Luta por direitos

A greve dos boias-frias de Guariba que desafiou usineiros e policiais na ditadura militar

Há 40 anos, trabalhadores da cana-de-açúcar desafiaram donos de usinas e PMs – e venceram

|
Imagens mostram pessoas com marcas pelo corpo após ato de repressão da PM - José Cícero/Agência Pública

“Desceu a ordem do governador na época, o [Franco] Montoro, para acabar com a greve não importava como.” Assim relembra Wilson Silva, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais da pacata Guariba, no interior paulista. A greve, no caso, era um feito histórico: em maio de 1984, cerca de 7 mil trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, os chamados “boias-frias”, cruzaram os braços e se levantaram contra usineiros em plena ditadura militar.

A resposta do regime foi a violência. Policiais militares de vários municípios foram enviados à cidade. A praça da igreja matriz se tornou um campo de guerra: de um lado, boias-frias desarmados e, do outro, o efetivo da PM com cassetetes, cães e armas de fogo. Em meio aos espancamentos e tiros, o metalúrgico Amaral Vaz Melone, de 49 anos, foi morto por um disparo enquanto assistia à greve, em frente ao estádio municipal.

Apesar da repressão, o episódio entrou para a história como um exemplo de vitória de trabalhadores nos anos finais da ditadura. Os grevistas conseguiram ter algumas das suas reivindicações aceitas, como a entrega de equipamentos de proteção, lugares adequados para o armazenamento de alimentos e água, além de transporte seguro aos canaviais.  

Hoje, 40 anos após a greve e 60 desde o golpe que instaurou a ditadura militar, a Agência Pública foi até Guariba para revisitar os trabalhadores que se insurgiram contra os usineiros e os policiais enviados pela ditadura.

Boias-frias “acordaram” e desafiaram usineiros e polícia militar

O dia a dia dos cortadores de cana na década de 1980 começava por volta das 4h, como lembra Davi Alves Roque, de 57 anos. Eles iam de pau de arara até os canaviais, onde cortavam a cana e colocavam o amontoado em caminhões que transportavam a colheita até as usinas. “Você acabava sendo escravo, sem saber que é escravo”, contou. 

O trabalho, que já era desgastante, piorou após uma decisão dos usineiros de mudar a exigência sobre a quantidade que deveria ser cortada: os empresários aumentaram a regra de corte de cinco para sete fileiras de cana-de-açúcar, sem nenhum ganho a mais para os trabalhadores. Além disso, os boias-frias se queixavam da falta de equipamentos de proteção, condições precárias para armazenar água e comida e a insegurança dos paus de arara.

A greve teve início em 14 de maio de 1984. A adesão foi de quase 100%, segundo os grevistas ouvidos pela Pública, uma vez que os manifestantes montaram barricadas para impedir a ida dos caminhões que transportavam os boias-frias às usinas. 

“[Os usineiros] Não tomavam nenhuma atitude com relação à situação ruim que vivia [o trabalhador rural] e de repente o povo se levantou. O Brasil acordou e os trabalhadores acordaram e perceberam que eles tinham força, sim. Foi onde [a categoria] começou a se organizar”, relembra Wilson Silva, do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba. “Foi uma greve histórica. Não tinha uma organização própria, foi muito espontânea, do próprio trabalhador. Criou-se uma comissão de trabalhadores e formou-se o sindicato, que foi reconhecido já em 1985”, relatou.

José de Fátima Soares, de 67 anos, cortou cana dos 8 aos 27 anos. Ele esteve junto aos trabalhadores que fundaram, em setembro de 1984, o sindicato que estava inoperante desde a década de 1950. Com sua moto, ele levou a reportagem da Pública até a praça onde fica sediada a igreja matriz de Guariba, o palco principal do movimento. Foi lá que as forças policiais reprimiram os grevistas.


O sindicalista José de Fátima Soares na praça da igreja da matriz de Guariba, onde os trabalhadores se reuniram para reivindicar direitos trabalhistas / José Cícero/Agência Pública

Autor de tiro que matou metalúrgico em meio à greve segue desconhecido

A morte de Amaral Vaz Melone, de 49 anos, até hoje não foi elucidada. O tiro que atingiu o rosto do metalúrgico e o matou ainda no local permanece sem autoria conhecida. A morte dele se tornou um símbolo da luta dos trabalhadores do campo, mesmo que ele não integrasse a categoria. 

Na época, a Polícia Militar do Estado de São Paulo era comandada pelo futuro presidente do Brasil Michel Temer (MDB), que ocupava o cargo de secretário de Segurança Pública. A reportagem questionou o ex-presidente sobre as denúncias de violência policial e a morte de Melone. “Eu nem me recordo nessa altura, confesso a você [sobre as denúncias apontadas pelos grevistas]”, disse o ex-presidente. “Eu mandaria apurar. Se houvesse violência, violência indevida, eu mandaria apurar. Não tenho dúvida disso”, disse.   

Com os olhos marejados, Valdir Melone, 62, filho do metalúrgico assassinado, relembra a trajetória do pai, nascido na própria Guariba. “É uma sensação de impotência das coisas, de não conseguir saber o que aconteceu. Foi uma morte em vão nesse sentido, em vão acabou não sendo [ao se referir ao resultado positivo da greve], mas pra isso teve que ter uma morte”. 


Valdir Melone, filho do metalúrgico Amaral Vaz Melone, assassinado aos 49 anos, durante a greve de Guariba / José Cícero/Agência Pública

O neto, Marcos Melone, 43, tinha 2 anos quando o avô foi morto. “Até hoje a gente não descobriu quem foi o autor do tiro. A gente tem algumas especulações, mas não cabe a mim dizer, nem sequer a minha família sabe realmente quem foi o autor”, desabafou.

A Pública foi até à delegacia de Guariba, onde foi informada de que os documentos referentes à investigação policial teriam sido perdidos em uma chuva torrencial que atingiu o município anos atrás. A equipe de policiais civis não soube dizer quando foi a perda de material. Procurada, a Secretaria de Segurança Pública (SSP), sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), respondeu que o caso foi arquivado e qualquer informação deve ser apurada com a Justiça.  

Além de Melone, outros três trabalhadores foram atingidos por disparos de arma de fogo, segundo José de Fátima. “Em 1984, houve tiro. Teve o Isaías, que tomou tiro na perna e no pé, o Antônio tomou tiro na perna e tem uma moça que tomou um tiro que pegou na barriga”, disse o ex-líder sindical.

Segundo o ex-presidente do sindicato, na época, cerca de cem pessoas foram presas, mas os números exatos eram difíceis de ser obtidos, uma vez que o Brasil ainda vivia sob o regime militar. 

Soares lembra que, na época, houve também um aumento da cobrança de água pela companhia de saneamento, que pressionou ainda mais os trabalhadores. Durante a greve, os trabalhadores tentaram conversar com o gerente da Sabesp, mas, segundo contam, não foram atendidos, uma vez que ele havia se escondido na delegacia de Guariba. Revoltados, os grevistas destruíram o escritório da companhia de água e esgoto, em forma de protesto.

Um supermercado, de propriedade de Claudio Amorim, líder do PMDB regional, foi saqueado pelos grevistas. “Ele [dono do supermercado] subiu numa dessas calçadinhas aqui e desafiou o povo: ‘Olha, se eu sou o comandante, eu meto bala [nos manifestantes]’”, contou o José de Fátima Soares sobre o motivo do saque.

Apesar da violência policial e da morte, os grevistas conseguiram o retorno do corte de cana em cinco ruas, a entrega de equipamentos para proteção, melhores condições para armazenar comida e água e melhorias no transporte para os canaviais.

Greve de Guariba inspirou outros movimentos no estado

A greve dos canavieiros de Guariba em 1984 foi a primeira organizada pela categoria no estado, o que inspirou levantes em cidades vizinhas como Barrinhas, Morro Agudo, Sertãozinho, Jaboticabal, São Joaquim da Barra, Guaraci, Guará e Bebedouro. Elas também foram palcos de outros protestos organizados por trabalhadores rurais que exigiam melhores condições de trabalho. 

Mesmo em Guariba, outras manifestações dos trabalhadores rurais eclodiram nos anos seguintes. Uma delas, em janeiro de 1985, terminou com nova repressão da Polícia Militar de São Paulo. Policiais do Batalhão de Choque foram enviados a Guariba a mando do então secretário de Segurança Pública Michel Temer.

“Eu estava num piquete, no bairro João de Barro, não sei se no segundo ou no terceiro dia da greve. Estávamos todos lá quando vimos vários caminhões da Tropa de Choque encostando e avançando em direção ao bairro. Então quem estava na frente apanhou. Eu estava” contou o padre José Domingos Bragheto, de 74 anos, que na época integrava a Comissão Pastoral da Terra (CPT). 

“Depois de levar uma surra, eu me sentei e, quando a tropa recebeu a ordem de voltar, eu me lembro que um PM veio em minha direção e falou: ‘Essa foi a minha conta’ e [levei] mais uma cacetada. Eu não reagi porque não tinha condições”, relembrou Bragheto. 

“Eu me lembro que na época a Conferência de São Vicente de Paula soltou uma nota na imprensa local repudiando a minha presença no movimento”, contou o padre. “Mostrando claramente que lado eles estavam”, completou em tom de indignação. 

Em janeiro de 1985, policiais militares invadiram as casas dos moradores do bairro João de Barro, onde estava concentrada a maior parte dos cortadores de cana, segundo José de Fátima. “[A Tropa de Choque] Entrou nas casas e bateu em mulher grávida e em uma criança de um ano e oito meses”, contou o ex-líder sindical. 

Quando foi questionado sobre quem mandou a Tropa Choque para Guariba, Michel Temer ironizou: “Ou seja, um sujeito perigosíssimo, chamado de secretário de Segurança Pública, mandou tropa de choque para lá”, mas na sequência completou: “É possível que a Tropa de Choque tenha ido para lá. Isso não saberia confirmar para você, né? Mas é possível, é muito provável”.

Apesar das dezenas de trabalhadores feridos em decorrência dos espancamentos promovidos pelos militares, os grevistas conseguiram reajustes e igualdade salarial entre homens, mulheres e adolescentes.

Usineiros financiaram policiais para reprimir grevistas

Na segunda onda de protestos dos cortadores de cana de Guariba, em janeiro de 1985, usineiros financiaram a estadia de policiais militares vindos de outras regiões do estado para reprimir a greve, conforme um inquérito militar aberto em março de 1985 e obtido pela Pública. A denúncia que levou ao inquérito foi feita pelo deputado peemedebista Waldyr Alceu Trigo (1938-2011), na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

O apoio ocorreu por meio de uma agência de marketing, que prestava serviços de assessoria de imprensa às usinas São Martinho, São Geraldo e Santo Antônio, que operavam na região de Ribeirão Preto, onde está situada a cidade de Guariba. Segundo as investigações, o coronel da PM Biratan Godoy pediu ajuda financeira para que os empresários custeassem a estadia, alimentação, transporte e abastecimento de viaturas oficiais. 

De acordo com o documento, a empresa Imagem Relações Públicas e Publicidade S/C Ltda. pagou 21 milhões de cruzeiros, o equivalente hoje a cerca de R$ 104 mil, de acordo com os dados básicos de correção do  Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do IBGE. O depósito foi feito na conta pessoal do coronel, que, na época, estava à frente do Comando de Policiamento de Área do Interior 3 (CPAI-3), responsável pelo policiamento de área na região de Ribeirão Preto. 

Para justificar os gastos, o coronel apresentou notas fiscais, emitidas em 31 de janeiro de 1985, após a greve de Guariba. O valor restante foi devolvido à empresa de comunicação: 4 milhões de cruzeiros, o equivalente a R$ 21 mil atualmente. Contudo, o grupo de usineiros, empresários e fazendeiros que contribuíram optou por não receber o dinheiro. A defesa do coronel Biratan Godoy apontou no processo que o pagamento remanescente foi investido na compra de equipamentos para a cavalaria da PM.  

O promotor de Justiça, na época, ponderou que o coronel deveria ter procurado seus superiores, e não os usineiros. No entanto, a bancada de juízes, composta apenas por militares, votou pela absolvição do coronel e alegou que “a quantia foi dada, espontaneamente, pelo simples fato de saberem que a Polícia Militar necessitava e aceitaria auxílio, até porque tinham interesse para que a greve terminasse e a PM lograsse êxito em suas operações”. 

Questionado pela reportagem, Michel Temer rebateu as acusações de pagamento. “A PM vivia das verbas públicas, evidentemente. Imagina se ela vai procurar usineiro para manter-se a si própria”, disse. “Aliás, para não mentir, muitas e muitas vezes, os municípios ajudavam a segurança pública, tanto a Polícia Civil como a Polícia Militar, né? Às vezes, arrumando casas etc. Mas essa de Polícia Militar ir atrás de usineiro, para o usineiro financiar, eu nunca tive notícia”, afirmou. 

Como secretário de Segurança Pública de São Paulo da época, Michel Temer disse que o procedimento correto que o coronel deveria ter tomado era procurar seus superiores. “Se um sujeito teve dificuldade, a coisa é procurar o poder público. Por exemplo, precisa de mais recursos. E não procurar indivíduos particulares”, afirmou.

Questionada sobre a doação, a usina São Martinho respondeu que “conta com uma política de doações e investimento social privado disponível para acesso em seu site. Atualmente, as doações seguem o previsto nessa política. Em relação aos fatos questionados, não tem conhecimento do conteúdo do inquérito, tampouco registro das informações mencionadas referentes a um fato ocorrido há 40 anos”.

Procurada por telefone, a assessoria de imprensa da Usina Santo Antônio não atendeu as ligações da Pública e não obtivemos resposta dos questionamentos feitos por e-mail. 

A Pública não conseguiu contato com a Usina São Geraldo e o espaço segue aberto para respostas. 

Ex-boias-frias, trabalhadores tentam ganhar a vida em Guariba

Lucindo da Rocha, de 62 anos, limpava o chão da mercearia no Bairro Alto, em Guariba, quando a reportagem o abordou. Na tarde anterior, o estabelecimento esteve movimentado: clientes haviam assistido ao jogo entre São Paulo Futebol Clube e o Ituano, última partida de classificação para a próxima etapa do Campeonato Paulista de Futebol, e a classificação do tricolor rendeu comemorações até altas horas do dia anterior. 

Rocha contou que saiu de Berilo, município de 9 mil habitantes no interior de Minas Gerais, para trabalhar com corte de cana em Guariba em 1979. Segundo o comerciante, as condições de sobrevivência eram difíceis na cidade natal, então seguiu os conselhos do irmão mais velho para trabalhar nos canaviais. 

Hoje ele é proprietário do “Bar do Lucindo”, nome dado à mercearia pintada de verde, decorada com quadros e bandeiras em homenagem ao seu time de coração: o Palmeiras. No estabelecimento, o ex-cortador de cana contou sobre as dificuldades enfrentadas na época. “Era bem sofrido, a gente não tinha nem EPI [equipamento de proteção individual]”, contou. “Nós íamos de pau de arara, um caminhão. Rapaz, aquilo era Deus que protegia a gente, porque naquele tempo era difícil”, acrescentou.

A entrevista foi interrompida por um cliente, Euclides Ferreira Vaz, de 68 anos, que trabalhou nos canaviais até 1978. Ele era responsável por carregar o amontoado de cana e colocá-lo em caminhões que o transportavam até as usinas. “No frio [a usina] não dava luva. Você ia pegar a cana e gelava a mão. Você acendia foguinho pra voltar a trabalhar”, disse.


Lucindo da Rocha, ex-cortador de cana, acompanhou o movimento grevista em 1984. Atualmente é dono da mercearia “Bar do Lucindo” / José Cícero/Agência Pública

Maria Diva de Melo, de 61 anos, estava sentada em frente ao seu bar. No local, estavam estacionados dois ônibus usados para transportar trabalhadores rurais atualmente. “A gente já não tinha hora pra comer. Às vezes perdia até a hora, talvez se ganhasse um pouquinho mais, né?”, relembrou. 

O calor e a falta de refrigeração faziam com que a comida estragasse, segundo Diva. “A comida azeda eu tinha que jogar fora, né? Porque não dava nem tempo pra comer. Vontade de ganhar dinheiro e precisão também, né? E a gente levava era ‘caldeirãozinhos’ de alumínio”, disse ela, que foi boia-fria de 1976 a 1992.

Diva, como é conhecida em Guariba, começou a cortar cana aos 13 anos, após ter deixado a cidade de Minas Nova, no interior de Minas Gerais, para trabalhar com a mãe nos canaviais paulistas. Sem nunca ter ido à escola, ela contou que não teve oportunidade para estudar, porque o trabalho era uma necessidade. A função era registrada, mas os ganhos eram diferentes: a remuneração de homens era mais alta do que a de mulheres e adolescentes, embora exercessem a mesma função. 


Maria Diva começou a cortar cana aos 13 anos, após ter deixado o interior de Minas Gerais para trabalhar com a mãe nos canaviais paulistas / José Cícero/Agência Pública

“Eu cortava umas 5, 6, 7 [toneladas de cana-de-açúcar] e o último que eu cortei, eu cortei 360 metros de cana uma vez só, também”, contou Diva. A reportagem perguntou quanto isso rendeu a ela, mas a comerciante não soube responder. Hoje, no bar, ela comercializa vinhos, cachaças, cervejas e alguns doces.