Mais de 200 mil pessoas não têm acesso à água potável no Distrito Federal, segundo levantamento do projeto Vida e Água, da Universidade de Brasília (UnB). Esta é a realidade de 53 áreas de regularização de interesse social (ARIS) que estão fora do sistema de abastecimento da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb).
A falta de água tratada e de coleta de esgoto compromete a saúde e a qualidade de vida de milhares de moradores de áreas periféricas da capital federal, como Sol Nascente, Arapoanga I e Estrutural.
"Nós não temos água potável encanada, aqui é tudo no gato, não temos rede de esgoto, não temos luz. Aqui nossa realidade é complicada. A dengue é muito terrível. Quando conseguimos usar água, ela é contaminada. Tivemos muitas pessoas com diarreia aqui por causa disso", contou ao Brasil de Fato DF Andreia Lopes Mello, de 39 anos. Ela é moradora do Sol Nascente há 20 anos, e há seis vive na comunidade Fazendinha, no Trecho 3 da região administrativa (RA), local que mais enfrenta problemas de infraestrutura.
Segundo o doutor em Serviço Social e professor da UnB Perci Coelho de Souza, esses territórios são os mais afetados pois estão inseridos em uma tradição de “política urbana segregacionista” histórica no DF, em que as populações mais abastadas vivem nas áreas com mais equipamentos do Estado, enquanto as mais vulneráveis são “deslocadas e periferizadas” para locais que não têm investimento estatal em políticas públicas.
“Começando pela política de saneamento que envolve água, esgoto, águas pluviais e coleta de lixo. Mas a reboque desta, todas as outras políticas, como educação e saúde, vão na mesma tendência. O que muda? Talvez seja a política de segurança pública. Você tem mais policiais para controlar e conter de forma violenta e desigual o cidadão nessas periferias”, afirmou ao Brasil de Fato DF.
O deputado distrital Chico Vigilante (PT-DF) tem acompanhado o problema e informou que se reuniu, na semana passada, com diferentes pastas do governo do DF para articular um encontro de discussão do tema. Segundo o parlamentar, o secretário da Casa Civil, Gustavo Rocha, afirmou que irá promover uma reunião envolvendo a Caesb, a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) e a UnB.
“Creio que nós vamos encontrar uma solução para colocar esse bem, que é tão precioso e importante, que é água tratada, na casa dessas pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade e invisíveis para a política pública local”, disse.
ARIS
As Áreas de Regularização de Interesse Social (ARIS) são regulamentadas pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) por meio da lei do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) de 2009 como territórios destinados à regularização fundiária e se caracterizam por possuírem habitações irregulares e/ou ocupações informais. Em muitas delas, há flagrantes violações de direitos humanos e socioambientais.
Além do maior risco de contrair problemas de saúde, como dengue e diarreia, a população do Trecho 3 do Sol Nascente é composta por grande contingente de pessoas vulneráveis, como crianças, idosos, gestantes e pessoas acamadas. "Tem vezes que nós passamos a semana, três dias, quatro dias sem água. E é um desespero. Como é que dá banho numa pessoa acamada, numa criança, sem água?", questionou a moradora Andreia Mello.
Segundo dados inéditos levantados pelo projeto da UnB, aos quais o Brasil de Fato DF teve acesso, as ARIS mais afetadas pelo desabastecimento de água potável são Sol Nascente, com 33.643 pessoas não atendidas pelo sistema da Caesb (52,6% da população total); Arapoanga I, com 33.425 pessoas não atendidas (94,3% da população total); e Mestre D’Armas I, que fica na região administrativa (RA) de Planaltina, com 27.221 pessoas sem atendimento (92,3% da população total).
Questão fundiária historicamente impacta acesso à água no DF
De acordo com o professor Perci Coelho, a questão fundiária é essencial para entender a desigualdade no acesso à água potável no DF, que remonta à construção da capital. Na época, os trabalhadores que foram responsáveis por erguer a cidade, foram expulsos, após a finalização das obras, para as áreas periféricas e ficaram à mercê dos equipamentos públicos que eles mesmos construíram.
“Nós tivemos uma imensa população, na década de 60, de operários que vieram para trabalhar nos prédios e fazer a infraestrutura de serviços públicos, inclusive de acesso à água, mas não foram convidados para usufruírem desses direitos. Eles teriam que lutar por esse serviço”, explicou.
Em sessão especial em homenagem ao Dia Mundial da Água, realizada na quinta-feira (21) no Senado, a coordenadora do Fórum de Defesa das Águas do Distrito Federal, Lúcia Maria Rodrigues Mendes, apontou outro fator fundiário que ameaça o abastecimento de água no DF e Entorno: a especulação imobiliária.
Segundo ela, a gestão desastrosa de nascentes e bacias hidrográficas locais prejudica e gera impacto na distribuição de água para todas as regiões do país. Além de apontar a ocorrência de grilagens, parcelamentos irregulares e as ameaças geradas pela impermeabilização urbana, a coordenadora afirmou que a especulação imobiliária, projetos urbanísticos da Terracap (Companhia Imobiliária de Brasília) e a expansão do plantio da soja ameaçam a Estação Ecológica de Águas Emendadas.
Localizada no extremo nordeste do Distrito Federal, na região administrativa de Planaltina, a unidade de conservação de proteção integral abriga uma vereda com quase 6 km de extensão, de onde nascem cursos d’água que abastecem tanto a bacia do Tocantins como a do Paraná, dois dos mais importantes rios brasileiros.
“Precisamos de toda a atenção com as águas do Cerrado. O Senado pode e deve fiscalizar e ajudar a construir soluções”, defendeu Lúcia Mendes.
Enfrentamento por meio da mobilização popular
O Projeto Vida e Água Para ARIS é uma iniciativa da UnB e busca promover a educação ambiental, a gestão participativa dos recursos hídricos e a melhoria da qualidade de vida nas ARIS do DF. O projeto conta com a parceria de diversas entidades, dentre elas o Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF), o Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor (Mopocem), SINDSEP e o Fórum em Defesa das Águas do DF.
Para o coordenador do projeto, o professor Perci Coelho, a mobilização popular, por meio de movimentos sociais, urbanos, rurais e sindicais é o caminho para pressionar o poder público por uma outra política urbana que garanta a todos o acesso aos direitos fundamentais.
O grupo, que surgiu no início da pandemia de covid-19, já atua há mais de quatro anos na mobilização e no empoderamento das populações das ARIS em encontros de articulação e discussão de políticas públicas. O 4º EnPODERARIS (Encontro de Empoderamento das Áreas de Relevante Interesse Social) está marcado para abril.
Além disso, o projeto busca dar visibilidade à pauta por meio de audiências públicas e da produção de documentos acadêmicos, como artigos, e relatórios que são entregues a autoridades.
“Quando você abastece uma população desassistida de água potável, você diminui os riscos de doença e todo o custo do sistema de saúde. E por consequência real, alimenta o mercado de trabalho e potencializa esse cidadão a ser um cidadão pleno e usufruir da cidade não só pelo consumo, mas por acesso a direitos”, explicou Perci Coelho.
O que diz a Caesb?
Procurada pela reportagem, a Caesb afirmou que "atende as prioridades com o fornecimento de água sempre em conjunto com os órgãos do governo responsáveis pelo atendimento às populações mais carentes". A Companhia disse ainda que a sociedade civil organizada é "sempre bem-vinda" para auxiliar nesse trabalho, "desde que por meio dos canais institucionais existentes".
O órgão informou que por meio do Programa Água Legal já regularizou mais de quatro mil ligações de água e disponibilizou R$ 4.423.748,67, "recursos que beneficiaram cerca de 12 mil pessoas".
"O Água Legal atua em todas as regiões administrativas da capital que não estejam abastecidas de forma regular, com enfoque nas áreas em regularização e próximas às redes regulares. Além das ligações já regularizadas, foram mapeadas 34.132 ligações passíveis de receberem água tratada", completou.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Márcia Silva