em Itapeva (SP), Rádio Onda FM, de Novo Cruzeiro (MG), Rádio Pife, de Brasília (DF), Rádio Cidade, de João Pessoa (PB), Rádio Palermo (SP), Rádio Torres Cidade (RS); Rádio Cantareira (SP); Rádio Keraz; Web Rádio Studio F; Rádio Seguros MA; Rádio Iguaçu FM; Rádio Unidade Digital ; Rádio Cidade Classic HIts; Playlisten; Rádio Cidade; Web Rádio Apocalipse; Rádio; Alternativa Sul FM; Alberto dos Anjos; Rádio Voz da Cidade; Rádio Nativa FM; Rádio News 77; Web Rádio Líder Baixio; Rádio Super Nova; Rádio Ribeirinha Libertadora; Uruguaiana FM; Serra Azul FM; Folha 390; Rádio Chapada FM; Rbn; Web Rádio Mombassom; Fogão 24 Horas; Web Rádio Brisa; Rádio Palermo; Rádio Web Estação Mirim; Rádio Líder; Nova Geração; Ana Terra FM; Rádio Metropolitana de Piracicaba; Rádio Alternativa FM; Rádio Web Torres Cidade; Objetiva Cast; DMnews Web Rádio; Criativa Web Rádio; Rádio Notícias; Topmix Digital MS; Rádio Oriental Sul; Mogiana Web; Rádio Atalaia FM Rio; Rádio Vila Mix; Web Rádio Palmeira; Web Rádio Travessia; Rádio Millennium; Rádio EsportesNet; Rádio Altura FM; Web Rádio Cidade; Rádio Viva a Vida; Rádio Regional Vale FM; Rádio Gerasom; Coruja Web; Vale do Tempo; Servo do Rei; Rádio Best Sound; Rádio Lagoa Azul; Rádio Show Livre; Web Rádio Sintonizando os Corações; Rádio Campos Belos; Rádio Mundial; Clic Rádio Porto Alegre; Web Rádio Rosana; Rádio Cidade Light; União FM; Rádio Araras FM; Rádios Educadora e Transamérica; Rádio Jerônimo; Web Rádio Imaculado Coração; Rede Líder Web; Rádio Club; Rede dos Trabalhadores; Angelu'Song; Web Rádio Nacional; Rádio SINTSEPANSA; Luz News; Montanha Rádio; Rede Vida Brasil; Rádio Broto FM; Rádio Campestre; Rádio Profética Gospel; Chip i7 FM; Rádio Breganejo; Rádio Web Live; Ldnews; Rádio Clube Campos Novos; Rádio Terra Viva; Rádio interativa; Cristofm.net; Rádio Master Net; Rádio Barreto Web; Radio RockChat; Rádio Happiness; Mex FM; Voadeira Rádio Web; Lully FM; Web Rádionin; Rádio Interação; Web Rádio Engeforest; Web Rádio Pentecoste; Web Rádio Liverock; Web Rádio Fatos; Rádio Augusto Barbosa Online; Super FM; Rádio Interação Arcoverde; Rádio; Independência Recife; Rádio Cidadania FM; Web Rádio 102; Web Rádio Fonte da Vida; Rádio Web Studio P; São José Web Rádio - Prados (MG); Webrádio Cultura de Santa Maria; Web Rádio Universo Livre; Rádio Villa; Rádio Farol FM; Viva FM; Rádio Interativa de Jequitinhonha; Estilo - WebRádio; Rede Nova Sat FM; Rádio Comunitária Impacto 87,9FM; Web Rádio DNA Brasil; Nova onda FM; Cabn; Leal FM; Rádio Itapetininga; Rádio Vidas; Primeflashits; Rádio Deus Vivo; Rádio Cuieiras FM; Rádio Comunitária Tupancy; Sete News; Moreno Rádio Web; Rádio Web Esperança; Vila Boa FM; Novataweb; Rural FM Web; Bela Vista Web; Rádio Senzala; Rádio Pagu; Rádio Santidade; M'ysa; Criativa FM de Capitólio; Rádio Nordeste da Bahia; Rádio Central; Rádio VHV; Cultura1 Web Rádio; Rádio da Rua; Web Music; Piedade FM; Rádio 94 FM Itararé; Rádio Luna Rio; Mar Azul FM; Rádio Web Piauí; Savic; Web Rádio Link; EG Link; Web Rádio Brasil Sertaneja; Web Rádio Sindviarios/CUT.

A programação também fica disponível na Rádio Brasil de Fato, das 11h às 12h, de segunda a sexta-feira. O programa Bem Viver está nas plataformas: Spotify, Google Podcasts, Itunes, Pocket Casts e Deezer. 

Assim como os demais conteúdos, o Brasil de Fato disponibiliza o programa Bem Viver de forma gratuita para rádios comunitárias, rádios-poste e outras emissoras que manifestarem interesse em veicular o conteúdo. Para ser incluído na nossa lista de distribuição, entre em contato por meio do formulário.

Edição: Matheus Alves de Almeida