Em agosto de 2008, o braço brasileiro da mineradora britânica Anglo American obteve do BNDES um financiamento de cerca de R$ 64 milhões, parte de um empréstimo bilionário para a exploração de minério de ferro no Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais e para a construção de um mineroduto de cerca de 550 km. Essa parcela dos R$ 2,3 bilhões concedidos pelo banco de desenvolvimento naquele ano para a obra tinha um diferencial: era proveniente do BNDES Finem – Meio Ambiente, produto voltado para investimentos em sustentabilidade. Ao longo dos anos seguintes à concessão do empréstimo “verde” – que teve apenas 17% do valor efetivamente desembolsado –, porém, o empreendimento da Anglo American colecionou violações ambientais e entrou na mira de outro órgão federal.
Entre 2013 e 2018, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou R$ 79,1 milhões em multas contra a Anglo American, apenas considerando as infrações ambientais ligadas ao projeto financiado pelo BNDES. Ao todo, foram dez autos de infração que variam entre R$ 50,5 mil e R$ 17,5 milhões cada um. As primeiras multas ao empreendimento –idealizado pelo ex-bilionário Eike Batista, mas conduzido pela multinacional – foram aplicadas entre 2013 e 2017 pelo não atendimento de condicionantes ambientais e outras medidas estabelecidas na licença de instalação.
A maior parte dos autos foi lavrada entre abril e maio de 2018, quando o Mineroduto Minas-Rio, que leva o ferro extraído pela empresa em Conceição do Mato Dentro, a 160 km de Belo Horizonte, para o Porto do Açu, no litoral norte do Rio de Janeiro, teve dois rompimentos.
Um levantamento da Agência Pública com base em dados da instituição revela que o "banco nacional do desenvolvimento sustentável" – como se autointitula o BNDES em seu site – emprestou mais de R$ 1,8 bilhão oriundo de instrumentos financeiros sustentáveis para empresas que somam R$ 590 milhões em multas aplicadas pelo órgão ambiental. A lista de beneficiadas com esses empréstimos "sustentáveis" que foram multadas pelo Ibama inclui também gigantes envolvidas em escândalos ambientais, como a Vale e a Braskem.
No caso da Anglo, o vazamento de quase mil toneladas de minério de ferro atingiu os rios da região de Santo Antônio do Grama (MG), afetando o abastecimento de água potável das comunidades locais, que já sofriam com outros impactos do empreendimento, como a poeira e o barulho gerados pelo mineroduto. Na esteira do desastre ambiental, famílias que entraram com ações judiciais contra a operação da empresa ainda foram ameaçadas, precisando entrar no programa estadual de proteção a defensores de direitos humanos.
A despeito de colecionar lucros bilionários e estar entre as 50 empresas que mais receberam recursos do BNDES, nenhuma das multas recebidas pela Anglo American foi paga até o momento.
Em nota enviada à Pública, a empresa afirmou ter apresentado defesa em relação às multas recebidas e que "o empréstimo, liquidado em 2016 de forma antecipada, tinha o objetivo de realizar os programas ambientais, cumpridos de acordo com o previsto no Licenciamento Ambiental". A Anglo American não informou, porém, a razão da liquidação antecipada. A empresa afirmou também manter "uma série de monitoramentos ambientais dentro de suas áreas de operação e no entorno do empreendimento Minas-Rio" e "um diálogo aberto e transparente com as comunidades anfitriãs". Leia a nota na íntegra.
Os quase R$ 2 bilhões destinados pelo banco por meio de instrumentos sustentáveis a empresas multadas representam cerca de um terço do total despendido entre 2006 e novembro de 2023 com o Fundo Clima e com os instrumentos financeiros "Meio Ambiente" e "Meio Ambiente – Incentivada A". Do valor total contratado, as empresas multadas desembolsaram R$ 976 milhões até a publicação desta reportagem. No levantamento não foram consideradas as multas canceladas, prescritas, suspensas sem depósito judicial, ou que foram baixadas por conta de recursos deferidos.
Regras do banco impedem apoio a quem cometeu crime contra o meio ambiente
Segundo o site do BNDES, podem ser contemplados na modalidade "Meio Ambiente" empreendimentos que promovam a redução do uso de recursos naturais e materiais, recuperação e conservação de ecossistemas e biodiversidade, planejamento e gestão ambiental, recuperação de passivos ambientais, eficiência energética e aquisição de veículos, máquinas e equipamentos eficientes.
Já o Fundo Clima, paralisado durante o governo Bolsonaro, pode ser destinado a operações relacionadas ao desenvolvimento tecnológico, à redução de emissões de gases do efeito estufa e à adaptação às mudanças do clima e aos seus efeitos. Na semana passada, o banco de desenvolvimento anunciou que o fundo vai voltar à ativa, com pouco mais de R$ 10 bilhões de recursos.
Na página "Atividades, empreendimentos e itens não apoiáveis pelo BNDES", a instituição afirma não fornecer "apoio financeiro a clientes condenados, seja na esfera administrativa ou judicial, por atos que envolvam: […] crime contra o meio ambiente". Afirma ainda que, "no caso de ter havido uma condenação pelos atos acima, a contratação ficará impedida até a comprovação da regularização da situação pelo cliente". Dentre as multas analisadas pela Pública, a maior parte ainda está em fase de contestação e análise de recursos, sem condenação definitiva.
Questionado pela reportagem, o BNDES reafirmou essas regras, acrescentando que "operações de maior risco estão sujeitas a procedimentos mais detalhados de diligência e acompanhamento, conforme a classificação de sensibilidade socioambiental atribuída". Disse também que "ampliou recentemente a vedação de crédito a clientes com embargo por desmatamento ilegal, mesmo que em imóveis não diretamente associados aos financiamentos".
Sobre o empréstimo concedido à Anglo American, o BNDES afirmou que os recursos foram "destinados a investimentos ambientais a serem realizados pela empresa" e que o projeto foi "acompanhado regularmente pelo BNDES até 5 de junho de 2017, data da quitação do financiamento". Ainda de acordo com o banco, "caso tivessem ocorrido sanções administrativas ou condenações por órgãos ambientais durante esse período – decorrentes de descumprimento das condicionantes ambientais das licenças emitidas (acompanhadas pelos órgãos ambientais), elas teriam sido tratadas tempestivamente pelo BNDES, seguindo os termos do contrato". Confira o posicionamento na íntegra.
Para Luciane Moessa, diretora executiva e técnica da associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), a despeito dos autos de infração ainda serem passíveis de reversão, os dados encontrados pela reportagem são “preocupantes” e as operações de crédito dessa natureza “deveriam estar vinculadas a compromissos de regularização ambiental”.
"A gente está falando de produtos verdes, que buscam gerar impacto ambiental positivo. É muito importante ter indicadores objetivos e ter monitoramento para garantir que isso vai ser gerado. Isso implica que uma empresa com irregularidades ambientais jamais vai receber crédito com essas características? Não. Mas, se os recursos são limitados em uma linha de crédito verde, o agente financeiro deveria premiar empresas com melhor performance ambiental", aponta.
A organização dirigida por Moessa é responsável pela formulação do Ranking de Atuação Socioambiental de instituições financeiras (Rasa), que avalia as políticas e as ações de instituições financeiras brasileiras em matéria socioambiental.
Na visão da advogada, é fundamental que as instituições financeiras, especialmente as de desenvolvimento, levem em consideração aspectos socioambientais, tanto por “alinhamento de políticas públicas” quanto por aspectos econômico-financeiros. “Por mais que uma empresa como essa gere empregos, não se pode cobrir um santo e descobrir outro. Não se pode gerar receitas tributárias, exportações, empregos de um lado e causar problemas ambientais de outro. Além disso, vários estudos mostram que [os investimentos que consideram aspectos socioambientais] têm melhor desempenho financeiro, melhor rentabilidade”, destaca.
Beneficiada com R$ 50 milhões 'verdes', Vale tem quase meio bilhão em multas
Entre as contempladas por empréstimos "verdes" do BNDES, nenhuma coleciona tantos passivos ambientais quanto a Vale. Entre 1996 e o ano passado, a empresa já foi multada pelo Ibama 90 vezes, em um total de R$ 447,4 milhões, sendo que 25 das multas foram acima de R$ 1 milhão. Do banco de desenvolvimento, a mineradora obteve R$ 50,4 milhões em financiamentos na modalidade "BNDES Limite de Crédito – Meio Ambiente".
Em um dos casos, de 2008, o BNDES concedeu R$ 42,3 milhões de dinheiro "verde" para a Vale no âmbito de um empréstimo bilionário para que a empresa implementasse seu "plano de investimento" nos cinco anos subsequentes. Em outro caso, de 2011, o empréstimo com selo sustentável foi de R$ 8,3 milhões, ligado à expansão do beneficiamento de minério de ferro e à produção de cobre pela empresa no sudeste do Pará. Nenhum desses casos especificamente foi relacionado com autuações por parte do Ibama.
Considerando todos os tipos de empréstimos, a Vale é uma das principais clientes do BNDES e recebeu mais de R$ 20 bilhões entre 2004 e 2022.
Já quanto às multas ambientais recebidas pela Vale, a maior parte é relacionada ao rompimento da barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em janeiro de 2019, que matou 270 pessoas e contaminou o rio Paraopeba, prejudicando o abastecimento público de água da região. Até hoje, segue causando impactos nos sobreviventes, como relatou a Pública em 2022. A mineradora recebeu cinco multas de R$ 50 milhões pelo desastre, totalizando R$ 250 milhões. Nenhuma delas foi paga até hoje.
Os demais passivos ambientais da Vale vão de desmatamento, incêndios e posse irregular de madeira à instalação de obra poluidora sem licença. Na Floresta Nacional (Flona) de Carajás, em Parauapebas (PA), por exemplo, a companhia foi multada em R$ 25,1 milhões pela morte de vegetação florestal em um igarapé local. Já em Cidelândia (MA), a empresa foi penalizada em R$ 22,5 milhões por causar "dano ambiental grave em área de preservação permanente e em corpo hídrico" na região da Estrada de Ferro Carajás. Nenhuma das duas multas foi quitada. Considerando todas as infrações aplicadas pelo Ibama, a Vale pagou menos de 8% do valor total.
Indiretamente, a mineradora brasileira também teve envolvimento em outro rompimento de barragem que gerou milhões em multas do Ibama. Pelo desastre em Mariana, em 2015, o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos, a Samarco foi multada em mais de R$ 340 milhões. O empreendimento é uma joint venture entre a Vale e a anglo-australiana BHP Billiton.
Em nota enviada à reportagem, a Vale afirmou que "a referida linha de crédito foi destinada a investimentos em meio ambiente nos projetos Salobo 1 e Salobo 2, e foi quitada integralmente entre 2019 e 2022". A multinacional destacou que "realiza constantes investimentos destinados à evolução contínua dos sistemas de controle, monitoramento e mitigação dos impactos ambientais de suas operações e que as infrações imputadas à companhia são discutidas no âmbito dos respectivos processos". Leia a nota na íntegra.
Outra mineradora multada pelo Ibama e beneficiada pelo BNDES é a Mineração Rio do Norte (MRN), maior produtora de bauxita do país. Em 2009, a empresa conseguiu R$ 17,5 milhões em financiamento por meio do BNDES Finem – Meio Ambiente, feito de maneira indireta, pelo Itaú Unibanco. O valor era a parcela “verde” de um empréstimo que totalizava R$ 300 milhões e tinha como objetivo implantar uma nova frente de lavra de bauxita em Oriximiná (PA), onde a empresa opera.
Na época, a mineradora que atua no distrito de Porto Trombetas, a 70 km do centro de Oriximiná, já tinha sido autuada pelo Ibama 11 vezes, recebendo R$ 3,4 milhões em multas. As infrações iam de desmatamento no interior da Floresta Nacional Saracá-Taquera à extração de bauxita sem licença prévia, além da construção de obra com potencial poluidor sem autorização.
Depois do empréstimo sustentável, a empresa mais que dobrou a quantidade de multas recebidas pelo Ibama, aumentando seu passivo ambiental em R$ 28,6 milhões. As infrações cometidas pela mineradora nos últimos anos, sem exceção, são ligadas justamente à atuação em lavras de bauxita em Oriximiná. Lançamento de resíduos sólidos a céu aberto e em um igarapé, descumprimento de condicionantes e de compensações ambientais determinadas por lei, estão entre as justificativas para o Ibama multar a MRN. Nenhuma das multas pós-2009 foi paga até o momento.
Em nota enviada à Pública, a MRN afirmou que não possui "qualquer pendência de pagamento de multas administrativas aplicadas pelo Ibama ou qualquer outro órgão ambiental em face da empresa, na forma de saldo devedor", e sim "processos administrativos decorrentes da lavratura de Autos de Infração, nos quais a MRN apresentou suas defesas e recursos administrativos por não concordar com os fundamentos fáticos ou jurídicos que atribuíram à empresa a responsabilidade pelo cometimento de infrações à legislação ambiental". A nota destaca o compromisso da empresa "com uma atividade sustentável e responsável" e posiciona a MRN com "propósito e valores bastante consolidados dos padrões ESG em suas práticas industriais, sendo uma referência no processo de recomposição florestal das áreas mineradas". Leia a resposta na íntegra.
Mais de R$ 100 milhões de dinheiro 'verde' para a Braskem
Entre as beneficiadas por recursos do BNDES voltados para atividades sustentáveis que também cometeram irregularidades ambientais está a Braskem. Entre 2006 e 2015, a petroquímica recebeu empréstimos que beiram R$ 120 milhões por meio do instrumento financeiro "BNDES Limite de Crédito –Meio Ambiente".
Os financiamentos envolvem a implantação de fábricas para a produção de diferentes compostos químicos, como polipropileno, MVC e PVC, a modernização de plantas industriais, além de investimentos em projetos de meio ambiente e eficiência energética. A Braskem é a 23ª empresa mais contemplada historicamente por empréstimos do BNDES.
No período de 2011 a 2015, a companhia foi multada cinco vezes pelo Ibama, em um total de R$ 2,07 milhões. A infração que representa a maior parte do montante, R$ 2 milhões, foi lavrada em junho de 2011, em Maceió (AL), e não foi quitada até o momento. O órgão ambiental multou a Braskem por "causar poluição atmosférica que provoque a retirada dos habitantes das áreas afetadas ou que provoque, de forma recorrente, significativo desconforto respiratório ou olfativo".
A poluição, porém, está longe de ser o maior problema que a petroquímica trouxe para a capital alagoana.
Em dezembro do ano passado, a Braskem ganhou manchetes nacionais por conta do risco de colapso de uma de suas minas de sal-gema, localizada no bairro do Mutange – o que veio a ocorrer parcialmente dias depois. Os problemas causados pela atuação da empresa em Maceió começaram a ficar claros em 2018. Naquele ano, um tremor de terra ligado às décadas de exploração do solo pela Braskem gerou crateras no asfalto e grandes rachaduras em casas. Mais de 55 mil pessoas foram obrigadas a deixar os imóveis onde construíram suas famílias e suas trajetórias de vida. Bairros inteiros foram transformados em áreas fantasmas.
O crime ambiental da Braskem, o maior do mundo em uma área urbana, fez com que a versão estadual do Ibama, o Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Alagoas, aplicasse multas de R$ 72 milhões à empresa – tanto pela degradação socioambiental causada pela exploração das mina de sal-gema quanto pela omissão de informações sobre a gravidade do problema.
Em nota enviada à Pública, a Braskem afirmou que "todos os recursos recebidos foram contratados e utilizados conforme requisitos estabelecidos pela legislação vigente e normas internas do BNDES", que apresentou recurso à multa aplicada pelo Ibama e que aguarda decisão do órgão. Em relação à multa aplicada pelo IMA/AL, a empresa informou que "recorreu administrativamente e aguarda decisão, pois já havia sido autuada, em 2019, pelo mesmo fato e fundamento jurídico, e o processo administrativo foi encerrado após assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta e pagamento". Confira a nota na íntegra.