Entrevista

Espaço que acolhe mulheres vítimas de violência no RS convive com risco de reintegração de posse desde 2019

A Casa de Referência Mulheres Mirabal existe desde novembro de 2016 e já realizou mais de 700 acolhimentos

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Nana é coordenadora da Casa de Referência Mulheres Mirabal, que acolhe mulheres em situação de violência em Porto Alegre desde 2016 - Foto: Luiza Castro/Sul21

“A Casa Mirabal abriga aquela mulher com mochila nas costas que não tem para onde ir porque tem medo de fazer boletim de ocorrência, porque tem medo de denunciar por não ter certeza de que continuará viva depois que sair a medida protetiva. É nesse espaço que está a Mirabal. E ela é um serviço essencial para Porto Alegre e para toda região.” A afirmação é de uma das fundadoras do espaço, e também integrante do Movimento de Mulheres Olga Benário, Priscila Voigt. 

A Casa de Referência Mulheres Mirabal, segunda casa de acolhimento e abrigamento de mulheres em situação de violência organizada pelo movimento, existe desde novembro de 2016 após um processo de ocupação. Desde então já foram feitos mais de 700 acolhimentos, entre mulheres e crianças. 

Desde 2019, a Mirabal vem sofrendo um processo de reintegração de posse movido pela gestão do ex-prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) e mantido pela gestão de Sebastião Melo (MDB). Mesmo assim segue atendendo mulheres vítimas de violência e buscando um local para estabilizar o serviço.

“As mulheres e crianças são acolhidas e com o tempo, vamos montando um planejamento que envolve todas as esferas de vida daquela família, envolvendo renda, moradia, escola. Para isso, acionamos os serviços públicos e buscamos fortalecer a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. A chegada é sempre algo que exige paciência e dedicação, idas em consultórios e locais de atendimento dos mais diversos”, relata Nanashara Sanches, mais conhecida como Nana, integrante da coordenação nacional do Movimento de Mulheres Olga Benário e da Casa de Referência Mulheres Mirabal, em entrevista ao Brasil de Fato RS

A Casa Mirabal faz parte de uma importante ferramenta no que tange à luta contra a violência de gênero, e está inserida numa rede de apoio ainda frágil no RS, as casas-abrigo. Em todo o estado, de acordo com a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, são 14 espaços.

“O principal gargalo no enfrentamento à violência é a misoginia das estruturas do sistema capitalista, que não se preocupa em resolver, de fato, o problema. É por isso que vemos a violência contra as mulheres só aumentar”, expõe a coordenadora. 

No RS, segundo dados do Observatório de Violência Doméstica da Secretaria Estadual da Segurança Pública (SSP), houve 55.623 registros de violência contra as mulheres em 2023, sendo 87 casos de feminicídios e 231 tentativas. Já pelo levantamento do Observatório Lupa Feminista foram 102 feminicídios. Também no ano passado, 137 pessoas perderam suas mães para o feminicídio, sendo 82 crianças e adolescentes, de acordo com o Mapa dos Feminicídios produzido pela Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) da Polícia Civil.

Brasil de Fato RS - Para começarmos, conte como está a atual situação da Casa de Referência Mulheres Mirabal?

Nana Sanches - A Casa de Referência Mulheres Mirabal segue sofrendo um processo de reintegração de posse movido pela gestão de Marchezan e mantido pela gestão de Sebastião Melo. Também seguimos atendendo mulheres vítimas de violência e buscando um local para estabilizar nosso serviço.

A Mirabal tem respaldo de diversas entidades, mas ainda encontramos dificuldades nas esferas do poder Executivo e do Judiciário. Somos criminalizadas por sermos um movimento social feminista e marxista que organiza trabalhadoras para atuar nos principais problemas da sociedade. E é por isso que a Mirabal vai fazer oito anos de atuação contra a violência às mulheres do estado do RS.

BdFRS - Quantas mulheres estão no espaço no momento? Como essas mulheres chegam até vocês, quais são as principais violências que elas enfrentam? 

Nana - Não divulgamos o número de abrigadas por uma questão de segurança, mas são mulheres que vêm de outros serviços municipais que acompanham casos de violência e que não encontram outro serviço para essas mulheres.

O principal problema é a violência doméstica que, ao ser interrompida, pode evitar feminicídios. Nossa lógica é trabalhar com a prevenção e a reeducação de mulheres e de homens para acabar com a violência de gênero.


"Nossa lógica é trabalhar com a prevenção e a reeducação de mulheres e de homens para acabar com a violência de gênero" / Foto: Igor Sperotto

BdFRS - Na última sexta-feira (8) o governo do estado anunciou a nova sede do Centro de Referência da Mulher em Porto Alegre Vânia Araújo Machado (CRM VAM), assim como a nova identidade visual do Ônibus Lilás. Como tu analisa a situação do atendimento à mulheres vítimas de violência no estado?

Nana - A entrega desses equipamentos é fruto da luta das mulheres gaúchas. Também é fruto do aumento da violência contra as mulheres no RS. Mais de 75% dos casos de violência no estado são contra mulheres. A maioria mulheres negras e indígenas. 

Se olharmos o número de delegacias especializadas no atendimento às mulheres, assim como de centros de referência e abrigos, veremos que são poucos. O interior do estado segue sem esse tipo de atendimento. 

O fim da Secretaria de Mulheres, que ocorreu no governo Sartori (MDB), teve o aumento da violência contra as gaúchas como consequência. 

A entrega desses equipamentos que citaste na pergunta são importantes, mas ainda temos muito trabalho pela frente para reduzir os casos de violência contra as mulheres em nosso estado.

BdFRS - Quais os principais desafios e gargalos quando falamos no combate à violência contra a mulher? O que precisa ser feito efetivamente? 

Nana - Precisamos atuar nos territórios. A Mirabal faz parte de uma rede de casas criadas pelo Movimento de Mulheres Olga Benario e nós acreditamos que cada bairro deveria ter uma casa de referência onde as mulheres tivessem atendimento especializado, cursos, palestras, geração de renda, a exemplo da Mirabal e todas as 21 Casas que construimos Brasil afora.

A gente não acredita em aumentar o poder repressivo do Estado, isso não diminui o problema. A melhor forma de combater este problema é atuando de forma interdisciplinar em um equipamento próprio para as mulheres vítimas de violência e seus filhos. 

Nos postos de saúde, hospitais, CRAS E CREAS, as trabalhadoras veem que existe violência e querem resolver, mas o Estado não garante equipamentos que tirem essa mulher da situação de violência. A compra (e venda) de vagas em hotéis não resolve o problema, nem de longe. É só uma política para injetar dinheiro público em empresas privadas. 

O principal gargalo no enfrentamento à violência é a misoginia das estruturas do sistema capitalista, que não se preocupa em resolver, de fato, o problema. E é por isso que vemos a violência contra as mulheres só aumentar. 

O principal problema é a violência doméstica que, ao ser interrompida, pode evitar feminicídios

BdFRS - O que a violência doméstica revela sobre os agressores e as vítimas? 

Nana - Revela que o machismo, assim como o racismo, são pilares do capitalismo. Através do machismo e do racismo, recebemos menos, estamos nos piores postos de trabalho e somos violentadas. A violência de gênero e raça são efeitos colaterais de um sistema econômico que nos diferencia para obter mais lucro. Na prática, ele ocasiona tantos feminicídios, principalmente entre as mulheres negras, que sofrem mais opressões. 

BdFRS - Vocês fazem acompanhamento das mulheres após elas saírem da Casa?

Nana - Sim, seguimos acompanhando com os serviços jurídicos e/ou psicológicos, além de manter a rede de ex-abrigadas e acolhidas para organizar e participar de cursos e campanhas específicas da Casa, como o Natal Solidário, por exemplo. 

BdFRS - Das mulheres atendidas, alguma voltou para o agressor?

Nana - Sempre há casos que perdemos para a violência. Mas como a violência de gênero é cíclica, muitos casos acabam retornando, após, para a Casa. Há casos também em que há uma mudança no parceiro, através de tratamento e acompanhamento. 

O fim da Secretaria de Mulheres, que ocorreu no governo Sartori, teve o aumento da violência contra as gaúchas como consequência

BdFRS - Algum caso, em especial, te marcou?

Nana - Vários. Acho que um dos mais interessantes ocorreu com uma mulher que abriu seu próprio salão de beleza, está em outra relação e se reconstruiu completamente. Ela mantém contato com a Casa até hoje, tornando-se uma apoiadora. É muito gratificante vê-la bem e feliz. 

BdFRS - Como o movimento trabalha com as mulheres e as crianças que chegam ao local?

Nana - As mulheres e crianças são acolhidas e com o tempo, vamos montando um planejamento que envolve todas as esferas de vida daquela família, envolvendo renda, moradia, escola. Para isso, acionamos os serviços públicos e buscamos fortalecer a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. 

A chegada é sempre algo que exige paciência e dedicação, idas em consultórios e locais de atendimento dos mais diversos. 

O Rio Grande do Sul está sendo marcado por diversos retrocessos

BdFRS - Como tu analisa a violência de gênero no estado?

Nana - O Rio Grande do Sul está sendo marcado por diversos retrocessos. As privatizações e os cortes de investimento em áreas voltadas às políticas pela vida das mulheres têm causado uma piora significativa da vida das mulheres trabalhadoras. 

Estudos revelam que a piora na qualidade de vida causa e aumenta a violência, assaltos e assassinatos. Infelizmente estamos vendo isto de perto, fruto das duas últimas gestões estaduais de Sartori e de Leite, ambas comprometidas com a política de desmonte do Estado e com os grandes empresários que sugam os recursos públicos para seus interesses privados. 

BdFRS - Estamos no mês em que se celebra a luta das mulheres, que mensagem tu gostarias de deixar?

Nana Sanches - Gostaria de deixar uma mensagem de esperança para as mulheres trabalhadoras. Lutar sozinha nesse sistema é muito difícil. Lidar com violência, falta de emprego, de moradia, de creche são questões graves que só podem ser enfrentadas coletivamente. É importante que todas as mulheres atuem em um coletivo político para estudar e atuar por uma sociedade melhor. A luta é o único caminho.

 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira