Entre 12 e 14 de março, Brasília sediou encontros e atos organizados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) para pressionar pela efetivação de novas práticas que façam frente ao poder de indústrias beneficiárias de barragens, especialmente a mineral. Algumas medidas defendidas já estão previstas na nova lei 14.755, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em novembro passado, e aguardam arranjos interministeriais; outras, já vislumbram um passo a mais no debate.
Em ato dentro do Congresso Nacional, na tarde do dia 12, deputados federais que apoiam as vítimas de grandes empreendimentos e empresas beneficiárias de barragens em todo país marcaram presença para fazer coro e exigir que o processo ande. É justamente o pedido da campanha do MAB sob o lema "É tempo de Avançar", que também promoveu atos em outros 8 estados em alusão ao 14 de março, Dia Internacional de Luta em Defesa dos Rios, Contra as Barragens, Pela Água e Pela Vida.
Deputados como Célia Xakriabá (PSOL-MG) e os petistas Josias Gomes, Airton Faleiro, Padre João e Bohn Gass exaltaram o marco legal que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), mas também fizeram cobranças. "A nossa tarefa aqui do Congresso é pressionar o governo para que seja mais nossa e que honre de fato o que nós votamos aqui", apontou o parlamentar mineiro Padre João.
Moisés Borges, da coordenação nacional do MAB, defendeu a visão estratégica da jornada para amadurecer o arcabouço sobre o tema, sob o risco de atrapalhar uma luta de 33 anos, que se mistura à própria origem do movimento. "Há todo um caminho a ser percorrido. Por isso, a nossa insistência agora não é ter uma regulamentação já essa semana, sob o risco de ela esvaziar a própria lei e atender a interesses empresariais. Uma lei que é tão importante para nós e que a gente vem batalhando há mais de 30 anos", enfatizou.
Os rompimentos das barragens de Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019, cujos impactos ambientais e sociais são sentidos até hoje, se tornaram símbolos da impunidade das empresas responsáveis. Para o deputado João, tratam-se de dois crimes ambientais que, embora tenham ajudado a sensibilizar o Congresso Nacional, ainda não tiveram desfechos favoráveis e continuam sendo reproduzidos. "Por isso é preciso detalhar as tarefas de cada órgão, garantir um fundo com recursos, e como será encaminhado o dia a dia das resoluções de conflitos", defende.
Uma das resoluções da PNAB é a criação de um órgão colegiado tripartite, a ser formado entre governos, empreendedores e sociedade civil. Para assegurar os direitos das populações atingidas por barragens e promover práticas socialmente sustentáveis em empreendimentos com barragens, também está prevista a criação de um fundo. Ele seria custeado pelos empreendedores, privados ou públicos, e administrado pelo órgão colegiado.
De acordo com Borges, além de agilizar ressarcimentos e auxílios emergenciais, uma queixa histórica em todas as regiões do país, a medida também impõem avanços na negociação de direitos fundiários. "A garantia dos acordos coletivos, não a negociação individual, a questão dos reassentamentos como ordem de prioridade, ao invés de uma indenização por compra de terra ou por compra de casa. Assim, você garante a reprodução de vida, garantido a manutenção de territórios", pontua.
Rompimento de barragens inaugurou nova fase de lutas
Pelo peso simbólico e ineditismo, além das 291 mortes somadas, os desastres de Mariana e Brumadinho também acrescentaram uma nova frente de luta ao MAB e outros movimentos sociais parceiros. Passou-se a prestar mais atenção aos atingidos por rompimentos ou que vivem em locais de risco extremo, visto que no início a luta se restringia aos efeitos das construções das barragens, frequentemente ligada à inundação de imensos territórios habitados ou conservados pelas populações locais.
Por ocorrer sem aviso prévio e por ter consequências difíceis de calcular, os rompimentos acabam sendo mais impactantes e midiáticos. Mesmo assim, a justiça costuma ser ineficiente para impor sanções às empresas responsáveis, que por sua vez também recorrem a artifícios para arrastar o problema sem amparar atingidos e desabrigados. Em janeiro deste ano, as mineradoras Vale, BHP e Samarco foram condenadas a pagar R$ 47,6 bilhões pelo crime em Mariana, e mesmo assim o MAB calcula que o valor deveria ser pelo menos 10 vezes maior.
Outro crime com contornos semelhantes tem ocorrido em Maceió, em uma das regiões que já foi e deveria continuar a ser uma das mais valorizadas da capital alagoense. No fim de 2023, vários bairros foram interditados após o afundamento de uma mina de sal-gema da Braskem, que funcionava há mais de três décadas de forma silenciosa sob os pés de milhares de famílias.
Maurício da Silva, do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem, trouxe seu relato sobre a situação em bairros como Flechais, Quebrados, Marquês de Abrantes e Bom Parto. "Hoje, essas comunidades estão vivendo o total isolamento socioeconômico de Maceió, estão apartadas de todo o resto. A Braskem, conseguiu fazer isso com Maceió. Então é muito difícil você viver dentro de uma comunidade onde você cresceu, em uma comunidade viva e ver ela morrer da forma que ela se encontra hoje”, lamenta.
Mesmo que não tenha sido a causa direta das inundações que ocorreram em setembro e depois em novembro, no Vale do Taquari (RS), as barragens também são um fator de risco. Margareth Augustine, moradora de Roca Sales, uma das cidades mais afetadas na região junto de Lajeado e Arroio, relembrou a falta de amparo das autoridades locais e do apoio recebido por organizações da sociedade civil. "Só na nossa cidade, que é uma cidade de 11 mil habitantes, 16 mortos. Deu 52 no Vale do Taquari. Até hoje nós não temos a ajuda do poder público, nem do município, nem do estado", afirma.
Algumas alterações foram feitas no texto original da lei da PNAB até sua aprovação. Um trecho vetado por Lula após acordo estimava os valores a serem pagos para trabalhadores afetados, que poderiam chegar a 50 vezes o salário mínimo em casos gravíssimos. Outro trecho excluído previa assegurar os trabalhadores dos empreendimentos, vítimas frequentes e cujas mortes costumam ser invisibilizadas ou subdimensionadas.
Por outro lado, entrou um artigo que acrescenta direitos específicos para os atingidos que utilizam a terra em regime de economia familiar ou para produção sustentável. "Uma coisa que a gente percebia muito nos territórios e que ainda não se alterou: quando a barragem chega, ela expulsa essas populações que ali já residiram. E aí, ao sair, o que vem é o agronegócio, vem os projetos de irrigação, o turismo, e aqueles que eram povos originários já não tem mais direitos sobre seu próprio território. Então isso também a lei, ela já dá outra dinâmica", salienta Borges.
A noção de soberania popular sobre territórios, integrada ao uso consciente e sustentável das suas riquezas, também é defendida por José Sobreiro Filho, professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. "O olhar para uma agricultura sustentável como os povos atingidos e as atingidas têm proposto para a gente, sobretudo com o MAB, é algo fundamental. É uma saída que valoriza os saberes tradicionais ao passo em que propõe uma alternativa aos modelos predatórios postos na atualidade", defende.
Edição: Matheus Alves de Almeida