O Brasil completa, em 1º de abril deste ano, 60 anos do golpe militar de 1964. Desde o fim da ditadura, em 1985, não houve um acerto de contas definitivo com o passado. Isso significa que nenhuma medida contínua e eficiente ligada à Justiça de Transição foi implementada a fim de reparar as violações praticas pelos militares. Também significa que não houve a construção de um entendimento do quão prejudicial para a sociedade foi o regime.
Apesar de algumas legislações e da instalação da Comissão Nacional da Verdade, bem como da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, as medidas não foram suficientes para trazer reparações às vítimas e à sociedade no geral.
Carla Osmo, que é professora de Direito na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp), explica que a Justiça de Transição busca oferecer reparações às vítimas, mas também para sociedade brasileira, que foi vitimada como um todo.
A docente afirma que essas medidas são importantes para responder aos crimes do passado e fortalecer o processo de construção de democracia. "Um processo de olhar para o passado para poder fortalecer a democracia no presente e no futuro e construir um Estado em que a gente tenha uma convicção de que, na teoria e na prática, a tortura é inaceitável", disse a especialista em entrevista ao Brasil de Fato.
Osmo afirma que as condutas graves e criminosas precisam ser repudiadas, inclusive, "para simbolicamente ter uma conscientização de que não é aceitável esse tipo de prática. Se não tem um processo de reconhecimento de que isso não só é errado, mas é gravíssimo, e que deve ser repudiado, a mensagem que a gente passa é que isso é aceitável".
"Se a gente desconhece qual é a nossa história, como a gente consegue exercer nossa cidadania? Como a gente consegue de fato tomar uma decisão consciente sobre quem a gente quer eleger como nosso governante? Ou o que a gente quer que sejam as práticas do nosso governo e do nosso Estado?", questiona.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: O que é a Justiça de Transição?
Carla Osmo: A Justiça de Transição é um campo de estudo e de prática constituído sobretudo a partir da década de 90, num contexto de pós regimes autoritários em vários lugares do mundo em transições democráticas. Nesse período, passa a haver a discussão sobre, em contextos de transição democrática, a necessidade de lidar com os legados das violações graves de direitos humanos praticadas pelos regimes autoritários.
Isso envolve uma reflexão sobre as políticas e as práticas adotadas em alguns países como respostas a essas violações, como políticas de reparação, comissões da verdade e toda uma discussão sobre exigência de responsabilização individual, especialmente na esfera criminal dos agentes que perpetraram violações graves de direitos humanos durante os regimes autoritários.
Se a gente olhar especificamente para a realidade da América Latina, foi uma realidade bastante comum a adoção de medidas como leis de anistia ou medidas análogas para impedir processos criminais contra os agentes dos regimes que praticaram as violações graves de direitos humanos. Então os movimentos de direitos humanos começam a defender, inclusive acionando os órgãos internacionais de direitos humanos, a necessidade de que haja uma investigação, um esclarecimento sobre os crimes e a punição dos responsáveis.
Entre as violações graves praticadas, tem a questão dos desaparecimentos forçados, que foi uma prática amplamente adotada na América Latina no contexto das repressões políticas, que consiste no desaparecimento de pessoas por responsabilidade do Estado. Nas ditaduras latino-americanas, as pessoas acusadas de participar de organizações da oposição às ditaduras eram mortas pelo Estado e tinham seus cadáveres ocultados por diferentes maneiras.
Os corpos de muitas dessas pessoas nunca foram localizados, identificados e restituídos. É uma violação muito grave e cruel. Os familiares das vítimas ficam sem condição de completar o seu processo de luto e fazer os seus rituais de despedida de acordo com as suas crenças. O sofrimento provocado a eles é tão grande que a Corte Interamericana de Direitos Humanos o equipara à tortura.
Qual foi o papel desses órgãos internacionais?
Movimentos de direitos humanos, especialmente organizações de familiares de vítimas fatais e de pessoas atingidas pelas violações, atuaram de forma transnacional para reivindicar aos órgãos internacionais de direitos humanos o reconhecimento de que os Estados têm a obrigação de esclarecer os desaparecimentos forçados e de que anistias e medidas análogas não podem impedir processos criminais para responsabilização dos agentes de Estado autores das violações graves de direitos humanos.
Em resposta, órgãos internacionais de direitos humanos, especialmente a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, afirmaram expressamente que os Estados têm o dever de investigar as violações graves e empreender todos os esforços necessários para localizar os remanescentes das pessoas desaparecidas e restituir às famílias. Decidiram ainda que anistias e medidas análogas não podem inviabilizar os processos de responsabilização em casos de violações graves de direitos humanos.
O Brasil foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em casos de violações ocorridas no período da ditadura. Um é o é o Caso Gomes Lund, relativo aos desaparecimentos forçados no contexto de repressão à Guerrilha do Araguaia. Outro caso é Caso Vladimir Herzog. Um dos motivos das condenações em ambos os casos foi a interpretação da Lei de Anistia no sentido de que ela impediria processos criminais contra os agentes de Estado responsáveis
Por parte do Estado brasileiro houve alguma ação?
O Estado brasileiro por muito tempo não adotou qualquer medida de para a garantia da memória, verdade e justiça em relação às violações graves praticadas durante a ditadura. Durante esse período, familiares de pessoas mortas e vítimas de desaparecimento forçado investigaram sozinhas, sem qualquer apoio do Estado, embora isso fosse uma questão de interesse público para a sociedade brasileira. Ao mesmo temo, as famílias seguiram demandando do Estado políticas de enfrentamento às violações graves que aconteceram na ditadura.
A primeira medida do Estado depois de um longo processo de luta pelos familiares foi a lei 9.140, de 1995, criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e atribuiu a ela a competência de reconhecer os casos de mortes e desaparecimentos de responsabilidade do Estado. A própria lei traz uma primeira lista de autoria do Estado de pessoas desaparecidas por ação da repressão durante a ditadura. A Comissão ficou também responsável por analisar requerimentos de reconhecimento de mortes e desaparecimentos de responsabilidade do Estado e por determinar o pagamento de indenizações aos familiares. A lei determinou ainda que a Comissão tem a função de realizar as buscas e os procedimentos voltados à identificação dos remanescentes das vítimas de desaparecimento forçado.
Depois teve a criação da Comissão de Anistia, que é regulada pela lei 10.559, de 2002, ficou responsável por processos de reparação por diferentes formas de perseguição política. A Comissão de Anistia fez um esforço no sentido de implementar uma reparação integral, na linha do que estabelece o direito internacional dos direitos humanos. De acordo com a normativa internacional, em casos de violações de direitos humanos as vítimas têm o direito à reparação integral, que vai além de indenização, para abarcar medidas de várias naturezas, como a atenção médica e psicológica às vítimas e familiares; medidas de reparação simbólica; medidas de promoção da memória; e a garantia de adoção de políticas para evitar a continuidade ou repetição da prática de violações de direitos humanos. Essa competência das comissões nem sempre foi bem compreendida pela sociedade brasileira.
Depois, ainda, houve a criação da Comissão Nacional da Verdade, e de uma série de comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais. Elas trouxeram muitas evidências de que a prática de violações graves durante a ditadura fazia parte de uma política de Estado e, portanto, caracterizava crime contra a humanidade.
No entanto, ainda muito o que investigar: a maior parte dos casos de desaparecimento forçado seguem sem esclarecimento, há diversas dimensões da violência que precisam ainda ser melhor investigadas, como a participação de empresas em violações de direitos humanos, as violações contra trabalhadores, indígenas, camponeses, contra o movimento negro e contra o movimento LGBTQIA+, as ações dos grupos de extermínio.
Além disso, o Brasil está muito atrasado no que diz respeito à promoção da memória das violações da ditadura, como a demarcação dos lugares em que aconteceram as violações graves ou em que aconteceram processos de resistência.
No que diz respeito à responsabilização criminal, diferente do que aconteceu em outros países da América Latina, em que o Judiciário passou a observar a normativa Internacional de direitos humanos admitindo os processos contra agentes do Estado por violações graves de direitos humanos, no Brasil essas ações seguiram sendo bloqueadas. O Ministério Público Federal, principalmente a partir da condenação do Estado brasileiro no caso Gomes Lund, em 2010, começou a promover uma série de ações de natureza criminal, que hoje já são dezenas. Mas elas, em regra, não são aceitas pelo Judiciário, que segue invocando a Lei de Anistia, contrariando o direito internacional dos direitos humanos.
Tem algumas poucas exceções, ações criminais com desdobramentos importantes, como o processo contra o carcereiro da casa da morte, Antônio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão, responsável por tortura estupro contra Inês Etienne Romeu. Outra exceção é ação contra Cláudio Guerra, um ex-delegado do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], entre outras violações graves, que participou da ocultação de cadáveres.
Agora, a regra geral tem sido o bloqueio pelo Judiciário brasileiro, contrariando as normativas internacionais. No campo da responsabilização individual, da responsabilização criminal, a gente não tem quase nada.
E qual é a consequência disso para a sociedade brasileira?
Os processos de Justiça de Transição têm vários objetivos. Uma dimensão é oferecer reparação às vítimas. Mas também têm uma grande importância para a sociedade como um todo, que também é, de forma geral, vitimada por meio de uma violência disseminada e generalizada.
As violações graves tem que ter respostas inclusive para simbolicamente haver uma conscientização de que não é aceitável esse tipo de prática. Se não tem um processo de reconhecimento de que isso não só é errado, mas é gravíssimo e que deve ser repudiado, a mensagem que se passa é que a prática de violações graves é aceitável. Caso não se promova o conhecimento do que foi a ditadura militar, quem e como foi atingido, isso dá espaço inclusive para a difusão da visão absurda de que a ditadura militar teria sido algo positivo, e de que a repressão que praticou teia sido legítima.
É importante que a sociedade brasileira conheça a sua história, para que a partir disso tenha condições não só de avaliar o passado, mas também tomar suas decisões no exercício da cidadania sobre o presente e o futuro.
Se a gente desconhece qual é a nossa história, como a gente consegue exercer nossa cidadania? Como a gente consegue de fato tomar uma decisão consciente sobre quem a gente quer eleger como nosso governante? Ou o que a gente quer que sejam as práticas do nosso governo e do nosso Estado?
Existe, às vezes, uma ideia muito equivocada de que tratar das violações da ditadura é olhar para o passado, o que é desnecessário quando se tem muitos problemas no presente. Mas não se trata só de, olhar o passado para botar um dedo na ferida. Se trata de reparar os maus do passado, na medida em que essa reparação é possível, e fortalecer a construção da democracia. Um processo de olhar para o passado para poder fortalecer a democracia no presente e no futuro e construir um Estado em que a gente tenha uma convicção de que na teoria e na prática, a tortura é inaceitável.
Edição: Matheus Alves de Almeida