Há mais de 50 anos, o mestre e músico Gabi Guedes toca percussão em terreiros e grandes palcos mundo afora. Toda essa experiência sonora reverbera agora em seu primeiro álbum, Matriarcas, composto junto ao grupo Pradarrum. O show de lançamento acontece neste sábado (30), com ingressos esgotados há dias, e o álbum já está disponível nas plataformas digitais.
Nascido e criado no Alto do Gantois, em Salvador, ao lado da Ialorixá Mãe Menininha, Gabi Guedes foi envolvido pelo toque e os sons dos tambores durante toda a infância. Iniciou seus estudos em percussão aos 10 anos e hoje é referência na música percussiva baiana, tendo tocado com artistas expressivos como Margareth Menezes, Lazzo, Hermeto Pascoal, Jimmy Cliff e The Wailer.
Em Matriarcas, o grupo reverencia as Ialorixás (mães de santo) e Alabês (responsável pelos toques rituais das religiões afro), destacando seu legado de luta e resistência na manutenção das suas comunidades, das suas histórias e espiritualidade. O repertório do álbum e do show é formado por 10 faixas que passeiam pela música sagrada dos terreiros, misturando ritmos das nações Angola, Ketu e Gêge com outros ritmos que se fundem à cultura afro-brasileira como a salsa, o samba, o funk e o jazz.
Em entrevista ao Brasil de Fato Bahia, Gabi Guedes falou sobre essa sua longa e frutífera carreira, a experiência de ensinar para passar adiante o legado dos toques sagrados do candomblé e, claro, sobre as matriarcas. "Eu comecei a trabalhar esse álbum para reverenciá-las", afirma.
Brasil de Fato Bahia - Gabi você tem uma trajetória na música de mais de 50 anos, já tendo tocado com ícones da música brasileira e estrangeira. O que dessa trajetória você traz para esse primeiro álbum gravado, o Matriarcas?
Gabi Guedes - No lombo da caminhada, você vai juntando muitas coisas, vai coletando. Aprendendo com um, com o outro, guardando memórias, guardando falas de luta, de resistência, legados. E isso é que, na verdade, foi fazendo esse quebra-cabeça, e juntei todo esse material. Eu não estava nem pensando que pudesse gravar um disco!
Quando eu comecei a ser convidado para ministrar workshop, tanto aqui no Brasil quanto fora, sempre estive falando dos tocadores de atabaques. Sempre estive falando desses negros quilombolas, candomblecistas, macumbeiros. Eu via que essa galera estava sempre conectada com a ancestralidade, mesmo lidando com diferentes nações, ou seja, diferentes formas de cultuar o Orixá, ou Nkisi, ou Caboclo, ou Entidade.
E como foi o processo de levar essa sonoridade, esse conhecimento dos terreiros para um álbum para ser tocado para o público, fora do espaço sagrado?
Uma vez aqui em casa chegou um computador, vamos trabalhar em cima do computador com programas de música. Um dia, eu e meu sobrinho Felipe Guedes, a gente jogou um aplicativo lá de um piano no computador, e eu pensei: poxa, vai ser agora. Aí eu cantei uma cantiga para Oxalá. E a gente começou a buscar no piano e fomos encontrando.
E falei para ele: "venha cá, como que um baixista, um músico se comportaria dentro de um tema desse, uma música que ele nunca ouviu? Um sentimento que ele nunca ouviu?" Porque você vai nas escolas de música e encontra vários músicos, várias categorias, mas se você fala o nome de um toque do candomblé ou uma melodia, eles não sabem. Não sabem! Porque a discriminação, o preconceito, o racismo, sempre vem em primeiro lugar, imperando. A galera não tinha ou não tem esse tempo para ver, imaginar ou ouvir essas coisas.
E aí a gente começou a distribuir essa coisa aqui dentro de casa mesmo, no piano. Fizemos uma. Depois, quando preparamos essa cantiga toda no piano, no computador, fomos brincando com os outros elementos. Um dia, o Evanailton Bispo, saxofonista, falecido algum tempo atrás, um cara muito, muito bom músico, ele chegou aqui em casa e tocou. E escreveu tudo para sax.
E aí o trabalho começou assim. Comecei a criar outras ideias e convidar os músicos para fazer parte disso. O pianista, como é que o pianista vai tocar esse tema? Como é que ele vai pensar? Eu tenho que fazer uma vivência com ele, ensinar ele a cantar isso, ensinar ele onde está a respiração da cantiga, ensinar ele de uma clave circular... Fui fazendo essa vivência até nascer esse trabalho do Pradarrum.
Quando eu cheguei com essa ideia, de explorar esse trabalho, o saudoso Letieres [Leite, músico e compositor] também estava atacando com a Rumpilez, e ele me convidou para ser membro da orquestra. E a gente se encontrou várias vezes e falava dos toques, falava como poderia ser. Ele sempre estava anotando as coisas. E eu parei um pouco o trabalho do Pradarrum, pra seguir essas viagens com a orquestra Rumpilez. Aprendi muito, pude ensinar também muito, passar muito a minha vivência, o meu aprendizado com os terreiros de candomblé.
Gabi, fala um pouco mais desse lado do professor, desse lado de ensinar. Você já tem muitos anos como professor, já ensinou a muita gente, não é?
Isso começou aqui no terreiro do Gantois mesmo. Eu ainda era adolescente, talvez uns 16 anos, já entendendo um pouco da luta, né? Porque eu trabalhava numa oficina mecânica aqui do lado, e estudava. E eu lembro que vinham pessoas que queriam aprender a tocar sobre os atabaques e ninguém tinha essa paciência de ensinar. Foram chegando gringos, a galera perguntava se eu ensinava. E eu respondia: ensinar, não, mas eu posso mostrar como é. Eu queria ensinar o passo a passo, do zero, ensinava como era que fazia as coisas, eles gostavam, às vezes me pagavam, às vezes me traziam presentes como instrumentos. E fui criando essa familiaridade.
Lembro que o saudoso Lindemberg Cardoso [maestro e compositor] esteve aqui em casa me procurando. Eu nem sonhava com isso! Eu tinha uma coisa com a Escola de Música, com a UFBA... até que passou. E comecei a dar aula pra essa galera, depois veio o professor Paulo Lima também. A gente também fez umas estudadas, quando ele estava viajando para a Europa para fazer um mestrado, ou um doutorado. Foi massa para estudar sobre os toques, para galera ter o que levar também para a Europa, como ancestralidade, como afro-ancestralidade.
Porque não é só chegar na Europa tocando as coisas de brazuca. A bossa nova já está cansada há muito tempo. Então, a galera tinha que chegar com uma outra novidade. E qual era a novidade? A novidade era isso aí, que foi discriminado que ninguém gostava, que era tocar pro diabo, era coisa de preto. Aí você vai criando a sua defesa também. Quando essa galera [europeia] chega, não é só sorrisinho. Quando a gente traz esse povo para o espaço do "aquilombamento", eles chegam com o "apropriamento".
Voltando para o álbum, ele leva nome de Matriarcas, figuras tão importantes para os povos de axé. Qual a importância das matriarcas na sua trajetória de vida e de música?
Quando eu pensei nessa coisa da cantiga, da melodia, da conexão com essas coisas, eu pensei numa coisa mais suave, mais bonita, para reverenciar as mães, as matriarcas. Ou seja, eu pensei em várias mães, várias pessoas aqui do terreiro do Gantois e de outros vários terreiros aqui de Salvador, que me abraçaram, que me acolheram, que me levaram até o quarto do Santo, que me abraçaram quando estava manifestado, que me apoiaram, que me ensinaram como é que respeita, me ensinaram como é que se pede licença para entrar e pede licença para sair também.
Então eu comecei a trabalhar esse álbum para reverenciá-las. Eu chamo de Matriarcas porque é um trabalho direcionado às mães. Mães como a minha Iyalorixá, a minha mãe de Santo, que a Mãe Menininha do Gantois, que eu tive o prazer, a honra de conviver com ela desde a minha infância, quando eu saí do ventre da minha mãe biológica morando aqui mesmo do lado do terreiro, eu já me infiltrei por lá.
A minha avó, Maria Filipa, era filha de Santo, também do terreiro do Gantois, foi quem me levou pela primeira vez lá. Mas antes de chegar lá, eu já tocava no fundo da casa com a latinha, fazia aqueles tambores com as latas, minha mãe, cachoeirana, cantando samba pra gente não ir pra rua. Ela cantava, e eu tocava. "Meu filho não precisa ir pra rua. Vai tocar aqui comigo." E isso faz essa conexão com o som dos atabaques até eu chegar lá. E depois, com o passar do tempo, eu fui vendo o quanto é necessário preservar esses toques.
Além do terreiro do Gantois, você também frequentava outros terreiros? Aprendeu em outras casas também?
Por aqui sempre teve os terreiros, ali no Garcia, aí pela Vasco da Gama, vários terreiros. E eu sempre gostei de fim de semana ir no candomblé. Ah, eu tinha que ir lá pra tocar, ficar lá com a galera, conhecer todo mundo e aprender a tocar. E conhecer quem era esse aqui que tocava.
Eu sempre fui um cara observador, nunca falador, mas observador de verdade. Sempre fui nos terreiros, a pessoa estava tocando ali. Estava rolando a cerimônia, estava ali parado, participando da cerimônia, mas ouvindo o cara tocar. Aí, eu vou tocar o tempo inteiro aquilo ali, mesmo que não tenha o Lê e o Rumpi [atabaques], com os olhos fechados e vendo alguém dançando na minha frente. Aí está conectado. Não precisa nem chamar uma filha de Santo para dançar, nada, porque eu sei todos os movimentos da dança.
E eu lembro que as pessoas mais velhas aí do terreiro comentam que uma vez, estava rolando uma cerimônia, e eu estava tocando o atabaque. E minha vó Menininha mandou chamar a pessoa que estava tocando o atabaque. Aí eu entrei no quarto assim: "agô, licença, minha mãe". E minha mãe [perguntou]: "quem estava tocando o atabaque, foi você, foi? Muito bem. Volte lá e toque novamente, que faz tempo que eu não ouço um atabaque tocado assim".
E eu fui me jogando! Aqui na frente, morava o saudoso Bira Reis, que era um luthier, fazia berimbau, calimbas, sax de cabaça... Eu ouvia os caras tocando daqui de casa, subia no jenipapeiro para olhar lá no fundo da casa dele. E minha mãe falava: eu não quero você naquela casa. Quando eu ia para a escola, passava na porta da casa, e eu pensava: tenho que entrar nessa casa um dia. Aí eu consegui um dia. Tinha crescido mais, já trabalhava aqui na oficina. Entrei, cheguei, fiz amizade com Bira Reis, tanto que ele passou pro Pelourinho, eu passei a dar aula na escola dele, antes dele falecer.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Gabriela Amorim