Nas últimas décadas, uma série de campos de pesquisa e estudo das humanidades têm se dedicado a construir uma nova arqueologia de narrativas históricas já contadas. Não se trata de revisionismo, mas sim de refazer o percurso da "história oficial" e jogar luz em momentos históricos que sucumbiram à sombra da voz normativa, masculina e heterossexual.
Com a emergência dos estudos feministas na segunda metade do século XX e, a partir dos anos 1980, com a ascensão dos estudos anticoloniais, gays & lésbicos e queer, ativistas e pesquisadores dos respectivos grupos se encontraram em uma série de frentes para descolonizar a história das histórias. Mas de que maneira isso sucedeu? Por exemplo: qual foi o papel das mulheres na construção do Estado moderno e da República? Por que as revoluções africanas são pouco ou quase nada faladas? Qual foi o papel do incipiente movimento LGBT+ – à época gay e lésbico – na luta contra a ditadura no Brasil?
Essas perguntas podem, nos dias de hoje, parecer um tanto obsoletas, mas uma série de personagens – seja na construção da história brasileira ou de outras nações – foram e ainda são silenciados. Isso acarreta que a memória construída privilegia o prisma masculino e heterossexual e desaparece com os outros olhares.
Não é à toa que ainda hoje os materiais disponíveis sobre os levantes feministas, as revoluções africanas e o papel das LGBT+ na luta contra a ditadura brasileira ainda sejam escassos quando comparados – e sobre os mesmos períodos históricos – com aqueles disponíveis e narrados a partir da perspectiva masculina e heterossexual. A impressão – propositalmente construída – é que a história é realizada por homens (no sentido generificado deste termo).
O papel da imprensa bixa e sapatão contra a ditadura
Com o objetivo de romper com a história silenciada sobre o papel das LGBT+ na luta contra a ditadura, no começo dos anos 2000 duas obras importantes – e hoje consideradas leituras indispensáveis sobre o assunto – chegaram às livrarias e iniciam, digamos assim, a abertura dos trabalhos arqueológicos sobre o papel das lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na luta contra o regime militar. São eles: Além do Carnaval - A homossexualidade masculina no Brasil do século XX (2001), do historiador James N. Green, e Devassos no Paraíso - A homossexualidade no Brasil: da colônia à atualidade (2018), do militante e escritor João Silvério Trevisan.
Na obra Além do Carnaval, o historiador James N. Green faz um longo relato da atuação do movimento LGBT em torno do grupo Somos, coletivo fundado em 1978 e que reunia militantes comunistas e anarquistas que buscavam a liberação sexual. No entanto, serão as diferenças ideológicas que levarão o grupo a se dividir entre aqueles que queriam se juntar ao novo movimento sindical e ao Partido dos Trabalhadores, que já estava em vias de ser fundado, e aqueles que queriam manter independência dos grupos de esquerda, ainda profundamente homofóbicos.
Conforme relata Green em sua obra, o ápice da cisão do Somos foi quando a greve geral do ABC de 1980 foi deflagrada e o grupo se dividiu entre participar ou não. Para o historiador, tal momento marca o nascimento do movimento LGBT que, com faixas e cartazes, participou da histórica paralisação dos trabalhadores. Era o primeiro passo para quebrar o apagamento das LGBTs no contexto da ditadura militar.
Se o contexto da obra de James Green foca na atuação e fundação do movimento LGBT+ no período da ditadura militar, o clássico de João Silvério Trevisan, que foi o fundador do grupo Somos, traz um longo relato sobre o papel do jornal O Lampião da Esquina, voltado para as questões queers e que circulou entre 1978 e 1981.
O Lampião da Esquina, que figurou nas bancas de jornais em plena ditadura, é considerado o primeiro jornal de circulação nacional produzido por e para homossexuais. A redação do Lampião era composta por Aguinaldo Silva, João Silvério Trevisan, Darcy Penteado, Peter Fry, Jean-Claude Bernardet e outras figuras de enorme importância da comunicação e das artes do Brasil.
Ousado, O Lampião da Esquina deu início a uma revolução ao usar termos como "bicha", "travesti", "sapatão" e realizar entrevistas históricas com Lula, Fernando Gabeira e Leci Brandão. No entanto, assim que caiu nas mãos dos censores da ditadura, a publicação foi sufocada, proibida de ser vendida em bancas e acabou encerrando suas atividades de maneira precoce.
O arco-íris dos arquivos da ditadura
Em novembro de 2011, a então presidente da República, Dilma Rousseff (PT), promulgou a Lei 12.528, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV). De caráter não punitivo, o trabalho da CNV consistiu em levantar e tornar pública as violações de direitos humanos praticadas durante os 21 anos de repressão militar no Brasil.
No âmbito do trabalho investigativo da CNV, o historiador James Green e o advogado Renan Quinalha organizaram um relatório sobre as violações contra as LGBT+ durante a ditadura militar, trabalho até então inédito na historiografia do Brasil.
A empreitada de Renan Quinalha e James Green resultou no livro Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (2021), que busca mostrar como a repressão militar perseguiu e dificultou a vida das pessoas LGBT. Além disso, o levantamento dos pesquisadores, para além da perseguição e censura, também mapeou as várias ações de resistência protagonizadas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Outro material que compõe o levantamento do arco-íris dos arquivos da ditadura – e que também foi organizado pelo historiador James Green – é a biografia de Daniel Herbert, intitulada Revolucionário e Gay: A extraordinária vida de Herbert Daniel - Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão (2018).
Recentemente, a figura de Daniel Herbert ganhou destaque na série Betinho - No fio da navalha (Globoplay), pois ambos foram amigos ao longo da vida e parceiros na luta por tratamento digno aos portadores de HIV/Aids. Porém, antes do período histórico retratado na série, Herbert integrou os grupos políticos Polop, Colina, Var-Palmares e VPR, onde foi um dos líderes e atuou ao lado do comandante Carlos Lamarca.
Claudia Wonder contra a repressão
Além da atuação de gays e lésbicas na luta contra a repressão militar, travestis e transexuais também tiveram papel importante no enfrentamento à ditadura militar, que buscava higienizar os espaços públicos e, além de perseguir os militantes da esquerda, também caçava as travestis e transexuais. Uma das personagens mais emblemáticas dessa luta contra a higienização do espaço público levado a cabo pelos militares foi a multiartista Claudia Wonder (1955-2010).
Uma das atuações mais marcantes de Claudia Wonder no âmbito político se deu no enfrentamento às perseguições contra as prostitutas e travestis que frequentavam o centro de São Paulo na primeira metade da década de 1980. Tais ações eram comandadas pelo delegado José Wilson Richetti. Esse momento histórico é narrado pela própria artista no documentário Meu Amigo Cláudia (2009), que você pode conferir neste link.
Como se vê, a narrativa anti-LGBT no Brasil não foi criada pela ditadura militar, vem desde a Era Vargas (1930-45), que instituiu a chamada "homofobia estatal", com base nas teses de eugenia, que serviram de fundamento para a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1977, incluir a homossexualidade no Catálogo Internacional de Doenças (CID). Apenas em 1990 é que as relações homossexuais deixaram de ser consideradas uma doença e foram retiradas do CID.
No entanto, o fim da ditadura militar no Brasil e o tempo histórico subsequente não significaram a "entrada no paraíso" para as LGBT+, antes o contrário. Até hoje, o Congresso Nacional nunca sequer votou qualquer tipo de legislação pró-LGBT e atua para evitar qualquer tipo de avanço. Os parcos direitos existentes são normas jurídicas que podem ser revistas e derrubadas a qualquer momento.