É preciso que a sociedade avance na redução do estigma associado à violência autoprovocada, também conhecida por automutilação. A afirmação é da psicóloga e doutoranda na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Aline Gonçalves.
"Enquanto sociedade, precisamos avançar no entendimento da violência autoprovocada enquanto uma das muitas maneiras de manifestação do sofrimento humano, caminhando em direção à redução do estigma, do entendimento dos diferentes fatores de risco, ampliando o debate para além de uma perspectiva de responsabilização da pessoa por seu sofrimento", afirma.
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No estado do Rio, esse tipo de violência atinge principalmente mulheres (76%), na faixa etária 20 a 29 anos (34%), segundo dados Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Em 2024, já são mais de 2 mil notificações, a maioria na capital fluminense, seguida por Petrópolis, na Região Serrana, e Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a psicóloga Aline Gonçalves fala sobre as manifestações do sofrimento mental na perspectiva de gênero e desigualdade social e da incidência de casos de autolesão na adolescência, tema de suas pesquisas no Departamento de Estudos sobre Saúde e Violência Jorge Careli (Claves/ENSP).
"É um processo complexo e doloroso, em que os jovens podem se sentir particularmente vulneráveis e recorrer a comportamentos impulsivos, agressivos e até suicidas para lidar com seus desafios, pressões e expectativas sociais. Muitos têm dificuldades em expressar como se sentem por receio de serem julgados ou não validados", completa.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato RJ: Pode explicar o que é violência autoprovocada e a relação com a saúde mental?
Aline: A violência autoprovocada é quando a pessoa intencionalmente provoca algum tipo de lesão a si mesma. O que compreende tanto o comportamento suicida, que envolve a ideação, ameaças, tentativas e atos suicidas; quanto a autolesão, também conhecida por automutilação, que compreende todo ato de lesionar o próprio corpo sem a intenção suicida consciente. Os cortes são o método de autolesão mais conhecidos, mas existem outras formas de autolesão que devemos ficar atentos, tais como: as queimaduras, os arranhões, as mordidas, bater partes do corpo contra a parede ou objetos e cutucar feridas.
A saúde mental é um dos aspectos relacionados à violência autoprovocada, com a presença de um sofrimento psíquico considerável entre aqueles com comportamento suicida ou de autolesão.
Estudos indicam a associação com depressão, ansiedade, transtornos de uso de substâncias e os transtornos de personalidade. Contudo, experiências de violências, a exposição a evento de vida negativos, tentativa anterior de suicídio ou de pessoa próxima, colegas que se ferem ou informações na mídia, o contexto familiar, social e econômico também são aspectos importantes no entendimento do fenômeno, que não deve ser considerado de forma isolada ou individualizada.
Já foram mais de 2 mil casos desse tipo de violência este ano no estado, a maioria mulheres jovens. Como você analisa esse fenômeno do ponto de vista da saúde pública?
A saúde pública permite compreender a questão em uma perspectiva mais ampla, em que medida o contexto social, cultural e econômico impactam de maneira significativa as nossas condições de vida, as possibilidades de ser e estar no mundo.
A violência autoprovocada evidencia uma forma de expressão do sofrimento amparado no social, especialmente ao considerarmos a sua significativa prevalência em negros, indígenas, população LGBTQIA+, baixo nível socioeconômico e em relação à determinada condição de trabalho/desemprego.
Quando nos detemos a observar o fenômeno sob a perspectiva de gênero, os dados revelam maior prevalência de tentativa de suicídio e autolesão entre mulheres jovens e de ato suicida em homens. Homens relutam mais a buscar ajuda, tendem a adotar métodos mais letais e é prevalente entre idosos, momento em que rompem com o ideal social de gênero de provedor do lar.
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O contexto de desigualdade de gênero, de violências (doméstica, sexual e psicológica) são significativos para o aumento do risco de violência autoprovocada entre as mulheres. Precisamos considerar e nos aprofundarmos no entendimento a respeito dos estereótipos de gênero e o quanto impactam a elaboração e a expressão desse fenômeno.
Esse tipo de violência também é recorrente entre adolescentes. Pode falar mais sobre a incidência nessa faixa etária?
A adolescência é um período da vida marcado por transformações significativas de ordem psicológica, social e biológica. Este é um momento de vulnerabilidade subjetiva para os adolescentes, que pode ser amplificado por diferentes fatores do seu entorno, podendo ser de ordem social, cultural e econômica.
É um processo complexo e doloroso, em que os jovens podem se sentir particularmente vulneráveis e recorrer a comportamentos impulsivos, agressivos e até suicidas para lidar com seus desafios, pressões e expectativas sociais. Muitos têm dificuldades em expressar como se sentem por receio de serem julgados ou não validados.
Como os pais, a escola, a sociedade, podem ficar atentos sobre esse tema e reconhecer comportamentos de risco?
Pais e responsáveis, profissionais da comunidade escolar ou que atuam com adolescentes devem estar atentos à mudança repentina de comportamento - comportamento mais retraído, entristecido, isolado, se usa roupas ou objetos que escondem partes do corpo, ter amigos que se ferem ou história de suicídio no círculo de amizade, se participa de grupos on-line sobre o tema, vivência de bullying, cyberbullying, racismo ou perda de pessoa próxima.
Ao identificar um comportamento de risco, como a família e pessoas próximas devem agir?
É importante transmitir ao adolescente que [o adulto] deseja entender a sua experiência, que está preocupado com seu bem-estar e validar a sua experiência através de uma postura neutra, sem julgamentos e reações emocionais excessivas de muita preocupação ou estar muito chateado.
Incentivar a busca por ajuda profissional também é essencial.
Enquanto sociedade, precisamos avançar no entendimento da violência autoprovocada enquanto uma das muitas maneiras de manifestações do sofrimento humano, caminhando em direção à redução do estigma, do entendimento dos diferentes fatores de risco, ampliando o debate para além de uma perspectiva de responsabilização da pessoa por seu sofrimento.
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Precisamos ainda fortalecer as políticas públicas de prevenção, políticas de garantia dos direitos mais básicos da pessoa e mobilizar os diferentes setores da sociedade como agentes promotores de bem-estar e saúde mental.
Como se dá o acolhimento desses pacientes na rede de saúde?
O acolhimento deve orientar-se através da escuta qualificada e da compreensão do sofrimento subjacente a cada ato. Tanto o suicídio quanto a autolesão têm um simbolismo e a dor tende a ser o principal elemento.
Na identificação de uma pessoa em situação de vulnerabilidade ou que apresente um desconforto emocional agudo, ela deve ser questionada a respeito de ideias ou plano suicida, se já se feriu de propósito. É realizada a avaliação de cada caso, buscando reconhecer a ideação, plano ou tentativa de suicídio e autolesão; os fatores pessoais, sociais, familiar e situações recentes que podem gerar sofrimento, seus sentimentos e demandas, se há a presença de alguma psicopatologia concomitante e reconhecer, acionar a sua rede de apoio, quando disponibilizam.
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Visando o acolhimento integral e da necessidade de avaliação psiquiátrica, é realizado o encaminhamento ao Centro de Atenção Psicossocial [CAPS]. O acompanhamento terapêutico pela equipe depende do caso, mas é recomendado o trabalho integrado com as demais instituições que constituem a rede de atenção a saúde, assistência social, educação, conselho tutelar, além de instituições que prestam algum tipo de serviço à comunidade, buscando um acolhimento articulado e integrado.
Destaco ainda a importância da notificação dos casos de violência autoprovocada por todo profissional de saúde, através da ficha de notificação, em até 24 horas (o que é previsto em lei), além do papel das instituições de ensino públicas e privadas, na identificação de casos e devido encaminhamento.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Jaqueline Deister